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Ao longo das conversas aprofundadas com as colaboradoras da pesquisa foi possível desvelar como parte de seus sentimentos estão marcados por uma percepção ancorada por sentimentos racializados. As percepções por elas anunciadas retratam a forma como elas percebem os outros, e como os outros a percebem, por meio de seus respectivos pertencimentos étnico-raciais.

São as formas de perceber a si mesmas e aos outros, bem como de estar no mundo que possibilitam as suas construções de percepções e sentimentos pautados em seu pertencimento étnico-racial. Assim é interessante compreender como as colaboradoras utilizam das mesmas palavras com diferentes sentidos, sentidos esses direcionados a partir de seus pertencimentos étnico-raciais. Por exemplo, as experiências que remetem a construção de uma percepção do que significar resistência são muito distintas entre a professora negra e a professora branca.

Quando percebi que havia resistência do adulto em aceitar o racismo e principalmente o próprio racismo, entendi o quanto delicada é essa questão. E eu acho que às vezes a gente fala que não existe, que não acontece, mas acontece (Patrícia).

[...] Porque quando eu lembro /e choro, eu choro /mais pelo que eu já passei antes, do que por agora; agora estou mais resistente, não fico mais escandalizada, nem tão traumatizada [...] (Luísa).

Dessa forma, resistência, para Luísa, se remete a uma atitude dela própria em enfrentar as condições adversas provocadas pelo racismo. Já para Patrícia resistência está nos demais adultos que trabalham com ela, em aceitar a existência do racismo, dessa forma a dificuldade em aceitar a existência do racismo é atribuída aos adultos, pois as experiências descritas pelas professoras demonstraram que os adultos apresentavam maior dificuldade em compreender e receber um trabalho voltado a educação das relações étnico-raciais.

Para a professora negra, as experiências de resistência foram marcadas por sentimentos como: desconfiança de terceiros, estranhamento, constrangimento, necessidade de valorização dos negros/as, preocupação e acolhimento das crianças negras. Sentimentos esses construídos nas relações com as crianças, familiares, colegas de trabalho, comunidade, entre outros.

E assim, eu lembro que alguns pais verbalizavam, que a creche precisava renovar seu quadro, concluindo que seria melhor quando nós estivéssemos fora. Aliás, opinião compartilhada também por outras pessoas do administrativo (Luísa).

Ah!! Hoje eu recebo a infância negra com muito mais acolhimento, sabe! Hoje eu tenho assim uma vontade de fazer a diferença,porque por tanto tempo isso foi ficando, foi ficando à margem, porque as pessoas não tinham essa preocupação e hoje quando a gente toma essa consciência, se tem vontade de fazer a diferença, de fazer com que aquela criança tenha o máximo de oportunidade, que o seu potencial seja explorado ao máximo, de que ela se sinta o máximo possível, acolhida, valorizada, amada, e aceita (Luísa).

Os sentimentos das colaboradoras são ancorados em uma perspectiva de pertencimento étnico-racial, e esses sentimentos emaranham-se nas práticas pedagógicas por elas desenvolvidas e afetam suas percepções, ou seja, seus olhares, tato e audição quando percebem, desde o inicio do ano letivo, uma criança negra sob sua responsabilidade. Dessa forma, as experiências vivenciadas pela professora negra possibilitaram que se construísse uma profissional que almeja fazer a diferença em favor

das crianças negras, pois para Luisa a criança negra é o seu igual, o seu par e não o diferente.

Considerando as percepções que envolvem os sentimentos racializados (que tomam como base o pertencimento étnico-racial próprio e das demais pessoas que nos relacionamos), foi possível compreender que os significados de diferença são distintos entre as colaboradoras da pesquisa. A esse respeito, a professora nipônica demonstra que, para ela diferença é o conteúdo a ser trabalho com as crianças e a ser aprendido por ela, a diferença é o que ela tem a aprender e a ensinar, ou seja, a diferença é algo que busca experienciar em um universo majoritariamente branco. Embora a professora seja de origem nipônica e afirme que o espaço de trabalho é predominantemente branco, ela não se percebe como pertencente a minoria, ou a diferença, mas reconhece os negros como os diferentes.

Agora sobre essa questão da infância negra, acredito que seja muito bem vinda mesmo porque pensamos nestas questões há muito tempo, mas a realidade revela que é uma “creche branca”, predominantemente branca, então eu acho que ainda e sempre temos muito a aprender, muito a conviver, muito que ouvir, e muito muito para saber e para olhar, espero que seja uma infância feliz! (Tizuko).

Para a professora euro-descendente os sentimentos racializados são ancorados no conflito, que se configura nas ações de combate dos benefícios de ser euro-descendente em uma sociedade eurocêntrica, e reconhecimento do outro. Assim ela vive uma luta interna que se exterioriza nas angustias de convencer seus pares, demais euro- descendente da responsabilidade de todos/as para combater o racismo e as distorções por este geradas. Para Patrícia os sentimentos perpassaram por: dor, erro, má recepção, defesa, acusação, cuidado, superioridade, inferioridade, descaso e boicote.

Ao relatar sua experiência com uma mãe de uma criança negra, Patrícia narra: E o fato dela ter ficado brava comigo me incomodou, porque parece que doeu nela. Entendeu? Fiquei encabulada com a reação dela, porque parecia que eu tinha feito algo muito errado [...] Mas, eu

sempre tenho essa mãe na minha cabeça, defendendo o filho, pelo fato de ter falado da criança, do menino, eu sempre me lembro disso.

Ao se constituírem profissionais de Educação Infantil as colaboradoras da pesquisa, conseguiram criar práticas pedagógicas voltadas à promoção da igualdade étnico-racial, para realizar seu trabalho, inclusive a professora branca, experimentou sensações de rejeição:

Inclusive quando eu fui levar pessoas do Movimento Negro para dar palestra lá em Taquaritinga, aconteceu uma coisa muito chata, porque a vivencia que eu tive foi de uma má recepção das pessoas negras que foram dar palestra [...] A professora disse no curso que eu havia impedido a contação da história daquele livro [que continha passagens racistas], mas não explicou o motivo. E eu passei por autoritária[...] Aquele projeto de maculelê foi muito rico, mas houve um descaso tão grande em relação a esse trabalho, que até em uma festa que a gente foi apresentar para os pais, boicotaram nosso trabalho, e a apresentação aconteceu com poucos pais participando.

Os relatos desvelam alguns sentimentos experimentados pelas colaboradoras ligados a rejeição, descaso e julgamentos injustos quanto as suas posturas. Esses sentimentos foram atravessados por uma percepção pautada em um juízo de valores racial no qual inferiorizava os negros/as por parte das pessoas que estavam atuando com as colaboradoras. Assim, mesmo a professora branca vivenciou sentimentos racializados dos outros para com o seu trabalho.

A iniciativa de trabalhar com a educação das relações étnico-raciais tem início por motivações muito distintas, mas tem o mesmo objetivo que é a recepção e possibilidade de que negros/as tenham direito ao acesso e permanência de qualidade nas instituições de ensino que as professoras trabalharam. Os sentimentos racializados, pautados em uma percepção que inferioriza negros/as, experienciados por e para com as colaboradoras da pesquisa se tornam ambíguos, pois funcionam como uma gangorra, ora as professoras conseguem tomar impulso e buscam formas de corrigir equívocos, distorções e combater o racismo, mas em outros momentos seus pés estão fora do chão

e elas perdem o alicerce, não conseguem vislumbrar os negros e negras para além das situações de racismo, distorções e equívocos. O impulso que as professoras recebem advém das forças das crianças negras com quem atuavam, dos cursos de formação e do movimento negro, do outro lado da gangorra fazendo um impulso contrário elas precisam lidar com o descaso e posturas racistas dos seus dirigentes, da falta de políticas públicas, de alguns familiares das crianças e de parte dos funcionários, que se ancoram nas ideologias de racismo e adultocentrismo.