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Percepções dos egressos acerca da organização pedagógica utilizada nas disciplinas de

5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

5.3. O olhar médico sobre sua formação acadêmica para a APS

5.3.1. Percepções dos egressos acerca da organização pedagógica utilizada nas disciplinas de

Como foi descrito na caracterização dos sujeitos de pesquisa anteriormente, parte dos egressos entrevistados formou-se na transição do currículo antigo para o novo. Desse modo, nas suas falas, percebe-se que a formação para a APS era pouco incentivada no modelo curricular antigo, como relata o profissional a seguir:

“... peguei a transição entre o currículo antigo e o modelo atual. No

currículo antigo, faltou muita coisa, principalmente relacionado à saúde pública. Pouca coisa da graduação eu aproveitei depois. Eu aproveitei mais na Residência. A graduação é muito voltada para o hospital. Pode

ser que tenha melhorado, mas na minha época, era muito hospitalar e

direcionado para especialidade” (Profissional 4).

O entrevistado compreende que sua formação na estrutura curricular antiga era inadequada para torná-lo apto a atuar na APS, e que suas lacunas formativas foram preenchidas com saberes que adquiriu ao realizar a RMFC. Sua formação curricular era pautada no paradigma flexneriano, voltada para práticas hospitalocêntricas como também evidencia o Profissional 1:

“... na época que eu fiz minha graduação, a gente não tinha as cadeiras

de que eles chamam hoje de ABS, a gente tinha as cadeiras da grade, da formação mesmo, antiga, dos grandes sistemas, tinha tantos créditos em cardiologia, tantos créditos na reumatologia, na ortopedia, mas não tinha um olhar pra atenção primária, então assim, mesmo nos últimos anos da graduação, quando a gente passa pelo internato, tudo isso era muito

voltado pro hospital...” (Profissional 1).

Em relação às estratégias pedagógicas e organizacionais adotadas nas disciplinas iniciais do módulo longitudinal de ABS, surgem algumas críticas, como se percebe na fala do seguinte profissional:

“É importante você contextualizar o aluno dentro do sistema de saúde

que ele tá entrando ou já entrou, então é importante ter essas cadeiras no início, mas o processo pelo qual me foi passado foi mais aquele negócio

“professor- lousa e alunos”, mais estático, mais sacal, a lei 8080, a lei

num sei o quê, então pra aquele aluno que tá entrando na faculdade, aquilo é meio distante, meio solto e o aluno mesmo ali só quer decorar pra poder passar pelas provas. Acaba que não amadurece, não

interioriza o quanto aquilo vai ser importante mais lá na frente.”

(Profissional 1).

Esse relato do médico evidencia a presença de práticas docentes ancoradas na pedagogia tradicional, a qual é descrita por Pereira (2003) como uma tendência na qual as ações de ensino estão centradas na exposição dos conhecimentos pelo professor, então visto como um organizador dos conteúdos e estratégias, responsável por conduzir todo o processo educativo. Dessa forma, há predominância da exposição oral dos conteúdos para posterior memorização dos mesmos. Nessa forma de ensino, os conteúdos e procedimentos didáticos não estão relacionados ao cotidiano do aluno, tampouco às realidades sociais.

É o que Paulo Freire denominou de educação “bancária”, pois o aluno, nesse molde, é reduzido a um depósito passivo de informações transmitidas pelo professor. A consciência bancária “pensa que quanto mais se dá, mais se sabe” (FREIRE, 2001). Mas a experiência mostra que neste sistema só se formam indivíduos medíocres, por não haver o estímulo para a criação. Deve-se adotar a pedagogia crítica, problematizadora, como método de ensino, na qual o docente está no mesmo nível dos alunos e na qual o ensino será baseado no diálogo entre ambos, e a partir dessa relação dialógica é que o conhecimento será produzido.

Na concepção de alguns egressos, foi apontado como um desafio o fato das disciplinas do módulo de ABS apresentarem como coordenadores especialistas de outras áreas, e que não atuavam na APS, como é relatado pelo profissional a seguir:

“Nos primeiros semestres, acho que até o quarto semestre, eram cadeiras

mais relacionadas com a parte teórica da APS, abordagem do SUS, dos princípios, foram boas, os professores geralmente davam atenção pra gente. O grande problema foi nos últimos semestres, nas práticas, porque as práticas eram coordenadas por especialistas que não têm atuação na APS, e inclusive nos últimos semestres sempre havia avaliação das disciplinas e sempre essas disciplinas relacionadas à APS eram mal

avaliadas.” (Profissional 7).

É recomendada a participação do médico especialista em MFC (com residência médica ou título de especialista na área) no quadro de docentes e preceptores, visando uma proporção adequada de docentes especialistas em MFC entre os demais docentes universitários. Assim, torna-se possível uma adequação ao modelo pedagógico proposto pelas DCN, que é voltado para formação de um perfil médico que atenda às necessidades de saúde da população (DEMARZO et al, 2011). Essa recomendação de equilibrar o quadro docente e de preceptores com formação em MFC só tem a contribuir no aprimoramento das disciplinas de ABS, para que não ocorra esse mal direcionamento da prática na APS como é apontado pelo profissional 3:

“... a gente tem poucos médicos de família, na UFC, na graduação ou no

internato, e a gente tem poucos, além de ter poucos lá, a gente tem poucos médicos de família na chefia do departamento, na chefia de cabeça, isso aí também contribuiu muito pra uma visão enviesada da

atenção primária.” (Profissional 3).

A preceptoria médica das disciplinas de ABS constitui-se num desafio, como foi relata-se a seguir:

“... a pessoa que me recebeu lá no posto não entendia direito o que é que

aquela gente tava fazendo ali, e às vezes botava a gente pra ficar pesando as crianças na sala de sinais vitais, então era assim, um negócio muito

solto, e confesso que pouco proveito tirei daquilo...” (Profissional 1).

Esse relato expõe algumas falhas no processo organizacional das disciplinas que devem ser avaliadas para sua melhoria. A primeira falha é o desconhecimento, o despreparo dos preceptores do território. Muitos são médicos do serviço que foram escolhidos por acaso, sem um alinhamento pedagógico anterior com a IES para que pudessem compreender que o papel do preceptor é propor, viabilizar e problematizar atividades que façam sentido para o estudante, para a unidade de saúde e para os usuários, e para que, assim, agreguem elementos relevantes à produção do perfil profissional (FEUERWERKER, 2011). Outra falha é a ausência de planejamento, ou seja, a universidade deve capacitar os preceptores e construir junto ao serviço de saúde um plano de atividades a serem desempenhadas pelos discentes durante o período da disciplina.

Cerqueira afirma que a interação preceptor e discente na APS traz a possibilidade de se produzir, a cada encontro, um saber inédito sobre o doente, sua doença e sua vida. Esse conhecimento pode gerar conexões entre as competências e as tecnologias a cada vez que é acionado, e como resultado pode possibilitar um saber mais completo e complexo sobre a vida das pessoas e sobre o agir em saúde, contribuindo assim para uma formação na qual teoria e prática se tornem indissociáveis, de modo que o mundo acadêmico e o mundo do trabalho operem em rede (CERQUEIRA, 2011).

O módulo de ABS insere os alunos no território desde o primeiro semestre com a disciplina Fundamentos da Prática e da Assistência Médica. A pesquisa mostrou concepções positivas a respeito dessa disciplina como está apontado na fala abaixo:

“... me ajudou também, a ter uma vivência na unidade de saúde, ter ideias de equipamentos da saúde dentro da comunidade, eu lembro da gente ter visto o pré-natal, lembro de outros atendimento.” (Profissional 2).

Surgiram também críticas em relação à inserção no território ocorrer no início do curso e demorar vários semestres para uma nova inserção dos discentes no território da ESF. Essa descontinuidade da inserção discente na lógica do território da ESF é considerada inadequada como é apresentado no relato a seguir:

“... a faculdade deveria organizar melhor as disciplinas de ABS e torná-

las mais práticas, com vivências reais nas UBS, e não só mandar os estudantes lá e esperar que vão aprender alguma coisa, que vão se comprometer. Nós vivemos num país tão carente, nós temos um Sistema Público que é universa,l então nós temos que formar anestesiologistas, temos que formar cardiologista, mas a gente tem que formar muito médico de família. E não é com o modelo atual da faculdade que você vai ao posto de saúde no primeiro semestre e só volta no internato! Não é assim que você vai estimular os estudantes a fazerem Medicina de

Família...” (Profissional 7).

É salutar que o ensino na APS esteja presente longitudinalmente, ao longo de todo o curso, de preferência com inserções significativas que visem o aprendizado real que se dá a partir do trabalho, mas que, sobretudo, deva fazer parte do núcleo de ensino da prática clínica do futuro médico. Abaixo, está representada outra concepção que confirma a necessidade das disciplinas com práticas na APS serem longitudinais e contínuas, presentes a cada semestre para direcionar a formação médica ao perfil que contemple as demandas da sociedade:

“... tem que se investir principalmente nos primeiros semestres. Na minha

época, só teve saúde pública no primeiro semestre, uma disciplina, e depois passou vários semestres até que tivesse novamente conteúdos pinçados. Tem que investir nos primeiros semestres porque a gente entra na faculdade de medicina com pensamento hospitalar, de ter um consultório, fazer cirurgia, fazer procedimentos de alta complexidade. E

hoje eu sei que a maior parte em que vamos trabalhar não é nisso.”

(Profissional 4).

Essas disciplinas da ABS devem ser inseridas de forma longitudinal e contínua num modelo que apresente grau crescente de complexidade e, de preferência, com atividades na APS em todos os períodos do curso. Desde o primeiro ano devem-se desenvolver atividades envolvendo as abordagens do indivíduo, da família e da comunidade de forma integrada.

5.3.2. A importância da ABS para a formação médica e o território da ESF como potente