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Capítulo II Políticas Habitacionais e a Financeirização do Setor Imobiliário: as

2.1 Trajetória histórica das políticas habitacionais no Brasil

2.1.2 Período da ditadura militar: o Sistema Financeiro de Habitação (SFH) e o

No início dos anos 1960, a crise urbana e habitacional do Brasil foi agravada. Nesse contexto o país se industrializava o que provocou uma urbanização acelerada, uma vez que o país passou por um forte processo migratório do campo em direção às cidades, sem que houvessem políticas públicas estruturadas capazes de organizar e preparar as cidades para essa nova fase do país (Bonduki, 2008). Para enfrentar a questão habitacional que se agravava, em 1963, foi realizado o Seminário de Habitação e Reforma Urbana - SHRU, discutindo a questão da habitação integrada a uma política de planejamento urbano. Ao final do Seminário, como forma de conclusão dos seus trabalhos, foram criadas uma série de orientações para a elaboração de uma Política Nacional de Habitação adequada a realidade brasileira, bem como para uma necessária reforma urbana (Bonduki; Koury, 2007).

No entanto, logo após as conclusões do SHRU, entrou em curso o golpe militar de 1964, que destituiu do governo o então presidente João Goulart, e instaurou o regime militar que perdurou por 21 anos (1964 – 1985). Ao assumir o poder em 1964 em meio a uma crise econômica e social, o governo militar necessitava formular projetos capazes de garantir legitimidade e apoio das massas populares. Assim para Campos (2011, p. 68) a “produção da “casa própria”, especialmente destinada aos segmentos de menor renda da população, adequava-se muito bem aos objetivos do novo regime”. Nesse contexto, constitui-se o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), a partir da lei n° 4380 de 21 de agosto de 1964, cujo principal agente da política brasileira era o Banco Nacional da Habitação 6(BNH).

O Banco Nacional de Habitação, criado após o golpe em 1964, foi uma

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O Banco Nacional de Habitação foi criado pela Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, de autoria da Deputada Sandra Cavalcanti, que depois fora nomeada sua primeira presidente. O BNH era, inicialmente, uma autarquia federal, vinculada ao Ministério da Fazenda (art. 16 e seguintes), depois repassado ao Ministério do Interior, por força do Decreto nº 60.900, de 26 de junho de 1967. Foi modificado pela Lei nº 5.762, de 14 de dezembro de 1971, transformando-o em empresa pública, de personalidade jurídica de direito privado, com seu patrimônio próprio (art. 1º), permanecendo no Ministério do Interior. Tinha por função a realização de operações de crédito — sobretudo de crédito imobiliário —, bem como a gestão do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS. Era um banco de segunda linha, ou seja, não operava diretamente com o público, atuando por intermédio de bancos privados e/ou públicos, e de agentes promotores, tais como as companhias habitacionais e as companhias de água e esgoto.

resposta do governo militar à forte crise de moradia presente num país que se urbanizava aceleradamente, buscando, por um lado, angariar apoio entre as massas populares urbanas, segmento que era uma das principais bases de sustentação do populismo afastado do poder e, por outro, criar uma política permanente de financiamento capaz de estruturar em moldes capitalistas o setor da construção civil habitacional, objetivo que acabou por prevalecer. (BONDUKI, 2008, p. 72)

Como forma de demonstrar a preocupação do regime militar com a questão habitacional, o BNH incorporou em sua concepção parte das propostas elaboradas pelo SHRU, passando a ser instituída uma política habitacional de alcance nacional, e não mais deixando as questões administrativas dos recursos a cargo dos governos locais, característico no âmbito da FCP (Bonduki; Koury, 2007). Nesse processo, ao BNH cabia a coordenação do Sistema Financeiro de Habitação - SFH e o planejamento das questões relativas à habitação e a articulação/coordenação dos órgãos de planejamento regional.

Foram criadas duas fontes de financiamento capazes de gerar vultosos recursos ao SFH: o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), criado em 1967, destinados a financiar as obras voltadas à população de baixa renda; e o SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo), para financiar aquelas direcionadas à classe média (Arretche, 1990; Bonduki, 2008). Segundo Cardoso (2013) esse modelo é vigente até os dias atuais, já que serve como modelo para o financiamento habitacional baseado no FGTS – SBPE.

Nessa perspectiva, para Campos (2011) o BNH sobressaiu-se da FCP sob três aspectos principais: primeiramente tratava-se de um banco, ao contrario da FCP, que se baseava em caixas de pecúlio e órgãos previdenciários. Em segundo, os financiamentos concedidos pelo BNH previam uma correção monetária, importante para a manutenção dos fluxos de financiamento. Finalmente, em terceiro lugar, buscava-se articular o setor público, na função de financiador, com o setor privado, como executor da política habitacional. No entanto essa ultima condição induziu e reforçou a segmentação do mercado, segundo os distintos níveis de renda familiar que se candidatavam ao financiamento, havendo ainda um agente específico para cada um dos segmentos atendidos. Isso abriu margem para as distinções no orçamento de recursos destinados para cada um desses segmentos, sendo alguns privilegiados em detrimento de outros.

É desta forma que o BNH, sob sua centralidade e regulação, estabeleceu uma divisão do trabalho entre atores públicos e privados nas etapas de: captação de recursos, financiamento, construção e comercialização de moradias (Campos, 2011). Assim, o SFH/BNH foi responsável pelo fortalecimento do setor imobiliário, e reforçou o papel de construtores, bancos, agências financeiras, associações de poupança e crédito imobiliário na produção de novos espaços e no estabelecimento de políticas públicas, que dificilmente dariam suporte a uma política que lhes desfavorecessem ou mesmo contrariassem os seus interesses. “Compôs-se assim um complexo quadro de relações

de interesses entre o Estado e o setor privado atuante na esfera habitacional.” (Campos, 2011, p. 69)

Ribeiro e Azevedo (1996), analisando o BNH, comentam que durante os vinte e dois anos de seu funcionamento (1964-1986) ele foi responsável pelo financiamento de 4,5 milhões de unidades habitacionais, apresentando assim um significativo papel no desempenho econômico do país. Apesar do impressionante numero de habitações construídas, Campos (2011, p. 69) ressalta que “em termos de volume, foi o “mercado médio” que mais se beneficiou com a política da habitação, pois o valor médio das transações imobiliárias, era substancialmente maior do que o das classes populares”. Para a autora, isso ocorreu porque, as aplicações no “mercado médio”, permitiram juros substancialmente mais altos que o “mercado popular”, o que era de grande interesse para os empreendedores imobiliários, além de ser um mercado mais atraente, por não apresentar os altos índices de inadimplência presentes nas vendas direcionadas ao publico de renda mais baixa.

Corroborando com essa perspectiva, Ribeiro e Azevedo (1996) apontam que apenas 1,5 milhão (33%) das unidades financiadas foram destinadas à construção de habitações que atenderiam aos setores populares. E ao se referirem a faixa compreendida entre zero e três salários, atingidas por programas alternativos do BNH, os números se tornam ainda mais ínfimos, já que essa faixa foi contemplada com apenas 250 mil unidades habitacionais (5,9% do total). Desta forma, o BNH teve, na prática, um caráter "redistribuitivo às avessas" (Ribeiro; Azevedo, 1996, p.13).

Por esse aspecto as críticas ao BNH são extensas, ao quais incluem: o abandono da questão social, já que ocorreu o afastamento do problema habitacional a partir do direcionamento da habitação para outros setores que não o prioritário, além dos

modelos arquitetônicos e a forma de ocupação urbana inadequada (Melchiors, 2014). Bonduki endossa as críticas ao SFH e BNH, afirmando que entre os inúmeros equívocos do programa se destaca:

(...) a opção por grandes conjuntos na periferia das cidades, o que gerou verdadeiros bairros dormitórios; a desarticulação entre os projetos habitacionais e a política urbana e o absoluto desprezo pela qualidade do projeto, gerando soluções uniformizadas, padronizadas e sem nenhuma preocupação com a qualidade da moradia, com a inserção urbana e com o respeito ao meio físico. Indiferente à diversidade existente num país de dimensões continentais, o BNH desconsiderou as peculiaridades de cada região, n ão levando em conta aspectos culturais, ambientais e de contexto urbano, reproduzindo à exaustão de modelos padronizados. (BONDUKI, 2008, p. 74)

Santos (2008) ao analisar a ação do poder público sobre o espaço urbano, afirma que sua atuação pode resultar diretamente na geração de problemas urbanos, ainda que prometendo resolve-los, e cita como exemplo dessa ação contraditória o próprio BNH. Para o autor o discurso de criação do BNH o colocava como um instrumento capaz de realizar melhorias nas condições de moradia dos habitantes urbanos. No entanto, “esse banco tornou-se, em primeiro lugar, o banco da cidade, a instituição financeira estatal destinada a preparar as cidades para melhor exercer seu papel na fase do capital monopolista que se estava implantando.” (Santos, 2008, p. 123)

Em suma, podemos concluir que o BNH não solucionou o problema da habitação popular no país, já que foi um programa voltado economicamente para a produção de moradias para as camadas de renda média da população, e não abarcou significativamente as camadas populares, que eram de fato a faixa social que apresentava as maiores dificuldades com relação à habitação. Segundo Campos (2011, p. 69) essa política habitacional “também contribuiu fortemente para a deterioração física e social das cidades brasileiras e para a associação entre legalidade e privilégio, mediada por um mercado imobiliário elitizado e excludente”.