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O período francês

No documento marialuizaviannapessoademendonca (páginas 55-61)

1 O ESTATUTO EPISTEMOLÓGICO DA HISTÓRIA DAS RELIGIÕES DE MIRCEA ELIADE

1.1.2. O período francês

Em 1945 Eliade estabeleceu-se em Paris, onde viveu até 1956.

Quando chegou a Paris, Eliade era conhecido nos meios científicos apenas como o estudioso especializado, autor de Yoga, essai sur les origines de la mystique

indienne. Esse conhecimento foi suficiente para que ele fosse bem acolhido no Mundo

dos orientalistas parisienses40.

Foi a Georges Dumézil41 que Eliade deveu os primeiros sucessos de sua carreira científica em Paris. Dumézil assumiu o papel de intermediário entre Eliade e os meios dos orientalistas, da universidade e dos editores parisienses. Dumézil foi quem apresentou Eliade a Henri-Charles Puech, diretor de estudos da Va Seção da Ècole des Hautes Études e secretário de redação da Revue de l’histoire des religions, revista na qual Eliade publicou, em 1946, seu primeiro grande texto do pós-guerra, intitulado Le

problème du chamanisme. Foi Dumézil que ofereceu a seu amigo romeno a

oportunidade de publicar seus trabalhos na França42.

Os dois estudiosos – Dumézil e Eliade –, que mantiveram uma convivência estreita desde encontro em Paris até a morte de Eliade (seguida logo de perto pela de Dumézil43), embora tenham trabalhado mediante o emprego de métodos diversos, em campos diversos e com escopos diversos, reconheceram, no entanto, débitos recíprocos, como deixaram expresso em um diálogo por eles mantido em 27 de outubro de 1978 resumido por Julien Ries (2000, p. 20-21). No citado diálogo, Eliade reconhece que deve a Dumézil um tipo de abordagem mais refinado e complexo do fato religioso, o fato de o mesmo estudioso ter trazido à luz, em seu próprio modo, a questão da autonomia da História das Religiões, a importância do folclore e da etnologia, e ainda a questão do significado. E Dumézil, de seu lado, afirma sentir-se próximo de Eliade em razão do respeito comum de ambos pelos fatos religiosos e pelas estruturas religiosas; e afirma que as pesquisas fenomenológicas eliadianas tiveram importância fundamental para ele, ressaltando mais em prol de seu interlocutor o fato de que os problemas abordados por Eliade pelo menos em parte de natureza tipológica são de uma envergadura maior do que o problema comparativo a cuja solução se dedicou44.

40

Cf. Turcanu (2003, p. 343).

41 Membro da venerável Societé asiatique desde 1925, reconduzido, no fim de 1944 a seu posto de diretor de estudos da Va Seção da Ècole des Hautes Études, professor na mesma escola de línguas orientais, amigo de longa data de Brice Parain, este último membro do comitê de leitura e diretor de coleções na editora Gallimard, autor de Jupiter, Mars, Quirinus e da obra L’héritage indo-européen à Rome. Cf. Turcanu (2003, p. 344).

42 Cf. Turcanu (2003, p. 343; 343-345; 356). 43

Ambas ocorreram no mesmo ano, 1986.

44

Dumézil desenvolveu um método comparativo genético para o estudo comparado das religiões, o qual ele distinguiu do método comparativo geral, do comparativismo onosmático e do método tipológico utilizado pelos fenomenólogos, sociólogos e etnólogos, que se referem a protótipos comuns. Ao termo de 20 anos de estudo e de pesquisa, em 1938, Dumézil ficou de posse de uma chave que lhe permitiu penetrar nos arcanos da realidade indo-europeia primordial. Por meio dela, ele descobriu uma herança cultural plenamente representada por uma ideologia funcional e hierárquica, cujos componentes são: a

Em Paris, Eliade ministrou cursos na École des Hautes Édudes durante vários anos, publicou diversos artigos nas revistas Critique e Revue d l’histoire des religions e em outras publicações periódicas. No período parisiense de sua vida, Eliade participou também de inúmeros congressos internacionais de história das religiões45.

Em 1950, Eliade participou, pela primeira vez, de um encontro denominado Eranos46, realizado em Ascona, nas margens do lago Majeur, devendo o convite para sua participação ao historiador do islã Henri Corbin, discípulo de Louis Massignon, então diretor de estudos da École des Hautes Études. Eliade irá frequentar os encontros Eranos até 196147.

Os encontros de Ascona constituíram encontros interdisciplinares, e foi lá que Eliade travou conhecimento com Carl Gustav Jung e reencontrou Karl Kerényi, que conhecera em Roma48; outras pessoas que Eliade menciona ter encontrado em Ascona foram Raffaele Pettazzoni, Daisetsu Teitaro Suzuki, Jean Daniélou, Giuseppe Tucci e Ernst Benz49.

De acordo com Spineto (2006, p. 68-69), os encontros de Ascona foram significativos para Eliade no campo das ideias: o autor romeno foi influenciado por aquele que foi denominado o espírito de Eranos. Usando como fonte escritos de Eliade,

soberania religiosa e jurídica; a força física que encontra sua aplicação no campo bélico; a fecundidade, submetida aos outros dois princípios, indispensável para sua completa utilização. Ele realizou uma pesquisa genética em uma realidade diacrônica. Trouxe à luz os esquemas de sociedades que se ligavam umas às outras e procurou obter no Mundo religioso indo-europeu, mediante a análise de documentos religiosos e sociais, o quanto a linguística comparada é capaz de conseguir em seu campo específico: uma imagem tanto precisa quanto realisticamente plausível de um sistema pré-histórico do qual certo número de sistemas históricos documentados constituem em boa parte sua sobrevivência. Seu objetivo foi muito mais a busca contínua de estruturas, mecanismos, equilíbrios constitutivos no interior da mitologia, da teologia e da liturgia. Este método genético permitiu a Dumézil os meios objetivos para representar uma parte da pré-história da civilização indo-europeia; e levou a uma descoberta do significado daquelas civilizações.Cf. Ries (2000, p. 17-18).

Já Eliade, como veremos mais adiante, construiu um método comparativo tipológico fundado em sua morfologia da religião e estendeu sua pesquisa para um universo religioso muito mais amplo do que aquele alcançado pelos estudos de Dumézil: religiões de povos sem escritura, mitos desenvolvidos por povos que tiveram um papel histórico relevante, religiões asiáticas; em sua pesquisa, a comparação se centrou sobre a realidade sagrada dos mitos, dos ritos e dos símbolos, com o objetivo de determinar seu papel central na experiência do sagrado. Fazendo uso de um método comparativo tipológico, Eliade fez emergir a figura do homo religiosus, de caráter universal.

45

Cf. Allen (1985, p. 25).

46

A promotora dos encontros Eranos foi uma holandesa, Olga Froebe-Kapteyn, que estabeleceu em Ascona, em 1930, as bases de uma École de recherches spirituelles, inspirando-se na École de sagesse fundada pelo filósofo Hermann Keyserling em Darmstadt. Olga recebeu de Otto a bênção para seu projeto de inaugurar uma série de conferências sobre os problemas da espiritualidade na pequena vila suíça; e foi Otto quem atribuiu o nome ao projeto do qual foi um dos inspiradores, mas do qual não participou: Eranos, palavra grega antiga que designa uma refeição ou um alimento sobre um prato. Cf. Turcanu (2003, p. 393-394). 47 Cf. Turcanu (2003, p. 392-395). 48 Cf. Turcanu (2003, p. 395). 49 Cf. Spineto (2006, p. 68).

Spineto aponta os elementos que constituíam o espírito de Eranos. Primeiramente, a ideia de uma cultura que não seja fragmentada nos setores disciplinares que cultivam os especialistas, mas que nasça do confronto e da troca de experiências, ideias, pesquisas respeitantes a diversos campos do saber; sob este ponto de vista cultura significa abertura em direção ao outro, uma abertura que implica, de um lado, o diálogo com estudiosos que se ocupam de áreas de pesquisa diversas, e de outro lado, o interesse pelas civilizações distantes da ocidental ou por terrae ignotae como a profundidade do inconsciente. Em segundo lugar, era comum aos participantes mais habituais do encontro de Eranos a convicção de que somente por meio de um processo de integração de todos estes elementos é que poderia haver um verdadeiro progresso do conhecimento. Para que houvesse essa integração, fazia-se necessária uma linguagem comum: o papel de mediação deveria ser desempenhado pelo símbolo, ou, de qualquer modo, pela ideia de que existe uma imaginação simbólica que se exprime através das diferentes criações religiosas da humanidade, donde vem retomada a valorização romântica do símbolo como lugar de uma revelação. A atribuição dos estudiosos reunidos em Ascona é de interpretar, isto é, exercitar uma atividade hermenêutica que requer uma participação íntima no objeto de estudo, e os trabalhos de Eranos constituem um excepcional instrumento de difusão de um novo procedimento hermenêutico. O objetivo de Eranos corresponde a um incremento dos conhecimentos no qual se vê a ocasião de uma maior realização do homem. Os encontros de Eranos estão permeados daquele novo humanismo ao qual Eliade passará a fazer cada vez mais alusões. Spineto resume:

Em suma, em Ascona Eliade encontra um grupo de estudiosos na maior parte pertencentes ao Mundo acadêmico e considerados autoridades nos seus setores, que condividem uma ideia do saber como hermenêutica dos símbolos religiosos voltada a renovar o espírito do homem e aquele da humanidade como gênero.

Eliade havia tomado contato com a obra de Jung no início dos anos 1940, mas foi somente depois de sua chegada à França que manifestou um real interesse pela exploração dos fundamentos psicológicos do pensamento simbólico e mítico. O reencontro com Jung em Ascona significou para Eliade o reencontro com o pensamento junguiano, o que se mostrou muito importante para o desenvolvimento de seu próprio pensamento50: a teoria junguiana do inconsciente coletivo seduziu-o, antes de tudo, pela

50

Turcanu (2003, p. 398-399) noticia que, numa carta a Jung, em janeiro de 1955, Eliade refere-se à obra do primeiro como constituindo ‘a maior descoberta da [sua] maturidade espiritual’; e acrescenta que

importância que ela atribui ao comparativismo religioso e ao estudo dos mitos e da mentalidade dita primitiva; e também para confirmar pela via científica a teoria de Eliade acerca do sagrado como uma estrutura da consciência humana (Cf. subitem 3.2.4. adiante). Para Eliade, se o encontro com o sagrado é um encontro com o que Otto denominou “o totalmente outro” 51

, o encontro com o inconsciente é também um encontro com uma realidade definida por sua alteridade radical; além disso, o inconsciente, como o sagrado, não pode se manifestar a não ser através de símbolos, reproduzindo as imagens e os temas mitológicos e mais geralmente religiosos que, segundo Jung, são compartilhados pela humanidade toda; donde se conclui que Eliade não confundiu o sagrado com o conteúdo do inconsciente. Mas, para Eliade, pareceu atraente figurar as consequências das relações possíveis entre a experiência do sagrado e o inconsciente desde a aparição do homo religiosus, estendendo-as até o homem moderno, que vive num Mundo dessacralizado52.

Foi na França também que Eliade entrou em contato pela primeira vez com o meio dos antropólogos, cuja disciplina estava então para atravessar um período de grandes mutações. Após a explosão existencialista de 1945-1946, a antropologia e, de modo mais geral, as ciências humanas viriam a abalar, em breve, a preeminência da filosofia no campo intelectual francês. Lévi-Strauss, por seu turno, introduziu um novo modelo de cientificidade que começou a se difundir, a partir de 1949, no campo das pesquisas antropológicas. No trabalho de Marcel Griaulle, um antropólogo africanista, em especial na descrição que ele faz das grandes construções simbólicas dos Dogons, Eliade vê a confirmação, por um dos mais ilustres africanistas franceses, de sua teoria do simbolismo primitivo como correspondendo a um sistema metafísico ou a uma ontologia53.

Eliade, ainda que recusasse o epíteto de junguiano, teve na obra de Jung, dentre os outros pensamentos a ela contemporâneos, o efeito mais estimulante sobre sua própria obra, com o resultado de que a relação entre o pensamento de Eliade e a modernidade modificou-se ao passar pelo filtro psicanalítico, afastando- se do gueto dos estudos tradicionais representados por Guénon e Evola, o último que acabou por se distanciar de nosso autor.

Turcanu (loc. cit.) dá fé, ademais, de uma correspondência epistolar entre Eliade e Jung nos anos 1950- 1955, que, embora não tenha sido abundante, é bastante consistente no nível das ideias e da evocação de diferentes meios intelectuais.

51

Em alemão, das ganz andere, expressão utilizada originalmente por Otto.

52

Cf. Turcanu (2003, p. 395-397).

Consideramos importante assinalar, desde já, que malgrado o contato com as ideias de Jung, Eliade realizou seus estudos sobre a presença ou manifestação do sagrado no inconsciente do ser humano sempre na linha de estudo da História das Religiões, em função do princípio da irredutibilidade do sagrado, não partindo jamais para uma linha de estudo psicologista na esteira de Jung. Iremos abordar este tema no item 3.15.2. adiante.

53

Numa abordagem genérica, sem referência explícita a Eliade, é importante lembrar que, em Paris, na época em que o autor romeno lá se encontrava e desenvolvia sua obra, a chamada “moda husserliana” estava a pleno vapor: as obras de Husserl foram traduzidas e comentadas por Ricoeur, Sartre e Merleau-Ponty, filósofos os quais, cada um dentro de sua própria linha de pensamento, desenvolveram suas próprias fenomenologias.

No que se refere à sua produção científica, excetuando-se os três volumes de

HCIR, que constitui a obra mais tardia de Eliade, a maior parte da obra científica deste

último foi publicada entre 1949 e 1956, toda ela na França: Traité d’histoire des

religions, Le mythe de l’éternel retour, Le Chamanisme, Le Yoga, Images et symboles, Forgerons et alchimistes. No campo das suas obras literárias, destaca-se Forêt Interdite, novela épica aparecida em 1955, que é considerada como a obra prima

eliadiana no âmbito da literatura54.

O THR e o MER constituem as duas obras científicas mais conhecidas de Eliade, e, nelas, os elementos presentes nos trabalhos do período anterior à guerra já se encontram organizados num sistema que não sofrerá mudanças relevantes nos anos sucessivos; foi nesses trabalhos que Eliade elaborou as chaves de leitura que empregará depois no estudo dos fenômenos religiosos.

Com o THR, torna-se central o conceito de hierofania, tomada como o ato da manifestação do sagrado num objeto profano; é utilizada, pela primeira vez, a expressão illud tempus; está devidamente descrita a morfologia do sagrado; o conceito de sagrado, que Eliade havia encontrado a partir do período de seus estudos com Ionescu na leitura das obras de Otto passa a interagir com a distinção entre sagrado e profano teorizada por Émile Durkheim, conceito que o citado autor romeno utiliza (na formulação crítica em relação a Durkheim sobre a mesma linha de pensamento de Roger Caillois, cuja obra,

L’homme et le sacré vem apontada no Prefácio de THR).

No MER foi teorizada a oposição entre a civilização tradicional, fundada sobre a concepção cíclica do tempo, e a civilização hebraica e depois a cristã, ambas com sua visão linear da temporalidade; a religião vem definida, pois, como uma saída da

54

história, que Eliade já havia maturado precedentemente e da qual se encontra uma formulação em 193355.

Foi o THR, prefaciado por Georges Dumézil, que conferiu a Eliade uma reputação internacional e o consagrou como um especialista no campo do estudo das religiões.

No documento marialuizaviannapessoademendonca (páginas 55-61)