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3.1 – O PERCURSO QUE LEVA À MÚSICA POPULAR BRASILEIRA DE PROTESTO

3 – DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA DE PROTESTO À “LÓGICA DA SUSPEIÇÃO” E SEU ANTICOMUNISMO

3.1 – O PERCURSO QUE LEVA À MÚSICA POPULAR BRASILEIRA DE PROTESTO

Hoje eu queria apenasmente escutar besteiras, meu amor/ Ouvir canções ingênuas como as que cantaram um dia o Roberto e o Erasmo/ Dizer do espanto e do espasmo de alguém como eu quando ouve música/ Principalmente quando insistem nessas coisas que você faz muito bem em não compreender/ Quem vai lembrar você, quem lembrará de mim, o que será de nós?/ Ando tão cansado e 26 anos é muito pouco, meu amor/ Pra ter que suportar um quarto escuro como se eu fosse uma fera ou um vampiro/ E de suspiro em suspiro eu vejo o fim desse poeta como um doido/ Principalmente se a chuva passa e a manhã fracassa/ E não consegue o sol fazer nascer/ [...]/ Se eu não nasci em Londres/ E por isso mesmo não posso cantar como John Lennon/ Se eu nunca vou a praia e também não consigo me divertir no futebol/ Se eu, jovem compositor e poeta talentoso, inteligente, com futuro/ Planejo minha vida, como na canção que o povo canta, pra morrer no carnaval/ Basta: o silêncio já não me machuca [...].

Sérgio Sampaio, O que será de nós? (1974).

Apesar de termos esclarecido na Introdução, que utilizamos o termo “música de protesto” ao invés de “música engajada”, é necessário definir melhor como se formou a chamada música de protesto. Uma música ou, pelo menos, um segmento desta, que, desde meados dos anos 1960 se balizava pela defesa do nacional-popular, e que foi ampliada a partir de 1968, na direção de outras matrizes culturais, além de incorporar o tropicalismo, no pós- 1968. Diferente do que fizemos em texto anterior (SOUZA, 2009), partimos aqui da diferença entre “música de protesto” e “música engajada”, pois, para fins didáticos, essa diferenciação é necessária, mesmo que seja tênue. Como dissemos antes, acreditamos que a “música engajada” está mais para a música produzida no início da década de 1960 por uma ala da Bossa Nova (a ala nacionalista) e sob a orientação do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, ao passo que a “música de protesto” se desenvolveu mais a partir de meados daquela década por meio dos Festivais da Canção. Essa bossa nova nacionalista, de acordo com Miliandre Garcia (2007), será a referência estética e ideológica daquilo que se firmará mais tarde como canção engajada, quando ocorre uma certa politização da bossa nova. Assim, logo no início do movimento, em 1959, segundo a autora, pode-se dizer que

[...] o lançamento do disco Chega de Saudade, de João Gilberto, sintetizou as principais inovações estéticas e as aspirações dos músicos da bossa nova. Entre elas, havia a modificação rítmica do samba, a integração entre ritmo, harmonia e contraponto, a função assumida pelo violão, a interpretação contida e anticontrastante, a metalinguagem, a releitura de gêneros musicais

como o samba-canção e o bolero, além do diálogo com influências heterogêneas como a música erudita e o jazz (GARCIA, 2007, p. 58).

Todavia, no início dos anos 1960, acentuar as diferenças entre a bossa nova e o jazz, tinha como objetivo, além de precaver-se contra as críticas que consideravam àquela elitista, sem conteúdo e voltada para o consumo externo, também resgatar os vínculos com a tradição da música popular brasileira. Nesse sentido, “podemos considerar o diálogo entre tradição e modernidade como uma das tentativas de politização e popularização da bossa nova por músicos que integravam o CPC, a exemplo de Carlos Lira” (GARCIA, 2007, p. 60).113 Em outras palavras, pode-se dizer que a Bossa Nova apresentou duas fases distintas em relação ao passado musical, conforme Miliandre Garcia (2007, p. 62): “inicialmente, para se firmar no cenário musical brasileiro, distanciou-se das origens da música popular e, em seguida, para se defender dos rótulos de música alienada e música para exportação, resgatou as tradições populares, a exemplo do diálogo com o samba e a música regional”. Segundo Napolitano (2007, p. 71), já em 1959, “[Ronaldo] Bôscoli, que trabalhava na revista Manchete, Moisés Fuks, no Última Hora, e João Luiz de Albuquerque, na Radiolândia, encarregavam-se de consolidar a expressão ‘bossa nova’ [...] [na imprensa]”. Dessa forma, no início dos anos 1960, como estratégia de publicidade, “a indústria fonográfica e os meios de comunicação transformavam em antiquado tudo o que viera antes da bossa nova [em termos de música]” (GARCIA, 2007, p. 83). Daí a expressão “samba quadrado” para os sambas da velha guarda em oposição ao chamado “samba moderno” dos bossa-novistas.

É através desse diálogo entre tradição e modernidade, segundo Marcos Napolitano, que surge a Bossa Nova e, a partir dela, a música engajada. Ele estabelece que a própria consolidação do termo bossa nova vai estimular ainda mais as aglutinações contrárias ou a favor do movimento. Assim, “rapidamente o ‘samba moderno’ passou a ser visto como a antítese do ‘samba quadrado’, ou seja, aquele samba com um ataque percutivo e divisões rítmicas bem definidas. Mas, no seio do ‘samba moderno’, surgia uma outra clivagem, que acabou por politizar a bossa nova e iniciar outra tradição: a canção engajada ou ‘de protesto’” (NAPOLITANO, 2007, p. 72). Marcos Napolitano (2007) assinala que o lançamento da canção “Quem quiser encontrar o amor”, de Carlos Lira e Geraldo Vandré, em disco de 1961,

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Sobre Carlos Lira, ver o 3.° capítulo de: GARCIA, Miliandre. Mais que nunca é preciso cantar: síntese e dissonância em Carlos Lira. In: Do teatro militante à música engajada: a experiência do CPC da UNE (1958- 1964). São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo, 2007, p. 87-123. E também: CONTIER, Arnaldo Daraya. Edu Lobo e Carlos Lira: o nacional e o popular na canção de protesto (os anos 60). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 35, 1998, p. 13-52.

e interpretada por Vandré, foi visto como um marco na criação de uma bossa nova participante ou engajada, na medida em que esta canção se incumbia de ser

[...] portadora de uma mensagem mais politizada que trabalhasse com materiais musicais do samba tradicional. A letra rompia com o elogio do “estado de graça” da bossa nova, em cujas canções a figura do “amor” surge como um corolário do estado musical-existencial do ser em equilíbrio. Nesta canção, em particular, o “amor” surge como fruto de sofrimento e luta (NAPOLITANO, 2007, p. 72).114

A referida canção “[...] tornou-se uma variante do paradigma bossa-novista, lançando as bases para uma canção ‘nacionalista e engajada’, de olho na tradição, mas que incorporava parte das ‘conquistas’ estéticas da bossa nova” (NAPOLITANO, 2007, p. 73), ao lado de outra, chamada “Zelão”. Esta, composta por Sérgio Ricardo e lançada em 1960, contava em sua letra “a história de um favelado que perdia sua casa numa chuva, passando a contar apenas com a solidariedade dos outros habitantes do morro” (NAPOLITANO, 2007, p. 73).115 Ou seja, essas duas canções mencionadas, veiculam uma série de imagens poéticas, as quais se tornariam recorrentes na canção engajada, como “a romantização da solidariedade popular; a crença no poder da canção e do ato de cantar para mudar o mundo; a denúncia e o lamento de um presente opressivo; [e] a crença na esperança do futuro libertador” (NAPOLITANO, 2007, p. 73). Por isso, pode-se dizer que as conquistas estéticas da Bossa Nova já tinham sido reprocessadas por volta de 1962, “gerando um ‘samba moderno e participante’, cujos criadores principais foram Carlos Lira e Sérgio Ricardo” (NAPOLITANO, 2007, p. 73).

Apesar de Marcos Napolitano, como vimos acima, não partir da diferença entre “música engajada” e “música de protesto”, é preciso perceber algumas diferenças entre ambas. Todavia, concordamos com a análise de Dilmar Miranda que, ao mencionar a agitação do final dos anos 1950 e início dos anos 1960, no pré-golpe de 1964, destaca que aquele foi um período de muitas lutas, visualizadas através das Ligas Camponesas, defesa da Reforma Agrária e da nacionalização das companhias particulares de refino de petróleo, UNE volante, Movimento de Educação de Base, da Conferência Nacional dos Bispos e Método Paulo Freire. Lutas que ajudaram na “constituição do que passou a ser conhecido como canção

engajada, com [sua] temática eminentemente social [...]” (MIRANDA, 2009, p. 127).

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Diz um trecho dessa música: “Quem quiser encontrar o amor/ Vai ter que sofrer”.

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Entre seus versos, esta letra destaca: “Todo morro entendeu/ Quando Zelão chorou/ Ninguém riu, ninguém brincou/ E era carnaval/ No fogo de um barracão/ Só se cozia ilusão/ Restos que a feira deixou/ [...]/ Mas assim mesmo Zelão/ Dizia sempre a sorrir/ Que um pobre ajuda outro pobre/ Até melhorar/ Chuveu... chuveu.../ A chuva jogou seu barraco no chão/ Nem foi possível salvar violão/ [...]/ Das coisas todas que a chuva levou/ Pedaços tristes do seu coração/ [...]”.

Sobre a relação do engajamento com a bossa nova, o autor assinala: “O engajamento foi, inclusive, um dos fatores de crise e um divisor de águas da bossa nova: de um lado, o lirismo do amor, do sorriso e da flor e de outro, a vida dos oprimidos da cidade e do campo” (MIRANDA, 2009, p. 127, grifo do autor). Além disso, a explosão comercial da bossa nova tanto no mercado interno quanto no externo, fez com que a intelectualidade engajada considerasse que a qualidade estética das canções bossanovistas não estava de acordo com o conteúdo evasivo de suas letras, surgindo a preocupação de aliar forma e conteúdo (GARCIA, 2007). Dessa maneira, à qualidade estética agregavam-se tanto a crítica social e política quanto o diálogo com as tradições populares, pois: “Com a politização da bossa nova, quem continuou a priorizar a forma ficou conhecido como alienado e alienante, e quem passou a considerar o conteúdo gozou da reputação de comprometido e participante” (GARCIA, 2007, p. 72). Porém, também houve uma supervalorização da divisão entre “intimistas” e “nacionalistas” na bossa nova, na medida em que

uma vertente “intimista” ligada à forma e outra “nacionalista” voltada para o conteúdo é, no entanto, supervalorizada em manuais, biografias e memórias da música popular brasileira. Como evidenciou o historiador Adalberto Paranhos,116 nessa divisão dualista não se enquadram músicos como Carlos

Lira, Vinícius de Morais e Nara Leão, por exemplo (GARCIA, 2007, p. 72).

Garcia (2007) alerta para as tentativas de enquadramento de alguns músicos como adeptos de uma ou outra vertente, e cita o caso de Carlos Lira, visto como o fundador da dissidência nacionalista por grande parte da literatura bossanovista, enquanto que, por outro lado, não se deve esquecer que “ele compôs simultaneamente canções consideradas “intimistas” – como “Primavera” e “Minha namorada”, com Vinicius de Moraes – e músicas rotuladas de “nacionalistas” – como “Maria Moita”, com Vinícius de Moraes, e “Feio não é bonito”, com Gianfrancesco Guarnieri”. Sendo assim, continua ela, “é difícil enquadrar alguns músicos como adeptos dessa ou daquela vertente” (GARCIA, 2007, p. 72). Em outras palavras, pode-se dizer que a atuação de Carlos Lira no início dos anos 1960, teria sintetizado alguns dilemas que se apresentavam ao músico de classe média, tido como engajado nas causas nacionalistas. Os quais poderiam ser traduzidos da seguinte forma, segundo Garcia (2007, p. 79): “como compor música ‘intimista’ sem ser chamado de alienado; como participar da fundação e organização do CPC sem abdicar da carreira profissional e do ingresso no mercado fonográfico; e como manter a qualidade técnica e estética conquistada pela bossa nova sem ignorar a tradição da música urbana brasileira”.

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A afirmação está em: PARANHOS, Adalberto. Novas bossas e velhos argumentos (tradição e contemporaneidade na MPB). História e Perspectivas, Uberlândia, n. 3, jul./dez., 1990, p. 11-12.

Daí a aproximação com alguns compositores populares como Cartola e Nelson Cavaquinho, segundo Napolitano (2007, p. 75), que lembra o seguinte: “O que estava em jogo era a necessidade de buscar novos materiais para a bossa nova, não tanto de ‘tocar junto’ com os compositores populares. Como saldo desta aproximação, o público de classe média redescobriu Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus [e Zé Keti]”. Também é importante perceber, que os músicos engajados, a maior parte deles oriunda da bossa nova que se desagregava enquanto movimento, buscavam no reencontro com a tradição, a superação dos impasses estéticos e ideológicos da canção brasileira. Nesse sentido, o lançamento do anteprojeto do Manifesto do CPC da UNE,117 em 1962, pelo economista Carlos Estevam Martins, um intelectual ligado ao ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), segundo Napolitano (2007, p. 76):

tentava apontar os rumos e disciplinar a criação engajada dos jovens artistas. Como tarefas básicas, num contexto em que o Governo João Goulart assumia as reformas de base como sua principal bandeira, o CPC se dispunha a desenvolver a consciência popular, como fundamento da libertação nacional. Mas, antes do povo, o artista deveria se converter aos novos valores e procedimentos, nem que para isso sacrificasse o seu deleite estético e a sua vontade de expressão pessoal.

Como o Manifesto do CPC reconhecia a arte de elite como superior, formalmente, à arte popular, segundo Napolitano (2007), e priorizava na obra não a qualidade estética mas a construção de um veículo ideológico que fosse adequado ao conteúdo nacionalista em questão, o “procedimento sugerido visava direcionar o artista-intelectual engajado para a busca de sua inspiração nas ‘regras e modelos dos símbolos e critérios de apreciação’ das classes mais populares, vistas como a base – ainda que ‘inconsciente’ – da expressão nacional-popular.” Ou seja, o objetivo “era facilitar a “comunicação” com as massas, mesmo com o prejuízo da sua “expressão” artística [...]” (NAPOLITANO, 2007, p. 76). Porém, esses critérios acabaram por revelar uma certa inadequação ao tipo de canção engajada forjada pelos jovens de classe média, na medida em que: “A submissão da ‘forma’ ao ‘conteúdo’ e da ‘expressão’ à ‘comunicação’ significava uma ruptura total com as bases convencionais da bossa nova, formadora e inspiradora dos principais criadores musicais engajados” (NAPOLITANO, 2007, p. 77). Segundo Napolitano (2007), enquanto alguns intelectuais do movimento estudantil, a exemplo de Nelson Lins e Barros, “tentavam enquadrar o movimento bossa-novista como um legítimo substrato da música engajada nacionalista”, por outro lado,

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Ver o anteprojeto do CPC da UNE na íntegra, em: HOLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de viagem. CPC, vanguarda e desbunde: 1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 121-144.

as posições veiculadas pelo Manifesto indicavam outra direção, ao defender uma estética simplória e comunicativa. Ou seja,

[...] o Manifesto do CPC propunha uma coisa, mas os artistas fizeram outra. Os músicos – Carlos Lira, Sérgio Ricardo, Nelson Lins e Barros (que também era compositor), Vinícius de Morais [sic] e outros – buscavam uma canção engajada, porém moderna e sofisticada, capaz de reeducar a elite e “elevar o gosto” das classes populares, ao mesmo tempo em que as conscientizava. A um só tempo, portanto, havia no ar uma utopia de educação estética, sentimental e política (NAPOLITANO, 2007, p. 77).

Dito de outra forma, pode-se afirmar que o “jovem artista engajado, nacionalista e de esquerda queria estar apto a produzir uma arte que fosse nacionalista e cosmopolita, politizada e intimista, comunicativa e expressiva, rompendo, inclusive, os limites propostos pelo Manifesto do CPC”. Não obstante, o “avanço da ‘frente popular’ pelas reformas parecia ter encontrado sua homologia no mundo das artes e da cultura. Mais do que um espelho, a canção engajada oriunda da bossa nova deveria ser o holofote que iluminaria a consciência nacional [...]” (NAPOLITANO, 2007, p. 78). Segundo Napolitano (2007), podemos destacar dois álbuns fonográficos: Depois do Carnaval, de Carlos Lira (Philips, 1963), e Um Senhor de

Talento, de Sérgio Ricardo (Elenco, 1963), como sínteses criativas que procuraram objetivar o

projeto estético-ideológico da música engajada, em termos de composição e seleção de repertório. Quer dizer: “A tentativa de estabelecer as bases estéticas e ideológicas de uma bossa nova ‘nacionalista’, que correspondesse às expectativas da juventude de esquerda que se engajava no processo de reformas de base do governo Jango, encontrou nesses dois álbuns sua expressão mais delineada” (NAPOLITANO, 2007, p. 78).

Nesses termos, até mesmo em canções líricas como, “Quem quiser encontrar o amor” e “Mundo à parte”, de Carlos Lira, “o mote do ‘amor’ se mescla à crítica ao individualismo [...]. Nas outras faixas – ‘Depois do Carnaval’, ‘Influência do jazz’, ‘Aruanda’, ‘Marcha da Quarta-feira de Cinzas’, e ‘Maria do Maranhão’ – foram lançadas as bases para o que mais tarde seria chamado de ‘canção de protesto’ brasileira” (NAPOLITANO, 2007, p. 78). Já o álbum de Sérgio Ricardo também foi responsável por reformular as bases da canção nacionalista engajada, segundo Marcos Napolitano (2007, p. 79), pois: “Muitas faixas se tornaram clássicos dessa corrente musical: ‘Enquanto a tristeza não vem’, ‘Barravento’, ‘Esse mundo é meu’, entre outras. [...] Os gêneros escolhidos eram em sua maioria sambas, incluindo os de ‘roda’ e ‘de morro’ (como em ‘Esse mundo é meu’ e ‘Terezinha de Jesus’)”. Assim, o contraste entre as “intenções ideológicas” e o “resultado musical” marca o início de um processo que torna-se mais complexo à medida que o mercado de MPB vai se ampliando. Por isso, a particularidade da canção engajada nacionalista trazia em si algumas contradições

de nossa modernização, isto é, “a afirmação nacional, modernizante e desenvolvimentista dependente do capitalismo internacional monopolista”. Além de que, “a nostalgia folclorizante e a paranóia da diluição na cultura estrangeira eram os pólos opostos, mas também complementares, desse processo”. Por isso, segundo Napolitano (2007, p. 79), esse LP de Carlos Lira, de 1963, acabou por se mostrar um sintoma desses dilemas da esquerda nacionalista e, por outro lado, “acabou sendo mais fiel às expressões contraditórias do projeto modernizante da esquerda do que a proposta exortativa e pedagógica do LP O povo canta, o disco produzido pelo CPC da UNE” (NAPOLITANO, 2007, p. 79).

A perspectiva chamada de “subida ao morro”, que visava mais ampliar o leque expressivo da bossa nova do que mimetizar a música popular das classes populares de forma caricatural, foi “[...] mais determinante até 1964, quando a conjuntura mudou e levou alguns artistas de esquerda a se aproximar das matrizes populares de cultura como uma reação ideológica ao fracasso da ‘frente única’ nacionalista, proposta pelos comunistas e reformistas como saída para a crise política e social”, segundo Napolitano (2007, p. 78). É a partir daí que se torna mais evidente o que passou a ser chamado de “canção de protesto” brasileira, apesar de alguns autores não diferenciarem, nesse contexto, a “música de protesto” mais específica da chamada “MPB” (Música Popular Brasileira).

Por outro lado, delimitando melhor a chamada “canção de protesto brasileira”, como também, diferenciando-a da já referida “canção engajada”, podemos afirmar, de acordo com Miranda (2009, p. 128, grifo do autor), que seria mais apropriado “colocar o aposto ‘protesto’, em determinadas composições feitas, sobretudo, após o golpe de 1964, quando as intenções de transformação social, via resistência à ditadura militar (inclusive pela ação armada, conforme pregavam setores da esquerda), eram claramente explicitadas na intenção de resistência e luta pelo novo dia que virá”. O que é percebido mais explicitamente em canções como “Viola enluarada, de Marcos e Paulo Sérgio Vale (A mão que toca um violão/ Se for

preciso faz a guerra/ Mata o mundo fere a terra/ A voz que canta uma canção/ Se for preciso canta um hino/ Louva a morte) [...]”. O exemplo de Viola enluarada, dos irmãos Marcos Vale e Paulo Sérgio Vale, é bastante emblemático da explicitação da canção de protesto no Brasil. Além disso, podemos incluir igualmente sob a rubrica do protesto

canções que denunciavam as condições de vida dos oprimidos [...] (como [algumas] canções do show Opinião), ou que denunciavam a situação dos cidadãos vivendo sob a ditadura militar, como a canção de protesto paradigmática da era dos festivais, Pra não dizer que não falei de flores, de Geraldo Vandré, que fazia delirar os jovens das platéias do Maracanãzinho, sobretudo quando cantava Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição/ De

Ou Disparada ([de] Geraldo Vandré e Théo de Barros), que também sabia levantar as platéias dos festivais, sobretudo quando Jair Rodrigues cantava

Então não pude seguir/ Valente, lugar tenente/ E o dono de gado e gente/ Porque gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente (MIRANDA, 2009, p. 218, grifo do autor).

Já as canções engajadas, divulgadas sobretudo pela UNE Volante, procuravam conscientizar o povo, na medida em que falavam “[...] do imperialismo norte-americano, do subdesenvolvimento e [da] miséria do nordeste, bem como da exploração dos trabalhadores. Enfim, [era] uma música voltada [mais] para a temática social, como a Canção do

subdesenvolvido, de Carlos Lira e Chico de Assis [...]”118 (MIRANDA, 2009, p. 129). Portanto, a música de protesto era portadora de uma mensagem de resistência mais política, e se preocupava mais com a denúncia e a construção de uma cultura política de resistência, ou melhor, de uma cultura política de protesto mais explícito (mas não apenas, como veremos) à ditadura militar ou com base no “novo dia que virá”.119 Por outro lado, a “música engajada” se preocupava mais com a conscientização e esclarecimento da situação de miséria das camadas subalternas da população, sendo portadora de uma temática mais social, e, segundo Miranda (2009, p. 129), manifestando um desejo velado de mudança do status quo.

Enfim, enquanto a música engajada, que vigorou no pré-1964, estava mais voltada para a conscientização e o esclarecimento, a música de protesto, no pós-1964, estava mais preocupada com a denúncia e o convite à resistência. Podemos dizer, ainda, que assim como a música engajada está mais para a ala nacionalista da bossa nova e o CPC da UNE, a música de protesto está mais para os chamados Festivais da Canção. Porém, apesar de destacarmos