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2 ALFABETIZAÇÃO, BNCC E LIVRO DIDÁTICO

2.1 PERSPECTIVAS DA ALFABETIZAÇÃO NO PROCESSO EDUCATIVO

Esta investigação focaliza processos alfabetizadores em livros didáticos de 1º e 2º anos do Ensino Fundamental, considerando as diretrizes e pressupostos orientadores da BNCC, da educação e da aprendizagem da escrita. Para tanto, inicialmente, é necessário ter clareza do que se consideram “processos alfabetizadores” neste estudo.

Há divergências nas concepções de alfabetização ao longo do tempo, em função de contextos e necessidades diversos relacionados à leitura e à escrita. Mortatti (2000b) pontua que a palavra alfabetização foi utilizada pela primeira vez, no Brasil, em relatório de Oscar Thompson, em 1918, designando o ensino das primeiras letras. O termo foi se consolidando a partir de então, mas, na época, enfatizava o ensino da leitura,

[...] compreendida como instrumento de cultura, mediante a compreensão do pensamento expresso por outrem. Como auxiliar da leitura e dela decorrente, a escrita ainda é entendida como caligrafia e cópia, e seu ensino envolve discussões respaldadas em teorias sobre os movimentos musculares requeridos e o tipo de letra manuscrita a ser utilizado: inclinada ou vertical. (MORTATTI, 2000b, p. 136) O mesmo ocorre em linhas teóricas distintas, conforme será esmiuçado na seção seguinte10. Em meio a essa diversidade de abordagens, optou-se, nesta investigação, por

considerar processos alfabetizadores a partir da perspectiva de Soares (2004, 2006, 2016, 2017). Para a autora, alfabetização é “entendida como processo de aquisição e apropriação do sistema de escrita, alfabético e ortográfico” (2017, p. 47) e também como “ação de ensinar/aprender a ler e a escrever” (2006, p. 47). Dessas definições, depreende-se que se constitui em aprendizagem do ler e do escrever, mediante ensino.

Soares também situa a alfabetização no contexto do letramento, compreendido como “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que usam a escrita” (SOARES, 2006, p. 47). Nesse sentido considera que ambos os processos ocorrem de forma integrada, articulada, pois são indissociáveis, embora distintos. É o que Soares denomina “alfabetizar letrando” (SOARES, 2006, p. 47), ou seja, tratar a alfabetização em contextos reais de uso da língua, focalizando não apenas a reflexão sobre o sistema alfabético, mas também, e da mesma forma, os usos de textos em circulação. Do mesmo modo, não apenas a dimensão social da língua deve ser abordada, mas é fundamental que haja um ensino sistemático do sistema de codificação11 da escrita – “letrar alfabetizando” (SOARES, 2006, p. 68).

Nesse contexto, compreendem-se processos alfabetizadores como as propostas (estratégias, atividades e recursos) utilizadas para ensinar a ler e a escrever, na perspectiva de Soares sobre alfabetização. Considera, portanto, a alfabetização de forma associada ao letramento, sem deixar de lado as especificidades de cada um, em uma perspectiva de ensino mediado pelo professor. Nesta investigação, a análise desses processos focaliza livros didáticos de 1º e 2º anos do Ensino Fundamental – período definido na Base Nacional para a alfabetização.

É importante elucidar esses aspectos, uma vez que, para alguns autores, entre os quais Mortatti (2000a, 2006, 2007), não há necessidade de utilizar a palavra letramento. Segundo a autora, a ideia de esgotamento do termo alfabetização, que impulsionou a adoção de letramento

[...] não pode se aplicar à concepção de alfabetização como atividade discursiva, característica do modelo interacionista. [...] Desse ponto de vista, quando se ensina e se aprende a ler e a escrever, já se estão lendo e produzindo textos (escritos), de fato, e essas atividades dependem diretamente das “relações de ensino” que ocorrem na escola, especialmente entre professor e alunos. (MORTATTI, 2007, p. 163-164) A despeito dessas questões, a opção pela linha teórica de Soares, nesta pesquisa, se justifica pela grande influência de seus estudos no País, verificada claramente em materiais de apoio e formação de professores, como Pró-Letramento e PNAIC. Considerando que se busca contribuir para os contextos de uso dos livros didáticos focalizados, realizar análise pautada em pressupostos já conhecidos pelos docentes favorece o alcance desse objetivo.

11 Embora utilize os termos “codificação” e “decodificação”, Soares os assume no sentido de “cifração ou decifração do sistema notacional” (2016, p. 49). Há críticas à nomenclatura “codificar/decodificar”,

apresentadas pela própria autora, uma vez que a escrita alfabética não constitui um código, mas um sistema de representação e um sistema notacional (SOARES, 2016, p. 46-49; MORAIS; LEITE, 2012, p. 06-11).

Essa perspectiva situa-se no quadro das teorias sociocognitivas da educação, segundo Bertrand (2001). Para o autor,

Existe um conjunto de teorias da educação cada vez mais importantes e que se interessam particularmente pelas dimensões socioculturais da aprendizagem. Nelas, insiste-se no lugar preponderante das interacções socioculturais nos mecanismos da aprendizagem, ao mesmo tempo que transparece uma oposição geral ao behaviorismo e ao cognitivismo. Tal como Bruner (1998) o afirma: “O erro do behaviorismo era apenas se interessar pelos comportamentos, ao passo que o erro das ciências cognitivas era interessarem-se pelos processos mentais, mas sem levar em consideração a cultura em que o indivíduo está mergulhado.” (BERTRAND, 2001, p. 115)

As teorias sociocognitivas enfatizam ao professor a necessidade de considerar as condições culturais e sociais da aprendizagem. Há também interesse pelas influências das interações estabelecidas nos ambientes e sua eficácia no aprender e no ensinar. Cultura e contexto têm lugar importante na educação, articulando a aprendizagem e a vida: considera-se a “aprendizagem em situação”. (BERTRAND, 2001, p. 116-117)

Esses princípios estão evidenciados na perspectiva de processos alfabetizadores adotada neste estudo. Aprender e ensinar a ler e a escrever são considerados em suas instâncias de interação e mediação – com a língua, com textos, com o professor, com colegas – em contextos significativos e reais de uso da leitura e da escrita. A partir dessa compreensão, passa- se à análise da forma como a alfabetização e as práticas do ler e do escrever se constituíram ao longo do tempo, visando compreender sua atual configuração.