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A primeira fase dos estudos sobre a religião – o movimento do positivismo naturalista e as críticas que Eliade lhe faz

No documento marialuizaviannapessoademendonca (páginas 67-72)

1 O ESTATUTO EPISTEMOLÓGICO DA HISTÓRIA DAS RELIGIÕES DE MIRCEA ELIADE

1.2.1. A primeira fase dos estudos sobre a religião – o movimento do positivismo naturalista e as críticas que Eliade lhe faz

1.2.1.1. O positivismo naturalista73

O começo do estudo comparativo das religiões deu-se no decorrer da segunda metade do século XIX.

Existiram duas escolas maiores que formam aquele que podemos denominar como constituindo o primeiro período das ciências que tiveram a religião como objeto de estudo: a dos filólogos e a dos etnólogos, cujos integrantes acharam que poderiam estabelecer uma disciplina autônoma, um estudo científico da religião, tendo plasmado essa nova ciência pelos valores do Iluminismo e do progresso científico do século XIX. Estas escolas, em seu conjunto, correspondem ao movimento que se convencionou denominar positivismo naturalista.

Em sintonia com uma orientação positivista, de inspiração antimetafísica e anti-religiosa, os filólogos e etnólogos daquela época orientaram suas pesquisas para o estudo das religiões primitivas e arcaicas74, com a crença, alimentada pelo dogma positivista de uma evolução unidirecional das culturas, de poderem conhecer as origens e as formas mais elementares da vida religiosa.

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Sobre a consideração de Otto como fenomenólogo da Religião, cf. item 1.3.1.1. adiante.

72 A posição de Pettazzoni, por sua vez, embora seja normalmente enquadrada no campo da fenomenologia da religião, no fundo, como veremos no subitem 1.3.1.3. adiante, constitui uma abordagem do fenômeno religioso feita sob o prisma da história, a fenomenologia da religião, segundo o referido estudioso, atuando como uma disciplina auxiliar, ou seja, Pettazzoni dá preeminência à história. 73 As menções que faremos no texto a seguir aos pensamentos dos estudiosos – Max Müller, Tylor e Lang - que laboraram na linha do denominado positivismo naturalista, salvo indicação em contrário no texto, têm como base a obra de Allen (1978) intitulada Strutcure and creativity in religion: hermeneutics in Mircea Eliade’s Phenomenology and new directions, p. 9-13 (Max Müller), p. 15-17 (Tylor), p. 21-25 (Lang).

74 Podendo-se englobar sob o termo ‘arcaicas’ as religiões cósmicas das sociedades pré-letradas, as religiões cósmicas das sociedades tradicionais já desaparecidas, como as religiões egípcia, grega, romana, etc., as religiões cósmicas das sociedades tradicionais orientais ainda vivas como também as religiões dos chamados povos primitivos ainda não aculturados existentes naquela época.

Naquela fase, em que o clichê da moda, de acordo com Eliade, era origem e desenvolvimento, medraram várias teorias sobre a origem das religiões, podendo-se citar como exemplos, no campo da filologia, a teoria de Max Müller, e no campo da etnologia, as teorias antagônicas de Tylor e de Lang 75.

O primeiro grupo significativo no âmbito do estudo comparado das religiões foi composto por filólogos que, por meio da análise científica da linguagem, acreditavam ser possível compreender a natureza da religião; tais filólogos formularam explicações naturalísticas da religião por meio das quais sustentavam que os deuses não eram mais do que fenômenos naturais personificados, tais como o sol, a lua e os rios.

O estudioso mais proeminente da escola natureza-mito foi Max Müller76, para o qual a chave para decifrar a essência da religião era a mitologia comparada, e, sendo assim, tal estudo somente poderia ser feito segundo um método de análise filológica. Max Müller endossa uma análise epistemológica empirista tradicional, de acordo com a qual todo o pensamento, linguagem e conhecimento humanos derivam da experiência sensorial e, portanto, a intuição do divino ou a ideia do Infinito se baseiam sobre as sensações que são provocadas pelas forças externas da natureza exercidas sobre os seres humanos; mais especificamente, Max Müller afirma que foram os fenômenos naturais intangíveis, como o sol ou o vento, que proveram os homens com a ideia do Infinito. Sua tese era a de que uma vez que surgiu a ideia do Infinito, ela somente poderia ser pensada em metáfora e símbolo, e estes só poderiam ser criados a partir do que se mostrava majestoso no Mundo conhecido, como os corpos celestes ou mesmos seus atributos; então, esses atributos perderam seu sentido metafórico original e adquiriram autonomia própria personificando-se em deidades. A religião, dessa forma, surgiu quando o que era originalmente apenas um nome (nomen) que expressava metaforicamente as forças naturais, através da ilusão do mito passou a receber o status de um deus (numen). Assim, todo o Mundo sobrenatural surgiu das limitações, ambiguidades e ilusões da língua, e o mito é descrito como uma condição patológica, um desarranjo da linguagem. Segue-se daí que o único modo de descobrir o significado da religião do homem primitivo é por meio da pesquisa filológica e etimológica, que restaura os sentidos originais dos nomes dos deuses e das histórias contadas sobre eles. Fica evidenciado, dessa forma, o quanto Max Müller estava influenciado pelo contexto cultural e intelectual europeu do Século XIX com sua abordagem pretensamente

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Cf. Allen (1978, p. 9-29).

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imparcial, racional e científica dos dados religiosos: a preocupação com as origens e a avaliação negativa da religião.

Do lado dos etnólogos, daremos destaque à teoria animista de E. B. Tylor e à teoria pré-animista de Andrew Lang77.

Segundo a teoria animista de E. B. Tylor (1871 – Primitive Culture), o animismo ou a crença de que toda a Natureza – não só o homem, mas também as plantas, os animais e até os objetos inanimados - é animada, tem uma alma, corresponde à definição mínima de religião; a partir desse estágio inicial, Tylor descreve a evolução unilinear da religião, passando pelo politeísmo e chegando ao monoteísmo das culturas mais civilizadas. Trata-se de uma explicação racional da origem e da natureza da religião por meio de observações empíricas e deduções lógicas; para Tylor, o animismo se funda sobre uma ilusão psicológica e uma inferência lógica equivocadas; os evolucionistas, como Tylor, recusaram-se a atribuir qualquer atributo racional à religião primitiva.

Andrew Lang (1898 – The Making of Religion; 1913 – Myth, Ritual and

Religion), que primeiramente criticou as teorias de Müller e minou o campo da

mitologia comparada assumindo a posição de um antropólogo evolucionista que acreditava que os mitos surgiram não de uma “doença da linguagem”, mas do estágio do animismo, acabou por romper completamente com o animismo de Tylor. De acordo com a teoria pré-animista antievolucionista de Lang, o animismo não é o primeiro estágio da religião, mas o é sim a crença em um Deus Supremo, que as pesquisas etnológicas haviam encontrado presente entre algumas tribos primitivas78, crença esta que ele considerava como sendo racional e elevada; essa crença, de acordo com ele, mais tarde “deteriorou” em formas mais elementares de religião, como a adoração de

77 Não estamos aqui valorizando os estudiosos citados e suas teorias em face de outros estudiosos que também atuaram com destaque e tiveram grande influência no campo do estudo comparado das religiões nesta primeira fase do estudo das religiões, tais como Marett, que desenvolveu a teoria do dinamismo ou pré-animismo segundo o qual o estágio primordial da religião deveria ser identificado com a crença humana em um poder impessoal e dinâmico e a reação emocional a este poder, a uma força que é geralmente atribuída a uma alma ou a um espírito, mas que não é ela própria um espírito, poder ou força a que se atribuem os nomes de mana (dos melanésios e polinésios), orenda (dos iroqueses), Wakand (dos sioux), etc.; e como os antropólogos ingleses Robertson Smith e Frazer, dentre outros, para falar apenas de alguns. Escolhemos as duas teorias citadas pelos aspectos antagônicos que elas apresentam quando contrapostas uma à outra, embora tenham nascido no mesmo contexto cultural racionalista e positivista; tais teorias expressam, cada uma a seu modo, a obsessão pela origem e pelos primórdios das religiões, e partem do princípio de que o que se deu no primórdio era algo simples e puro; e, também postulam o desenvolvimento das religiões arcaicas como constituindo um movimento linear do simples ao complexo, embora em direções opostas - para cima, no caso dos evolucionistas capitaneados por Tylor; para baixo, no caso dos antievolucionistas capitaneados por Lang.

fantasmas ou heróis tribais, ancestrais e espíritos naturais, isto em decorrência das influências subsequentes da imaginação mitológica, que, para ele, era irracional. Para Lang a crença religiosa no Deus Supremo era racional e mesmo elevada e a deterioração dos Deuses Supremos deveria ser creditada às influências posteriores da imaginação mitológica; a teoria de Lang sugere uma abordagem naturalista, não correspondendo a uma abordagem histórica.

1.2.1.2. As críticas de Eliade ao positivismo naturalista

Para Eliade (YIF, p. xxvii-xxviii), os valorosos exploradores e etnólogos do século XIX, com sua postura positivista, antirreligiosa e a-metafísica aproximaram-se dos povos que eles denominaram de selvagens com a ideologia de contemporâneos de Comte, Darwin ou Spencer; assim o tendo feito, descobriram entre os primitivos, onde quer que tenham ido, fetichismo e infantilismo religioso, simplesmente porque não poderiam ter visto nada além disto; decorrência desta situação foi a criação por eles da imagem de sociedades inferiores.

Eliade (RA, p. 10-11) denomina, respectivamente, evolucionismo e decadentismo as duas posições opostas exemplificadas nas ideias de Tylor e de Lang. Em sua análise, a primeira dessas tendências tem mais a ver com o positivismo que, em seu conjunto, constituiu o Zeitgeist do Século XIX; a segunda, que se liga de um lado à ideia do bom selvagem preconizada pela filosofia iluminista, e de outro lado à teologia cristã, recebeu uma primeira consagração científica graças a Andrew Lang e depois a Wilhelm Schmidt79, mas não se impôs jamais entre os etnólogos e os fautores da ciência da religião. Eliade ressalta que, a despeito das suas diferenças radicais, as duas ideologias têm dois pontos em comum: a) elas estão obsedadas pelas noções de origem e começo das religiões; b) elas partem da ideia de que esse começo foi simples e puro, embora os integrantes das duas correntes tenham dado a essa simplicidade primordial significados inteiramente diferentes; para os evolucionistas, simples significava elementar ou próximo de um comportamento animal; para os decadentistas, a simplicidade primitiva ou era uma espécie de plenitude e de perfeição espirituais (Andrew Lang, Wilhelm Schmidt), ou era a simplicidade natural do bom selvagem antes

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Segundo Allen (1978, p. 46), profundamente impressionado pela teoria pré-animista de Andrew Lang, Schmidt usou sua abordagem histórico-cultural para sustentar que os mais antigos estratos da religião, retratados nos fósseis vivos que as tribos do sudoeste da Austrália representavam, revelaram uma crença num criador eterno, um bondoso e onisciente Deus Supremo, ou seja, revelaram uma espécie de Urmonotheismus. Desse monoteísmo original da Urkultur, Schmidt traçou a gradual corrupção, confusão e degeneração dessa crença num Deus Supremo.

que a civilização tenha introduzido sua corrupção e sua degradação (Rousseau). Uma e outra ideologias, segundo ele, subentendem que as religiões arcaicas seguiram uma linha reta em sua evolução, do simples ao complexo, mas em duas direções distintas: de baixo para o alto (os evolucionistas) ou do alto para baixo (os decadentistas). Eliade ressalta ainda que, de qualquer modo, estas interpretações supunham um ponto de vista seja naturalista, seja teológico, mas nenhuma delas supunha um ponto de vista histórico. Eliade (THR, p. 49) contesta esta abordagem evolucionista dos positivistas afirmando a complexidade das manifestações religiosas das chamadas religiões primitivas, nas quais se pode constatar a presença de vestígios de formas religiosas que são consideradas como superiores na perspectiva das condições evolucionistas (seres supremos, leis morais, mitologia, etc.), o que deixa à mostra a ingenuidade dos estudiosos da época no sentido de procurarem construir uma história da evolução dos fenômenos religiosos, como se estes estivessem sujeitos a um processo evolutivo que partiria das formas mais elementares para avançar às formas mais complexas até chegar, finalmente, a uma concepção monoteísta de Deus.

Para Eliade, portanto, a hipótese evolucionista das manifestações religiosas mostra-se indemonstrável porque violadora dos próprios fatos religiosos; no que toca ao interesse dos estudiosos da época pela busca da origem da religião o mesmo autor (apud Guimarães, 2000, p. 233) contrapõe o consenso que passou a vigorar acerca da impossibilidade da descoberta da origem da religião, sobretudo por causa da própria complexidade dos fenômenos religiosos como também em razão do número reduzido de dados disponíveis sobre as primeiras civilizações, além de que as recentes descobertas da paleontologia têm em comum o fato de recuarem cada vez mais longe no tempo os começos do homem e da cultura.

Eliade (RA, p. 11) afirma ainda que, cedo ou tarde, essas reconstruções hipotéticas da origem e da evolução das religiões arcaicas se tornaram caducas, e que elas passaram a não ter maior interesse do que o interesse histórico de constituírem uma etapa da evolução do pensamento ocidental, pois desde o início do Século XX a historicidade das civilizações e religiões arcaicas passou a ser universalmente admitida.

Contra o reducionismo do positivismo naturalista, Eliade argumenta ademais com a inegável historicidade do fenômeno religioso da qual não se pode abstrair quando se vai estudá-lo.

1.2.2. A segunda fase dos estudos sobre a religião – o movimento do positivismo

No documento marialuizaviannapessoademendonca (páginas 67-72)