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PERSONAGENS MASCULINOS E O ÉTHOS DO HOMEM

Em Aline, de Iturrusgarai, não é apenas a imagem da mulher que é continuamente retrabalhada nos diferentes episódios da série, na verdade, o mesmo acontece com a imagem do homem. Se, por um lado, as atitudes de Aline ou Linda, entre diversas personagens mulheres que não são tratadas aqui, produzem muitas vezes uma imagem feminina que difere dos padrões sociais convencionais, por outro lado, Otto, Pedro e alguns personagens homens também desenvolvem comportamentos que ajudam a traçar um tipo diferente de masculinidade.

Figura 6 – A brochada de Pedro e Otto

Fonte – Iturrusgarai (2010, p. 105)

Nessa tirinha, Pedro e Otto estão sentados na beira da cama fumando até que o primeiro diz: “Isso nunca me aconteceu antes!”. A cena e as palavras do rapaz instauram uma situação arquetípica do acontecimento da “brochada”. Tanto Aline quanto o enunciatário ocupam a mesma posição na qual esperam que Pedro vá repetir o discurso pré-programado de todo homem que perde a ereção na cama: “Vão dizer que nunca brocharam?”. Contudo, em vez de seguir o procedimento previsível, Pedro afirma: “Que nada... Nunca fumamos!”. Com isso, o personagem desmonta uma situação arquetípica, quebra ao mesmo tempo a expectativa de Aline e do enunciatário e, finalmente, produz o riso.

A construção do humor da tirinha em questão se apoia sobretudo em dois procedimentos discursivos. Primeiro, o ator “Pedro” utiliza uma fórmula pronta que tem um plano de expressão fixo e um contexto de uso bastante marcado (“Isso nunca me aconteceu antes!”) para subverter o seu sentido ao aplicá-la sobre a ação de “fumar” em vez de “brochar”. Em segundo lugar, isso faz com que tanto as palavras prontas quanto a imagem pressuposta ao enunciado do “homem potente que nunca admite a brochada” sejam desconstruídas e ridicularizadas. Assim, além de provocarem o efeito humorístico, esses dois procedimentos conotam o éthos de Pedro como o de um homem divertido que aceita a própria “falha” na cama, uma imagem bem distante do “homem garanhão” que fica se lamentando por não ter conseguido transar e, na tentativa de preservar a própria face de ser um sujeito “bom de cama”, fica insistindo que “Isso nunca me aconteceu antes!”.

Do ponto de vista do nível narrativo do percurso gerativo do sentido, Pedro e Otto são sujeitos que não possuem a competência modal necessária para realizar a performance que consiste em transar com Aline. Apesar de ambos agirem sob a cifra da modalidade do querer, eles não chegam ao poder fazer, permanecendo portanto com os papéis actanciais de sujeitos

virtualizados. Sendo assim, os dois rapazes exercem um papel actancial muito diferente

homens sempre possuiriam uma competência modal completa, dotada do querer, dever, saber

e poder transar com mulheres, ou seja, seriam sempre são sujeitos realizados.

Diferentemente, o que se vê na tira é que Pedro e Otto, não podendo cumprir o programa narrativo de base que consistia em entrar em conjunção com o valor do “prazer” investido na figura da “mulher”, partem para um programa narrativo alternativo que tenham competência para cumprir e que ainda assim lhes possa permitir alcançar o “prazer”, mesmo que ele esteja investido em uma figura diferente, o “cigarro”. A transferência de valor entre as figuras funciona, dessa maneira, como um programa narrativo de compensação, aquilo que na linguagem popular é chamado de “prêmio de consolação”. Logo, a prática de “fumar” não funciona aqui para reforçar a imagem do homem bem-sucedido que traga um cigarro após atingir o gozo sexual, pelo contrário, ela pretende ridicularizá-la.

O fato é que tanto a expressão “Isso nunca me aconteceu antes!” quanto a ação de “fumar” são empregadas na tirinha justamente com o objetivo de desconstruir o discurso e a imagem típicas do homem que está sempre sedento por sexo e que nunca admite a perda da ereção, afinal, quando ele brocha, é sempre pela primeira vez. Pedro, ao contrário, não nega que já brochou (“Que nada...”), e ainda faz piada disso (“Nunca fumamos!”). Assim, o éthos do “macho” dá lugar ao éthos do homem divertido que aceita a própria falibilidade.

Em outra tirinha de Aline, Iturrusgarai aborda a imagem masculina a partir da questão da pornografia, da homossexualidade e do preconceito. Após serem convocados para o serviço militar, Otto e Pedro são obrigados a deixar o apartamento de Aline e a morar nas instalações do exército. Durante o período que passam lá, os dois acabam posando para uma revista gay chamada Hot Cuecas. Embora Otto e Pedro não estejam presentes na tirinha a seguir, é nesse contexto que ela se insere.

Figura 7 – Otto e Pedro posam para a revista gay Hot Cuecas

Fonte – Iturrusgarai (2010, p. 16)

No primeiro quadrinho da tira, o narrador se coloca no enunciado e ao mesmo tempo instaura um narratário, o “você” a quem ele dirige a seguinte pergunta: “O que você faria se o

seu filho posasse nu pra uma revista gay?”. Obviamente que, por trás das posições de narrador e narratário, subjazem também o enunciador e o enunciatário como imagens do autor e do leitor logicamente pressupostas pela tirinha, que são desse modo levados a refletir sobre três isotopias temático-figurativas: o parentesco (“filho”), a pornografia (“posasse”, “nu”, “revista”) e a homossexualidade (“gay”). Logo abaixo da fala do narrador, a capa da revista

Hot Cuecas vem figurativizada visualmente: um homem vestindo apenas uma cueca e com os

braços apoiados na cintura.

Em seguida, nos três quadrinhos do meio, são apresentados atores que cumprem o papel temático-figurativo de “pais” e respondem à pergunta inicial da tirinha. Eles se encontram aí na etapa final do esquema narrativo, a sanção, ocupando a posição de julgadores de seus supostos “filhos”, que seriam os sujeitos do fazer “posar nu pra uma revista gay”. Os três “pais” julgam a performance de seus “filhos” como sendo negativa e por isso dizem que vão aplicar-lhes punições caracterizadas pela violência corporal (“expulsá-lo de casa a pontapés”, “cobri-lo de porrada até ele sangrar pela boca”, “torcer o pescoço dele”). Em relação à semiótica visual do texto, a violência dos atores “pais” vem marcada principalmente pelas seguintes figuras: os punhos fechados, os dentes cerrados, a transpiração e as linhas ao redor de suas cabeças indicando “calor”.

Por fim, no quarto e último quadrinho, surge o único ator “pai” a julgar o seu “filho” positivamente, dando-lhe a sanção cognitivo-passional do “orgulho”. Entre os quatro “pais”, o último é o único a ter uma expressão serena. A maneira como o ator do último quadrinho é figurativizado pela semiótica visual constrói um outro papel temático-figurativo, o do “lutador”, visto que ele calça tênis esportivo de cano alto, usa shorts, é careca, está sem camisa exibindo os músculos e sentado em cima de um banquinho em um ringue de luta.

Ora, o fato de o único ator entre os quatro “pais” a não ter um discurso violento ser justamente aquele que é figurativizado como um “lutador” é bastante significativo. Enquanto os atores dos três primeiros quadrinhos vestem roupas comuns mas defendem o discurso da violência, o ator do último quadrinho tem um posicionamento diferente, pois, apesar de vestir roupas de luta, ele afirma que “ficaria muito orgulhoso” de seu “filho". Com isso, o enunciado consegue quebrar o estereótipo de que “todo lutador é violento” e gerar o humor, apontando, por outro lado, que “nem todo mundo que é violento aparenta ser”, como os três primeiros “pais”.

Ao reunir em um mesmo enunciado diversas isotopias temáticas como a violência, a homossexualidade, a pornografia e o parentesco, a tirinha utiliza o humor para contrastar a diferença comportamental entre homens que não aparentam ser violentos mas são, como os

“pais” que são homofóbicos sob o regime veridictório do segredo, e um homem que aparenta ser violento mas não é, como o “pai” do último quadrinho, cujo estereótipo de lutador homofóbico é da ordem da mentira. Portanto, essa tirinha constrói o éthos masculino a partir do jogo com as modalidades veridictórias, lembrando ao enunciatário o perigo de crer em estereótipos e julgar pelas aparências.