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2.2. A REFERÊNCIA NUM ENFOQUE DISCURSIVO

2.2.4. Por uma abordagem discursiva da referenciação

Cardoso (2003) aponta para o aspecto discursivo da referência com a intenção de demostrar como os referentes se relacionam: com a memória discursiva, tomada esta na acepção peucheautiana; com o interdiscurso, e mesmo; com o nível 'real' dos objetos, como exemplifica a autora através dos pronomes demonstrativos exofóricos ostensivos, tomados como categorias em uma das análises apresentadas em seu trabalho. Destacaremos as considerações desta autora acerca dos aspectos discursivos da referência, assim como as de Araújo (2004) em sua obra Do signo ao discurso: uma

introdução à filosofia da linguagem em suas afirmações sobre o tema.

No âmbito do discurso, o referente, para Cardoso (2003:1), [...] é o objeto a que a linguagem visa, com o objetivo de descrevê-lo, transformá-lo, ou mesmo, segundo se verá, de constituí-lo.“ Segundo a autora, o referente se constitui pela palavra que dele trata, e nela se inscreve, não pertencendo à 'realidade em si', mas à realidade de um discurso. O referente do discurso é o que este último institui como realidade e não a realidade em si, posto que no momento em que se emprega a língua para falar de algo, já não se trata da 'coisa em si', mas da coisa como ela é vista pela comunidade falante, dentro de uma determinada cultura ou ideologia. Quanto ao referente,

Embora inscrito no discurso, ele sempre se coloca como o real, numa relação dinâmica, dialética com o discurso. O discurso até pode promover à existência entidades que podem não existir objetivamente, mas, ainda nesse caso, o referente coloca-se como real, em confronto com o discurso. Isto equivale a dizer que o fim da palavra está sempre voltado para um exterior, ou seja, o valor da palavra, a sua verdade, depende de uma realidade que se apresenta como independente dos discursos que são produzidos acerca dela, mesmo quando essa realidade já está inscrita neles. (CARDOSO, 2003: 163-164)

No que diz respeito à referência, Cardoso (2003: 1) a define como “A relação entre a linguagem (um dizer) e uma exterioridade (um não dizer), relação necessária para que a linguagem tenha o seu valor e não se encerre em si própria [...]”

Araújo (2004: 201), por sua vez, define referência enquanto a forma “[...] como certas expressões ou frases se relacionam com objetos ou entidades no/do mundo a ser nomeados e estado de coisa a ser designados [...]”.

Para Cardoso (2003: 121-122), “[...] parece um pouco prematuro considerar que a questão da referência não tem mais lugar no campo discursivo das ciências sociais hoje.” A autora defende, portanto, a importância da questão da referência na reflexão linguística, atentando para a relação histórica e dinâmica entre linguagem e realidade. E visando conceder à referência um enfoque discursivo a partir do viés da análise de discurso francesa, ao afirmar que:

As abordagens ditas 'históricas', por sua vez, têm procurado encontrar a 'medida' dos embates subjetivos e objetivos a que todo discurso está sujeito. É ponto de grande interesse, nessas abordagens, a questão da determinação recíproca entre linguagem e realidade (o quanto e o como a realidade social determina o discurso e o quanto e o como o discurso é determinante da realidade). (CARDOSO, 2003: 122)

Com a intenção de ilustrar sua proposta teórica e metodológica, Cardoso (2003) efetiva duas análises, uma da relação entre o referente e os sentidos de 'agricultor' e outra da significação dos demonstrativos, ambas a partir da perspectiva da análise do discurso francesa no que tange aos trabalhos que enfatizam o acontecimento discursivo. Apresentamos um breve resumo de suas duas análises com a intenção de ilustrar os possíveis caminhos de uma abordagem discursiva do fenômeno por nós abordado.

Em sua primeira exemplificação analítica, Cardoso (2003) efetiva, um contraponto da obra de Monteiro Lobato (enquanto fundador de uma determinada memória discursiva que, por sua vez, constrói um sentido de 'agricultor' relativo ao seu personagem 'Jeca Tatu') com o discurso que busca romper com essa memória discursiva, proferido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

'sujeito universal' a ele relegado, no qual encontra-se destituído da fala: “'Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive'. Sem palavra, [...] não tem consciência política: 'O sentimento da pátria lhe é desconhecido', 'Não tem noção do país em que vive'.” (CARDOSO, 2003: 136). Efetiva-se a interdição, um dos procedimentos de exclusão apontados por Foucault (2008). No discurso do MST por sua vez, enquanto elemento através do qual o trabalhador rural brasileiro reivindica o direito à palavra, os controles sobre seu discurso efetivam-se no sentido de impedir qualquer ameaça que o mesmo possa oferecer, cercando-o em seus poderes e aplacando qualquer indício de periculosidade que possa colocar em risco a ordem estabelecida através da interdição da fala do trabalhador rural sem terra e da limitação ou impedimento do seu discurso. Esse discurso de interdição e desqualificação da fala dos trabalhadores rurais, segundo a autora, constitui-se a partir da memória discursiva efetivada na figura do Jeca Tatu de Monteiro Lobato e, posteriormente, pelos procedimentos de censura do período ditatorial. A dominância do discurso (neo)liberal, em complemento, inviabiliza os sentidos dos discursos do MST.

Cardoso (2003) afirma, a respeito dos sentidos relativos ao referente 'agricultor', em Lobato e no discurso do MST, que, se o sujeito pode ser definido a partir da superposição entre o sujeito da enunciação e o sujeito universal, como afirma Pêcheux em sua obra

Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do obvio, o 'agricultor' de Lobato consentia

(ao permitir que se calasse sua voz) o sentido que se lhe era atribuído através do discurso universalizante, ocupando, por tal razão, o lugar do 'bom sujeito'. No entanto, o 'agricultor' do MST, rebelando-se contra o sujeito universal, passa a ser considerado um 'mal sujeito'. Tal análise demonstra, afirma Cardoso (2003: 141), que há um movimento constante que “[...] constitui os sentidos e os sujeitos em suas identidades na história. […] Os referentes também são passíveis de mudanças, as quais ficam inscritas na história.”

Cardoso (2003: 141), “A fim de elucidar ainda melhor o que se entende por referência numa abordagem discursiva […]”, propõe, em seguida, uma análise da significação dos demonstrativos a partir da perspectiva da análise do discurso francesa com o intuito de mostrar o lugar privilegiado entre o discurso e o seu exterior assim como entre o discurso e o seu inter-discurso, lugar, constituído pelos demonstrativos, do qual se estabelecem os referentes aptos a efetivar tal construção. O fato dessa análise linguístico-discursiva dos processos de referência tomar como categoria os pronomes demonstrativos é justificada pela autora por estes serem considerados como os signos 'mais dêiticos' pelo fato de os mesmos apontarem e nos darem acesso ao real, por estes se referirem “[...] a uma

realidade que lhes é exterior, mesmo quando esse 'exterior' possa já estar confinado nos espaços da própria linguagem. Não existe valor sem essa relação entre os sentidos (língua, discursos) e uma alteridade (realidade).” (CARDOSO, 2003: 165). A autora ressalta, no entanto, que essa alteridade do referente é relativa, posto que o mesmo se institui num domínio ideológico de referência.

Se, por um lado, o demonstrativo anafórico não se determina a partir de um processo exclusivamente linguístico, mas por um mecanismo discursivo, posto constituir “um sistema de relações de substituições, paráfrases, sinonímias dentro de uma mesma formação discursiva. […] constituindo-se um fenômeno discursivo.” (CARDOSO, 2003: 142-143), o demonstrativo 'exofórico', por outro lado, ao apontar para elementos externos ao texto, parece efetivar a união entre dois espaços, um equivalente ao aqui e agora do acontecimento discursivo, outro referente aos 'já-ditos' que sustentam tal acontecimento discursivo. Esses demonstrativos 'exofóricos' referenciam pressupostos discursivos. O discurso constrói-se, pois, numa interlocução com interdiscursos, a partir dos quais se traz à tona os elementos necessários para que se construa a referência. Os demonstrativos dêiticos, por sua vez, ao apontarem para o 'real' indicam este espaço enquanto um 'real' trabalhado e transformado pela linguagem, constituído de maneiras distintas de acordo com o 'lugar discursivo' em que se estabelece. Cardoso (2003: 144) conclui por fim que “ […] no processo de referência, enquanto a anáfora extrapola o nível textual, os dêiticos extrapolam a pragmática elementar do aqui e agora do acontecimento enunciativo, ambos ligando-se a um eixo sócio-histórico-ideológico mais amplo.”

Como pudemos observar, a concepção discursiva da referência, apoiada nos aspectos discursivos apresentados com base em Pêcheux (1997) e Foucault (2008), e exemplificada metodologicamente por Cardoso (2003), não considera a referência como uma relação direta das palavras com as coisas, com o mundo, com o 'real', mas sim com um 'real' trabalhado e transformado pela linguagem, estabelecido discursivamente. Devendo-se tal estabelecimento e construção (assim como postulam Mondada e Dubois (2003), Koch (2002, 2006) e Koch e Elias (2007)) aos aspectos cognitivos, intersubjetivos e contextuais, e constituindo tal mecanismo (que por todas as razões aqui ressaltadas denominaremos 'referenciação' e não mais 'referência'), sem sombra de dúvidas, uma atividade discursiva.

Como afirma Araújo (2004: 206) ao referir-se a Mondada e Dubois, ao destacá-las dentre os linguistas de linha pragmática:

referência. Uma teoria da referência, tal como a entende grosso modo a teoria causal, acarreta os inconvenientes que vimos apontando, dentre eles, a suposição de uma estabilidade no mundo dos fatos, de um lado, e um sujeito de outro lado, cuja mente é o locus de representações. (grifos da autora)

Na próxima seção buscamos apontar para os elementos discursivos em Foucault (2007) com a intenção de verificarmos se a sua concepção de formação de objetos de discurso constitui o que poderíamos chamar de processo de referenciação. Consideramos, ao desempenharmos essa tarefa, que o autor francês desenvolveu uma teoria do discurso respeitável e tangenciou, senão esmiuçou, o processo de referenciação, ao discorrer acerca da formação dos objetos de discurso.