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Uma das observações mais aparentes, no processo de aprendizado que o curso de Didática para o Ensino Superior do Projeto Mestre apresenta, é a mudança de concepção sobre os princípios, conceitos e práticas, na atuação docente, que vão ocorrendo durante todo o curso.

A partir do seu início, o curso já propõe uma reflexão sobre as referências existentes, relacionadas à docência, fruto da vivência de cada aluno durante sua vida acadêmica (no mínimo 20 anos). Após esta fase inicial, há um estudo voltado para as aspirações dos referidos alunos, agora como futuros professores, na direção da sua futura ou presente atuação docente. E exatamente no meio do curso, por volta do terceiro mês de aula, começa a surgir naturalmente, um novo olhar, uma nova “visão estratégica”, que traz consigo a possibilidade de quebra de paradigmas ou a complementação dos atuais paradigmas, alicerçados em novas perspectivas. Há uma natural mudança de concepção sobre o papel e função da aula e, consequentemente, da atuação docente, a partir do curso.

Na visão de Resende (2008), as concepções pedagógicas transitam entre polos, por vezes contraditoriamente dispostos, o que pode ser interpretado pelo fato de que o próprio ato educativo busca promover a manutenção de modelos e também fomentar a transformação e a emancipação humana. Ela ainda complementa:

Trata-se, pois de um campo permeado por conflitos e inseguranças, mas inclui certezas e convicções, que segundo Nietzsche (2001), são mais perigosas para a busca da verdade, mesmo que temporária, que as próprias mentiras. Assim, o trabalho pedagógico concebido e vivenciado ao longo do tempo tem refletido princípios, concepções e posturas que podem promover avanços educativos em determinados tempos e espaços e, ainda, verdadeiras ciladas em processos interpretativos da realidade. Mas qualquer que seja o resultado dessa interpretação, as marcas deixadas vão se explicitando de maneira a compor um rico mosaico, com muitas co-autorias. (Resende, 2008, p. 10)

No momento em que as entrevistas foram realizadas - no meio do curso - os alunos estavam mergulhados exatamente no centro desta reflexão. É exatamente sobre as respostas que contém alguma percepção de mudança a partir do curso em andamento, percebidas neste momento do curso, que trata este item de análise.

Maria pensava que “o professor universitário teria que ter um preparo grande, de ser um PhD e especialista num assunto para poder lecionar”. Acreditava que somente o conhecimento pleno da matéria poderia transformá-la numa professora qualificada. Mesmo sentindo-se vocacionada para a docência e com diversos convites para atuar como professora universitária, pelos excelentes resultados obtidos, tanto profissionalmente, como na sua trajetória intelectual e acadêmica, sentia-se impotente para tal. Ela relata:

Eu achava que era um caminho muito longo para a docência, e o curso me tornou mais próxima dela. Eu mesma sempre pensei que o professor universitário teria que ter um preparo grande, ao ponto de ser PhD e especialista num assunto, uma sumidade, e aí percebi que o professor tem que ter conhecimento, sim, mas também tem que ter domínio da comunicação, tem que saber verbalizar. Eu acreditava que a forma de lecionar era uma particularidade do professor, um jeito dele dar aula – se sou de um jeito, não há como melhorar, mudar. Então, ah..., o curso me mostrou em sala de aula, que tudo é técnica, o “como” lecionar e tudo mais você desenvolve. Então, isso é o que mais mexeu comigo. Agora sei que, se eu tenho pontos falhos, eu tenho como observar e arrumar isso, entendeu? Adaptar à sala de aula, e seguir essa estratégia e organização, independentemente do assunto.

Na fala de Maria, podemos perceber a descoberta de um novo paradigma, um novo modelo percebido por ela, voltado para a formação docente. Percebemos que, ao mesmo tempo em que estas “novidades” vão aparecendo, e que as referências se multiconfiguram, se estabelece uma “negociação” entre os valores estabelecidos e as novas realidades. Ao tratar das crises identitárias na vida profissional, Dubar (2009, p.226) também aponta estas “negociações”, quando diz que “na vida profissional, as mudanças de todos os tipos aumentaram: mobilidades coagidas, mas

também voluntárias, rupturas impostas, mas também progressões negociadas, precariedades sofridas, mas também, experimentações desejadas. ”Neste sentido ainda encontramos “eco” nas palavras de Resende (2008), ao afirmar que:

A despeito do paradigma no qual se assenta, o trabalho pedagógico e docente segue transitando entre crises de certezas e incertezas, não só pela negação paradigmática, mas pela multiconfiguração de referências, segundo os critérios e a imaginação daqueles que o concebem e/ou vivenciam. Parcelas significativas de educadores demonstram profundos sinais de inquietação e até mesmo de perplexidade, pois os mapas cognitivos, interacionais e societais que lhes eram familiares deixaram de ser confiáveis. [...] Neste âmbito, o trabalho pedagógico em sua unicidade teórico-prática não prescinde dos sujeitos da ação e, portanto, de marcas identitárias. (Resende, 2008, p. 11)

Claudia, por sua vez, pontua claramente o sentido de “resgate” de valores que o curso proporcionou, especialmente no sentido da admiração e valoração da profissão docente, além do resgate da importância que a comunicação tem para a formação de um bom professor e, de forma geral, de um bom profissional. Ela diz:

O curso me fez resgatar um conceito lá de trás, assim..., de respeito, de admiração, de valorização e de prazer porque eu estava meio na “onda” de achar que é ruim ser professor, que é desvalorizado, que..., então me fez resgatar um conceito mesmo, lá de trás, de que é bacana, de que é uma opção, é..., profissional e essa coisa da comunicação, né, de você abrir um caminho. [...] Resgatar uma valorização que eu tinha, acho que uma visão talvez mais idealizada, né, eu acho que a gente perde um pouco. [...] Resgatou uma vontade antiga que eu tinha, de ser professora.

Ao tratarem do tema “prazer versus disciplina na educação”, Dalvério e José Filho (2006) se remetem a Rubem Alves (1985), que sustenta a tese do prazer na educação como sendo um acontecimento intrínseco e necessário à formação da personalidade do aluno e também no desenvolvimento qualitativo do professor, dentro e fora da sala de aula. No processo através

do qual há essa realização, há também o desabrochar da perspectiva humana tanto do aluno, como do professor, quer seja na sua formação, quer seja no resgate de valores perdidos. O professor deve pautar-se pelo aprendizado que insere o desejo, na busca de satisfação pessoal do aluno. Isso acontece mediante o uso da linguagem no seu sentido lato e dinâmico. Da utilização de uma linguagem ampla, composta de ações diversas, voltadas para a comunicação e intercomunicação de ideias e pensamentos, de um contato real entre alunos e professores. O professor, utilizando-se de uma linguagem ampla que lhe é própria e que pode ser constituída através do estudo e da ressignificação, expressa uma realidade e desperta no aluno um desejo de conhecê-la também. Tendo-a por objetivo no ensino- aprendizagem, o aluno procura o domínio tanto da linguagem em sentido amplo, quanto da realidade. O prazer de conhecê-las se manifesta como coroamento da assimilação que o aluno efetiva.

Para Virgínia, que já teve experiência como professora na área do Direito, fica clara a percepção de mudança que a formação didática e comunicacional proporciona. Ela relata:

[...] Mudou, e mudou muito. A gente tem aquela... , aquela ideia de que lecionar na área do direito é expor para os alunos, conhecimentos pré-adquiridos. E a gente vai vendo durante o curso, que nessa nova concepção de didática, tudo é bem diferente. Porque a gente não é do mundo da educação, é do mundo do direito, é uma coisa mais fechada, e a gente tem aquelas ideias que são passadas através da jurisprudência, através da doutrina. As ideias novas que vêm, a gente nunca pára prá pensar. Eu pelo menos, que nunca dei aula, mas que sempre prestei muito a atenção em como os professores lecionavam, não vejo essas formas de comunicação que foram apresentadas aqui, dentro de uma sala de aula. Prá mim, tá sendo assim, maravilhoso. [...] Eu hoje percebo a dificuldade que existe na hora de levar os ensinamentos para a prática, na hora de apresentações em sala de aula e tudo mais. Tudo por conta da falta de uma visão neste sentido. [...] Com as aulas de didática, que de certa forma, vão trazendo em si essa necessidade, foi super positivo. Agora a gente já conversa, muitos já estão, assim, no "face" (facebook) como amigos, a gente acaba, ah..., interagindo, acaba se sentindo melhor dentro desse universo da sala de aula, porque conhece um pouco mais. Não somos mais um, entre estranhos.

Da mesma forma, Fausto reafirma que mudou muito a sua forma de compreender a função docente. E mais que isso, passou a refletir sobre suas dificuldades e possibilidades. Para Fausto, ficava clara a percepção do resultado positivo ou não de uma aula, mas não sabia detectar o que motivava tal resultado. Aprendeu com o curso a fazer uma análise mais detalhada do processo de aula como um todo e também aprendeu a fazer uma autoanálise voltada para a sua participação, como aluno e futuramente como professor. E, dentre os diversos pontos que foram alterados com o curso, destacamos o relato de que “o curso mudou até a minha postura física, a maneira como eu me coloco na frente de outras pessoas, uma mudança integral, interna e externa”. E Fausto complementa:

Olha, para ser sincero, o curso e estas aulas mudaram muita coisa. Eu acho que as aulas são muito ricas, é..., talvez o conteúdo das aulas seja uma coisa que nós já temos de senso comum, mas que nunca tinha sido refletido. Porque todo mundo sabe perceber aquele professor que vai bem, e aquele professor que vai mal, mas não sabe o porquê que ele tá indo bem, ou o porquê que ele tá indo mal. Então, o curso esclareceu muita coisa a esse respeito. E a partir daí, você pode fazer uma autocrítica, uma autoanálise. [...] O curso mudou até a maneira da minha postura. [...] Você que é advogado, de repente você é chamado para dar aula, ensinar, e aí você "cai de paraquedas" lá, e você segue um roteirinho que você planejou de aula, enfim, não tem qualificação. Então, na verdade, é buscar a qualificação. Então, acho que é uma reflexão, né? Essa experiência que eu tive, que eu falei antes, eu vivenciei, mas não tinha refletido (ele teve uma vivência como professor). A primeira vez que eu fui refletir dessa vivência, foi quando o senhor começou a falar... E aí, eu pensei: nossa, é mesmo, né! (risos) Eu passei por isso, por esta experiência tão importante e não tinha percebido nada do que fazia ali. Assim, né, eu não tinha parado para refletir que a minha dificuldade estava na falta de consciência do que significava o ato de ensinar. Eu vivenciei aquilo, sem..., sem perceber exatamente o que estava acontecendo. Agora eu vejo como eu posso trabalhar melhor os questionamentos em sala de aula. Por exemplo, essa visão de detentor da informação, da verdade e tal, isso não existe mais. Só que alguns não se tocaram disso ainda.

Ao analisarmos a fala de Fausto, podemos perceber que todo o processo das aulas de didática para o ensino superior do Projeto Mestre, gerou não só uma reflexão voltada para a prática docente, que o mesmo já

havia experimentado enquanto professor, numa experiência única, sem qualquer consciência de como desenvolvê-la, mas também uma transformação integral na prática como aluno e como professor. Através da colocação de Fausto, confirma-se a necessidade de uma mobilização dos saberes inerentes à docência e as competências necessárias ao seu exercício profissional.

Gatti (2009) nos lembra que Tardif (2002, p.36) coloca estes saberes como um “saber plural”, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais. Apesar da diversidade de temáticas e de abordagens em relação à docência, observa-se que um aspecto comum aos diversos estudos é a ênfase nas relações entre o exercício profissional e os saberes inerentes à profissão, entendidos num sentido amplo, que inclui o saber fazer, mas envolve “os conhecimentos, as competências, as habilidades (ou aptidões) e as atitudes dos docentes” (TARDIF, 2000, pp. 13- 14)

“Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.” Paulo Freire

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