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RA VI – Benedito Bentes / Antares

6 VIVER NA RUA: DESAFIOS E SUPERAÇÕES

6.6 Relação com as drogas

O convívio com as drogas perpassa as histórias dos participantes deste estudo. Maria, Raquel e João fizeram uso principalmente do crack e estão buscando bani-lo de suas vidas. Nos relatos a seguir, estão trechos das entrevistas que expressam a relação com as drogas.

Maria (L 188-192): No dia mesmo que eu saí pra rua eu parei, já era mais de meia noite, eu fui perguntar a hora uma menina que tava na frente de casa, aí ela: - “acende aqui meu crack”, - “eu não, nem sei como é isso ... e não quero saber não”. Ela ficou insistindo, insistindo ... de tanta insistência eu falei – “tá bom, vamo lá”. Ela botou a lata na minha boca e acendeu o isqueiro pra mim fumar, tentação do inimigo né ... aí foi quando eu fumei e gostei ... fiquei usando 2 anos.

Raquel (L 40-41): Quase um mês. E não estou nem aí pra ela e nem quero mais. Nem fumar eu fumo mais. Eu tenho nojo de cigarro. Quando tem alguém fumando na minha frente eu digo: “vixe que fedor”.

João (L 62-65): Particularmente eu não posso voltar mesmo pra Sergipe, porque eu acabei roubando, roubando até amigos, bicicletas de amigos. Tem uns dois policiais lá que são amigos meu, que eu acabei roubando as bicicletas deles, troquei por droga e ele disse que no dia que eu aparecesse lá, ia arrancar minha cabeça. Já não posso voltar.

Em seu discurso, José relata, com menos intensidade, a relação com as drogas na sua história de vida, conforme trecho transcrito abaixo:

Pesquisadora (L 108): José, você tem algum tipo de vicio? José (L 109): De vez em quando eu cheiro cola.

Pesquisadora (L 110): Mais algum outro? José (L 111): Cachaça.

Pesquisadora (L 112): Com qual frequência? José (L 113): Final de semana.

Raquel e João afirmam que o motivo de eles irem viver nas ruas foi o consumo das drogas. Maria e José relatam outras motivações, conforme explicitado no eixo Histórias de vida.

Raquel (L 350-352): Fumei tia. Quando eu ia usar ela, tem que fazer a cinza ... aí quando eu dava o primeiro vapor, aí vinha a vontade de eu dar um trago no cigarro. Quando eu não tava usando, eu não sentia vontade de fumar cigarro nenhum tia. Diga se não era a nojenta que tava me puxando ... pro fundo do poço.

João (L 189-190): Hoje eu estou mais em paz. Antigamente, era pegar em dinheiro e ir ali pra baixo usar droga. Ficava o dia todo ... uma coisa horrível.

Em seu estudo, Caravaca-Morera e Padilha (2015) relatam os sentimentos antagônicos vividos por quem experiencia as situações de rua e o uso de drogas:

A rua e o crack são metáforas dicotômicas que não possuem um significado restrito. A rua e o crack são plurais e singulares, são vida e são morte, são liberdade e escravidão, são conceitos existenciais e subjetivos que dependem da percepção contextual e da pessoa que olha para eles nesse momento e nesse lugar. Suas definições e construções linguísticas vão além do incômodo (CARAVACA- MORERA; PADILHA, 2015, p. 63).

As múltiplas funções na vida cotidiana dos usuários de drogas também são enfatizadas por Silva C. L. da (2012) em seu estudo. Faz-se necessário conhecer a relação que cada pessoa mantém com a substância que utiliza, para assim compreender o lugar que esta ocupa, a sua função e/ou sentido em sua vida. No nosso estudo, os repertórios produzidos sobre as drogas, pelos entrevistados, têm o sentido de um inimigo a ser combatido, pois os participantes posicionam-se na busca de outros sentidos para suas vidas (SILVA, C. L. da, 2012).

Em alguns momentos das suas histórias, o consumo de drogas ocorreu como parte da rotina, desde o acordar até a hora de dormir.

João (L 126-128): Todo não, eu também comia ... eu tava já querendo sair ... antigamente eu no começo, não sobrava nada ... eu cheguei a pesar 53kg ... hoje eu peso 87kg ... diferença muito grande. Eu tava quase morrendo, meu irmão tava assim também.

As histórias de recaídas são contadas por João e Raquel: “Já fiquei quase 1ano sem usar e voltei” (João, L 195); “Quando eu ia pra casa mais ela eu já passei já tia anos, isso em casa, dois anos sem usar. Bença né!?” (Raquel, L 51-52). João afirma que o uso de drogas já foi utilizado como estratégia para amenizar as decepções, a falta de expectativas, a saudade, as tristezas, a solidão, enfim, as agruras dos sofrimentos de sua vida: “Quando eu penso na minha família ... que eu vejo que ela mim deixou na mão e eu fazia de tudo” (João, L 197).

Quando questionados sobre tratamento para a dependência, por exemplo, João cita o Caps AD e o uso de medicações como suporte. Maria e Raquel, por seu turno, buscam na fé o apoio para evitar recaídas, conforme descrito no eixo Apoio espiritual.

João: Já passei pelo Caps AD, tenho registro lá. Até era ontem pra ir buscar meus remédios, tinha consulta também. Esqueci (L 288-289). Antes em Aracaju tava tomando um azulzinho que era pra ansiedade e pra dormir. Até hoje eu não durmo, não sei o que é dormir, mesmo não usando a droga eu estou sem dormir. Às vezes eu fico preocupado com ela também. Eu só ressono qualquer zuadinha eu me acordo e sento. Eu não sei o que é dormir (L 291-294).

Neste estudo, não temos o objetivo de entrar na discussão sobre o uso de drogas pela população de rua. Contamos histórias de vida dessas pessoas, e a relação com as drogas se faz presente. A multifatorialidade da dependência de drogas, como o crack e a vida nas ruas, demandam que ambas as situações sejam compreendidas nas diversas dimensões envolvidas: pessoal, física, psicológica, social, econômica, familiar, além das questões legais e da qualidade de vida.

As situações da vida, que levam homens e mulheres a viverem nas ruas, nos direcionam a uma reflexão, qual seja: mesmo diante das condições de vida degradantes, essas pessoas buscam outros sentidos e reconstroem seus percursos, buscando estratégias para ressignificar suas vidas. Podemos ver, nas histórias contadas, o reflexo de políticas públicas que governam para a morte, e não para a vida, quando permitem a não implementação e a violação dos direitos dessas pessoas (AGAMBEN, 2007).