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RA VI – Benedito Bentes / Antares

6 VIVER NA RUA: DESAFIOS E SUPERAÇÕES

6.3 Perspectiva para o futuro

Quanto aos questionamentos sobre os projetos para o futuro, está presente, em todas as narrativas, o repertório que traz a expectativa de sair das ruas, como também: o sonho de conseguir um emprego; ter o próprio negócio; ter uma casa própria; viver o resto da vida com o/a atual companheiro/a; e reencontrar familiares.

João (L 206-208): Voltar a trabalhar. Voltar a adquirir minha família outra vez e sair dessa vida maldita que não é para ninguém não ... isso não é para gente não ... isso é para lixo ... quem quer ser lixo. Deus não quer isso pra gente.

Raquel (L 281): Ah tia, eu penso coisas boas né, quero viver com ele até ficar velhinha. (L 283-285): Sempre respeitando ele, porque o certo da mulher é respeitar o homem, então eu só penso coisas boas tia pra mim, ter a minha casa, ter ... ir pra perto da minha mãezinha, pra ajudar ela né, porque eu amo ela.

Maria (L 254): Eu tenho! Quero voltar a estudar. Pesquisadora (L 255): Que mais?

Maria (L 256): Trabalhar, abrir minha lanchonete, quero meus filhos comigo.

José participa do MNPR, e um dos seus desejos é continuar trabalhando em prol do movimento. Na oportunidade, ele estava fazendo um curso de oratória. Em virtude da sua atuação no movimento, teve oportunidade de viajar para participar de eventos em outras cidades. Diz gostar de discutir sobre políticas públicas.

Maria possui sentimentos ambivalentes com relação à rua. Define-se como mochileira e, para ela, ficar andando de cidade em cidade, para conhecer outros lugares e pessoas, é o lado bom de viver nas ruas.

Maria (L 100-103): Eu não gosto muito não, mas em partes eu gosto. Eu gosto da parte de viajar, eu gosto de viajar muito, eu me denomino mochileira entendeu ... e a parte de viajar é muito bom porque cada lugar que a gente chega conhece pessoas

novas, lugares novos, mas o fato de tá dormindo na rua, apesar que agora eu arrumei uma barraca.

Maria (L 289): Estou pensando em ir pra Brasília. Pesquisadora (L 290): Por que Brasília?

Maria (L 291-292): Porque todo mundo fala muito bem de lá ... muita gente! Tipo 100 pessoas fala bem e duas fala mal. E a curiosidade também de conhecer lá.

Neste estudo, todos os participantes citaram projetos para o futuro, situação diferente da apontada por Gomes (2006) em seu estudo, que chama a atenção para a forma de vida ligada inteiramente ao tempo presente, no momento, no aqui e agora:

A posição de receptividade, de achaque, de pedinte, chega mais forte e traz consigo a anulação do desejo enquanto mola de criação de possibilidades de vida. Vida aqui entendida como valor, bem necessário para se continuar vivendo. Mas a maior parte do tempo é vivida no hoje, no tempo do agora, e o depois se vê quando ele chegar (GOMES, 2006, p. 91).

Problematizamos, em relação a esses repertórios, o local da realização da pesquisa, a pesquisadora e a escolha dos participantes. Os Centros POP, onde ocorreram as entrevistas são serviços vinculados à política de assistência social, que tem por objetivo propiciar o resgate da cidadania e da autonomia. A entrevistadora/pesquisadora é uma das profissionais do serviço, e, apesar de não ter tido contato anterior com eles e elas até aquele momento, circula no ambiente. E os usuários foram escolhidos a dedo pelas profissionais. Podemos perguntar: a quem estão direcionados esses discursos? Será que eles não reproduziram o discurso esperado?

O trabalho foi um tema muito frequente na entrevista com o João. Ele cita o desejo de conseguir um emprego como o objetivo principal em sua vida. Ele conta que já cantou em bares pelo Brasil e tem o sonho de voltar a cantar. Diz que aceita trabalhar em qualquer coisa. Deposita, no trabalho, a expectativa para mudanças na sua vida.

Pesquisadora (L 309): Você me falou que tem esse sonho de cantar. João (L 310): Quero cantar na televisão.

Pesquisadora (L 311): Você já tentou?

João (L 312-314): Ainda não. Às vezes me dá coragem, às vezes uma coisa me diz que eu não vou conseguir ser nada. Difícil ... fico nessa dúvida. Todo mundo diz se eu for eu vou conseguir ... mas tem que ter uma vontade mesmo de si próprio. Eu preciso de um violão ... não tem jeito não.

As falas expressam alguns sonhos/projetos que, na opinião dos protagonistas, são expectativas de um futuro mais digno. Os obstáculos para a realização passam por: a) dificuldades de reinserção no mercado de trabalho; b) superação da vergonha do fracasso vivenciado como individual; e c) falta de perspectivas. Tais obstáculos fazem com que,

muitas vezes, situações provisórias tornem-se um novo modo de viver, marcado por processos contraditórios de conformismo e de resistência.

Outro questionamento é sobre a relação entre futuro e viver nas ruas, que, muitas vezes, pode parecer antagônica. Como pensar em futuro morando nas ruas? Já consideramos que o direito da PSR está garantido por lei, mas não será exatamente a negação de tais direitos que configura a exceção?

As contribuições de Agamben (2007) sobre a tanatopolítica da vida nua12 apontam para a seguinte problematização: o Estado tem interesse em que parcelas marginalizadas da sociedade se configurem como vida nua e permaneçam em situação de abandono, expostas à morte. Nessa perspectiva, podemos afirmar que o que está vigorando é uma estratégia de governo não mais centrada na política, muito menos na biopolítica13 – que envolveria estratégias para fomentar a vida da população –, mas na tanatopolítica, ou seja, o que ocorre é uma produção de morte (SCISLESKI, 2010; WAISELFISZ, 2011).

Nesse contexto de inclusão e de exclusão, tais considerações foram problematizadas, para refletirmos sobre o quão complexo é lidar com parcelas da sociedade que são desqualificadas por não seguirem o caminho habitual esperado.