• Nenhum resultado encontrado

A TRAVESTILIDADE E A GERAÇÃO DO SENTIDO

Tomando o percurso gerativo do sentido como ponto de partida para a análise do look de Laerte na revista Época, é possível perceber que a prática da travestilidade instaura no nível fundamental uma oposição semântica entre masculino versus feminino, que pode ser representada logicamente pelo seguinte quadrado semiótico:

Quadro 7 – Oposição masculino versus feminino

Fonte – Elaboração nossa

A relação semântica segue uma orientação sintática que parte do masculino, para o

não masculino até chegar ao feminino. No que diz respeito à categoria tímica, o masculino é o

polo disfórico e o feminino é o eufórico, visto que a travestilidade, quando praticada por um ser humano do sexo biológico masculino, como Laerte, consiste na negação do masculino e na afirmação do feminino, de modo que o look final da cartunista pode ser caracterizado como um texto euforizante.

No nível das estruturas narrativas, a categoria semântica do feminino é convertida em valores integrados em diversos objetos que, no nível discursivo do texto abordado, assumem as figuras do “vestido”, da “sandália de tiras e de salto alto”, da “echarpe”, entre outros elementos. A questão das figuras do nível discursivo será abordada mais adiante, o essencial agora é notar que o sujeito está em busca de objetos investidos de valores femininos. Assim, o enunciado elementar que organiza o texto tem a seguinte estrutura narrativa:

Quadro 8 – Laerte em conjunção com objetos femininos

Fonte – Elaboração nossa

Todavia, esse enunciado de estado de conjunção, que representa o estágio final do texto e do look de Laerte, está correlacionado por pressuposição a outro enunciado de estado, caracterizado dessa vez pela disjunção com objetos investidos de valores masculinos, a saber:

Quadro 9 – Laerte em disjunção com objetos masculinos

Fonte – Elaboração nossa

Logo, há, pressuposta ao texto-look de Laerte, a passagem de um enunciado de estado de disjunção com valores masculinos para um enunciado de estado de conjunção com valores femininos, sendo que tal passagem ocorre em virtude de um enunciado do fazer caracterizado pela transformação operada pela travestilidade. A regência de um enunciado de transformação sobre um enunciado de estado constrói, desse modo, um programa narrativo de base cujo sujeito de estado e do fazer é Laerte em busca da aquisição de objetos investidos de valores descritivos femininos, em outros termos, trata-se de uma performance de apropriação, que pode ser esquematizada assim:

Quadro 10 – Programa narrativo de Laerte

Fonte – Elaboração nossa

Esse é o programa que caracteriza a etapa da ação do percurso narrativo do sujeito, cuja realização só é possível em razão de sua competência modal. No texto, Laerte encontra- se como um sujeito realizado, uma vez que já adquiriu, por meio dos objetos da vestimenta, da maquiagem, entre outros, os valores femininos, o que demonstra que a sua competência modal era completa, incluindo tanto o querer quanto o saber e o poder fazer.

No que diz respeito à manipulação, Laerte torna-se ao mesmo tempo o destinador- manipulador e o seu próprio destinatário29, “[...] condição para manifestar um comportamento ‘adulto’, cuja representação semiótica mais frequente é a de um ator que processa dentro de si as funções de destinador e destinatário-sujeito” (TATIT, 2007, p. 197). Isso significa que na etapa da manipulação o sujeito é o responsável por traçar para si mesmo quais serão os valores buscados na etapa da ação, com vistas à realização de uma ideologia e de um projeto de vida personalizados.

Conforme visto anteriormente, a condição para que Laerte se torne um sujeito

realizado é a apropriação de valores femininos e a renúncia a valores masculinos. Nesse caso,

29

Embora aqui seja utilizado o gênero feminino para designar Laerte, tendo em vista que as funções de “destinador”, “destinatário”, “julgador”, “enunciador”, “ator” etc. são categorias fixas da teoria semiótica, não faria sentido transformá-las em substantivos femininos, como, por exemplo, “destinadora”, “destinatária” etc., a não ser que isso fosse feito para indicar o caráter parcial de se utilizar o gênero masculino como genérico inclusive em conceitos teóricos. Como a discussão da terminologia semiótica neste momento ultrapassaria os objetivos traçados aqui, por ora ela será mantida.

o programa narrativo que “Laerte” enquanto destinador busca para si mesmo se opõe simetricamente aos valores almejados pelo destinador coletivo “sociedade”, que propõe que sujeitos do sexo masculino devam estar em disjunção com valores femininos e em conjunção com valores masculinos, ao passo que sujeitos do sexo feminino devam estar em disjunção com valores masculinos e em conjunção com valores femininos. No entanto, o destinador coletivo “sociedade” falha na atribuição de competência semântica ao destinatário “Laerte”, pois ele não crê nos valores propostos pela “sociedade”, julgando-os falsos, isto é, não

parecem nem são verdadeiros. Sendo assim, o contrato narrativo social entre o destinador

coletivo “sociedade” e o destinatário “Laerte” não é firmado, de modo que o ator “Laerte” encontra-se obrigado a sincretizar os actantes funcionais de destinador, destinatário e sujeito, estabelecendo um contrato narrativo individual consigo mesmo para dar um sentido à própria vida.

Desse ponto de vista, portanto, a manipulação pelo antidestinador “sociedade” não se concretiza, pois os valores investidos nos objetos do vestuário masculino são considerados pelo destinatário “Laerte” como sendo indesejáveis. De acordo com Barros,

A manipulação só será bem-sucedida quando o sistema de valores em que ela está assentada for compartilhado pelo manipulador e pelo manipulado, quando houver uma certa cumplicidade entre eles. [...]

Não se deixar manipular é recusar-se a participar do jogo do destinador, pela proposição de um outro sistema de valores. Só com valores diferentes o sujeito se safa da manipulação. (BARROS, 2007, p. 33)

“Propor um outro sistema de valores” é justamente o que faz Laerte, quando toma o papel de destinador e constrói uma ideologia própria fundada nos valores femininos. A condição da narratividade do look-texto de Laerte é, portanto, o rompimento com o contrato social e o novo contrato individual que é estabelecido em busca dos valores investidos no vestuário feminino, os quais são alcançados mediante o fazer de “travestir-se”.

Na etapa final da sanção, Laerte também vai ocupar a posição de julgador do seu próprio percurso, avaliando o fazer de “travestir-se” positivamente, pelo reconhecimento e pela recompensa, uma vez que os valores femininos foram alcançados por meio dos objetos do vestuário, da maquiagem, entre outros. Porém, do ponto de vista do antidestinador “sociedade”, o sujeito não aceitou nem cumpriu o contrato narrativo coletivo, optando por seguir uma ideologia e uma ação pessoais, de modo que, assim, ele seria julgado negativamente, por meio do desmascaramento e da punição, que tendem a se manifestar socialmente por meio do preconceito e da intolerância contra travestis. Visto que o

destinador-julgador “Laerte” e o antidestinador-julgador “sociedade” não compartilham a mesma axiologia, isto é, o mesmo sistema de valores, torna-se impossível encontrar uma resolução satisfatória para ambas as partes, de modo que se instaura no look travesti performatizado por Laerte um desdobramento polêmico da narrativa, em que a apropriação de valores por parte de um sujeito implica a renúncia a valores por parte do outro sujeito.

De modo geral, “travestir-se” caracteriza-se como um fazer que opõe, de um lado, o

querer do indivíduo e, do outro, o dever imposto pela sociedade, deixando o sujeito dividido

entre o desejo e a obrigação. No texto em questão, ao adotar publicamente a travestilidade, Laerte opta pela satisfação pessoal em detrimento da possível frustração decorrente da obediência aos valores sociais.

A passagem das estruturas do nível narrativo para aquelas do discursivo decorre da enunciação efetuada por Laerte. A enunciação se caracteriza aqui como um processo de montagem de um visual específico baseado na escolha do sujeito por determinadas peças de roupa, acessório, sapato, maquiagem, esmalte, penteado e assim por diante. Concluído esse processo, o resultado final é a construção de um look completo como um enunciado que traz em si as marcas da enunciação. Pelas escolhas que carrega, pelo sistema de valores que organiza e pela mensagem que transmite, esse look-enunciado que se manifesta como um texto visual constrói um discurso específico a partir do qual é possível traçar as estratégias argumentativas e depreender a imagem projetada de Laerte enquanto enunciador, o qual, por meio do seu fazer persuasivo, tenta criar um efeito de sentido de feminilidade e convencer o

fazer interpretativo do enunciatário do aspecto eufórico dos valores femininos quando

integrados em um sujeito do sexo masculino.

A enunciação do look de Laerte provoca o efeito de sentido de distanciamento, ou de

enunciado enunciado, pois as categorias de pessoa, espaço e tempo projetadas são as do ela, lá, então. Em relação à pessoa da sintaxe discursiva, o distanciamento que a imagem de

Laerte projetada no enunciado mantém do enunciatário pode ser percebido a partir de determinadas marcas, como, por exemplo, o olhar que se direciona para o horizonte em vez de focar o enunciatário e, ainda, a gestualidade dos braços cruzados e do rosto virado para cima, indicando uma falta de abertura à receptividade do observador. Quanto ao espaço e ao tempo, ambos são indeterminados e não figurativizados semanticamente, como é possível perceber pelo fundo branco da fotografia do look. Por meio do efeito de distanciamento, o enunciador visa a persuadir o enunciatário de que o look feminino construído por um sujeito do sexo masculino possui um aspecto veridictório universal, atemporal e não espacial, ou seja, como se a travestilidade fosse um fato que existiu, existe e sempre existirá.

No que concerne à semântica discursiva, o percurso temático instaurado é o do gênero, que nada mais é que o desdobramento, em um nível mais superficial, da oposição semântica fundamental do masculino versus feminino, de modo que o look de Laerte pode ser lido como um discurso questionador das categorias sociais que regem os comportamentos do homem e da mulher. O percurso temático do gênero é entrelaçado com o percurso figurativo da moda. Sendo assim, o que ocorre é que a categoria do feminino vai ser concretizada por diversas figuras da moda: o “vestido”, a “sandália”, a “echarpe”, o “anel”, o “batom”, o “esmalte”, os “brincos”, as “pulseiras” e as “flores” da estampa do vestido. O resultado final é a construção do papel temático-figurativo da “mulher”. O fato de Laerte, por meio da prática da travestilidade, ser capaz de gerar um efeito de sentido de feminilidade e construir para si o papel temático-figurativo da “mulher” demonstra que o gênero é uma construção semiótica e social que independe do sexo biológico. Resta, agora, analisar mais detidamente as semióticas figurativa e visual que regem o look da cartunista.