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3.2 Monstros e demônios: a fascinação do horror

3.2.1 Perken: fúria e desejo sexual

A relação íntima entre erotismo e violência, entre prazer e morte é mais evidente em Perken, o aventureiro que reveza seu furor desafiando o destino, arriscando a própria vida, e desejando matar. Além da obsessão da violência e da morte, é preciso acrescentar um erotismo selvagem e mal controlado. É frente à morte que Perken tem agravadas, ao mesmo tempo, as potências de tânatos e eros,

seu desejo de matar e seu erotismo. Na primeira parte do romance encontram-se alguns indícios sobre sua vida sexual e a proximidade que ela toma da violência, como se ele levasse ao extremo a teoria batailliana, em que “[e]ssentiellement le domaine de l’érotisme est le domaine de la violence, [...] de la violation246 (BATAILLE, 2011, p. 18). Ao contar a Claude algumas de suas vivências, o personagem não se incomoda em dizer que seu desejo por uma mulher é da mesma natureza de querer ter para si um exército.

Une force militaire, d’abord. [...] je veux laisser une cicatrice sur cette carte. Puisque je dois jouer contre ma mort, j’aime mieux jouer avec vingt tribus qu’avec un enfant... Je voulais cela comme mon père voulait la propriété de son voisin, comme je veux des femmes247 (MALRAUX, OCI, p. 412).

Colocando tudo no campo das possibilidades, o outro, a propriedade, a força, a potência, Perken ao se decepcionar, ao fracassar em seus projetos, encontra na mulher o lugar de extravasar sua fúria. A intensidade do prazer tomado na relação sexual ameniza, ainda que provisoriamente, o êxtase advindo do ódio e do fracasso. É com um gesto de violência, simulando com as mãos um tipo de esmagamento, que diz desejar as mulheres da mesma maneira que “[...] quis vencer homens” (idem, ibidem, p. 414).

A mistura entre prazer e dor, violência e fascinação, todavia, não estão apenas nas relações que ele traça com as mulheres. Durante sua jornada na floresta cambojana, Perken e Claude provam de um sentimento ambíguo, híbrido, o horror e a excitação frente à floresta, cuja descrição, enfática nas palavras decomposição, viscosidade, nodosidade e ignóbil, parece suscitar no próprio leitor a vivência de um ambiente irrespirável e arriscadamente sedutor. Há na selva, o inumano, e também o sensual. De um lado, a diversidade das formas, dos animais e das plantas, de outro, o erotismo das esculturas e dos nativos. Assim que Claude e Perken entram na mata, encontram um guerreiro amarelo a olhá-los, está nu e com o sexo em ereção. Impossível não pensar na análise batailliana da caverna de Lascaux248, em que diante da força inimiga e desconhecida, frente à possiblidade de sua morte, o

246 [...] [e]ssencialmente o domínio do erotismo é o domínio da violência, [...] violação”.

247 “De início, uma força militar [...] Quero deixar uma cicatriz nesse mapa. Já que devo jogar contra minha morte, prefiro jogar com vinte tribos que com uma criança... Eu queria isso como meu pai queria a propriedade de seu vizinho, como quero mulheres”.

homem é desenhado com o sexo ereto. Algumas páginas depois, a sensualidade dos nativos ressurge quando Perken encontra um “[...] tombeau surmonté de deux grands fétiches à dents: homme et femme, tenant à pleines mains leur sexes peint en rouge249 (MALRAUX, OCI, p. 464).

Em outra passagem do texto, ouvindo Perken falar de sua revolta frente à irreversibilidade da morte e, portanto, de sua absurdidade, Claude vê repercutir no amigo não apenas a aspereza em relação ao destino, mas uma dominação que parece percorrer seu corpo, do “[...] battement du sang à ses tempes, aussi impérieuse que le besoin sexuel250” (idem, ibidem, p. 395). É por esse furor, por essa ânsia de êxtase que Perken vai se debater com os nativos. Tendo encontrado Grabot na precariedade e sabendo-se acurralado, o herói malruciano não se contém, age mesmo ciente de suas chances escassas, porque não quer ter o mesmo fim que o amigo. A energia que se propõe a dispender na luta contra a decadência é tão intensa quanto sua fúria sexual. Parte em direção aos Moïs, como que possuído, como que num êxtase erótico, se debatendo contra uma loucura fascinante, numa espécie de iluminação. Não, não queria ser torturado.

Au bord de l’atroce métamorphose qui l’obsédait, il se raccochait à lui-même, les mains crispées s’enfonçant dans la chair de cuisses, les yeux trop petits pour l’invasion de toutes les choses visibles, la peau comme le nerf. Jeté sexuellement sur cette liberte à l’agonie, soulevé par une volonté forcenée se possédant elle-même devant cette iminente destruction, il s’enfonçait dans la morte même [...]251 (MALRAUX, OCI, p. 469).

Apesar de seu ato de bravura, Perken não consegue vencer o obstáculo que o separa das estátuas e da liberdade, no seu ataque frenético contra o chefe Moï, é atingido por uma lança, que, posteriormente, descobrirá estar envenenada. A fronteira entre euforia e dor parece se apagar. Ao saber que sua vida está nas mãos desses selvagens, se apossa dele uma vontade de matar tão violenta nunca antes sentida. Tendo conseguido libertar-se dos selvagens, o herói malruciano ouve do

249 “[...] tumba sobrepujada por dois fetiches com dentes: homem e mulher, segurando de mãos

cheias seus sexos pintados de vermelho”.

250 “[...] batimento do sangue à suas têmporas, tão imperiosa quanto a necessidade sexual”.

251 “À beira da atroz metamorfose que obcecava, apega-se a si mesmo, com as mãos crispadas enfiando-se na carne das coxas, os olhos demasiado pequenos para a invasão de todas as coisas visíveis, a pele como o nervo. Jogado sexualmente sobre essa liberdade em agonia, erguido por uma vontade furiosa que se possuía a si própria diante dessa iminente destruição, afundava-se na própria morte”.

médico o decreto de sua morte, sua infecção era muito profunda e impossível de ser contida, Perken parece ser esmagado pela notícia, pelo destino, pela indiferença da noite. Sua impotência e a presença da morte despertam nele o desejo de ter uma mulher. Quando se está perto de morrer, o absurdo da vida ganha toda sua força, dele nasce uma exaltação semelhante quando se está em frente “d’une femme dé...[...] Déshabillée. Nue, tout à coup252” (idem, ibidem, p. 449). O erotismo de Perken está em estreita relação com a dor e com a morte.

Ao final do romance, os aventureiros recebem um telegrama do chefe do posto policial que comunica o envio de uma tropa de oitocentos homens bem armados para reprimir os Moïs253, é a possibilidade de Perken tornar sua morte útil. Embora a temesse, é em sua direção que caminha. Jogar-se, desafiar o destino é a prova de sua liberdade, a recusa da escravidão e da decadência. Significa, igualmente, a oportunidade de experimentar um último deleite, o de poder matar: “[c]rever pour crever, autant en descendre quelques-uns [...] J’aurais tout de même um sacré plaisir à en descendre quelques-uns!254 ” (MALRAUX, OC1, p. 462).

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