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tomou a supremacia sobre as funções de conservação e estudo A Revolução viria, sim, redefinir – induzindo à sua separação

3.2 N EM TUDO O QUE PARECE É : A SITUAÇÃO PORTUGUESA

3.2.2 Perspectivas de futuro

A análise efectuada ao estatuto das colecções museais portuguesas permite-nos constatar uma subtil evolução recente, visando uma melhor gestão dos espólios. No caso da colecção de chapéus do Museu Nacional do Traje, transferida para o Museu da Chapelaria, parece claro o benefício para os objectos, que abandonaram uma reserva passiva – na qual dificilmente desempenhariam qualquer outro papel que não o da permanência eterna –, para integrarem um acervo onde poderão ganhar novos sentidos e novas utilizações.

Sendo a natureza dos problemas que vêm afligindo os museus portugueses idêntica à de inúmeros museus estrangeiros, é crível que as boas soluções e as boas práticas já experimentadas por estes venham também a ser, mais cedo ou mais tarde, serenamente adoptadas em Portugal. A grande reforma ocorrida na última década tem sido orientada para a melhoria da qualidade das instituições, através de um maior rigor e profissionalismo. Promoveu-se igualmente a introdução, na gestão museal, de critérios de cooperação, articulação, difusão de informação, transparência e inovação, que permitirão aos museus cumprir as suas missões de forma mais eficiente, sustentável e criativa. Esta nova dinâmica possibilitou ainda um conjunto de novas atitudes, perceptíveis em vários dos documentos regulamentares consultados.

A recente legislação de enquadramento impôs aos museus a elaboração de uma política de incorporações, que obrigou as instituições a fazerem (em muitos casos pela primeira vez) um exercício de reflexão sobre a sua missão, objectivos, colecções e recursos disponíveis. A incorporação passiva de objectos doados, que durante décadas sustentou o crescimento das colecções foi, de forma natural, praticamente excluída da gestão museal. A grande maioria das instituições passou a restringir as suas incorporações à relevância do espólio em causa e à sua conformidade com a missão, objectivos, programa e política de incorporações de cada uma. Noutros casos, e como forma de garantir a sua sustentabilidade, diversos museus limitaram a incorporação ao estado de conservação dos objectos e à existência de recursos financeiros, materiais e técnicos capazes de assegurar a sua conservação, documentação e uso apropriado312. Alguns chegam mesmo a justificar este facto no respectivo documento normativo, com as “dificuldades e problemas” com que se debatem, designadamente as “limitações orçamentais”. Na maior parte dos casos, as doações foram igualmente cingidas à sua incondicionalidade e perpetuidade, ou estabeleceu-se um curto prazo de duração de eventuais condições impostas pelos doadores313. O Ecomuseu Municipal do Seixal (EMS), por exemplo, estabelece na sua política de incorporações a prioridade à criação de condições para a conservação do seu acervo, relativamente ao seu crescimento; as novas incorporações ficam limitadas às situações decorrentes de projectos de investigação e as aquisições a título oneroso, de carácter excepcional, restringem-se ao preenchimento de lacunas nas colecções, no âmbito daqueles projectos. Particularmente interessante é o facto de vários documentos referirem a possibilidade de, perante uma proposta de doação, a

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Como faz questão de lembrar Nick Merriman (2006: 8), “não existe isso de doação gratuita”; todas as doações implicam custos futuros e permanentes, por vezes incomportáveis, para a instituição receptora.

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Em cumprimento dos códigos e convenções internacionais, são também mencionadas as limitações à incorporação de objectos suspeitos de proveniência ilícita, ou que levantem fundadas dúvidas quanto à sua propriedade ou estatuto.

instituição receptora poder sugerir aos proprietários a integração do espólio noutros museus – designadamente da RPM –, cujo acervo seja mais consentâneo com os objectos em causa314.

Outras mudanças no processo de incorporação, embora pequenas, dão igualmente nota de uma transformação na maneira de olhar as colecções e, em última instância, de percepcionar o museu. Para evitar o risco de incorporações que possam vir a revelar-se indesejáveis – acautelando uma posterior desincorporação –, diversas instâncias internacionais e museólogos têm defendido uma abordagem faseada do processo, em que os objectos adquiridos são integrados numa bolsa de incorporação – uma espécie de colecção provisória –, com o entendimento claro de que, findo um determinado prazo, poderão ou não vir a ser incorporados, dependendo do resultado de uma reavaliação e de uma análise da justificação do seu papel na colecção permanente (MA, 2004b: 5). Trata-se de assumir uma “decisão diferida” (Thompson et al., 1992: 509), nos casos em que a importância relativa dos objectos só pode ser devidamente apercebida passado algum tempo. O próprio Jacques Rigaud, encarregado de fazer o relatório oficial sobre a possibilidade de alienação de objectos das colecções públicas francesas, reconheceria que, relativamente a certas categorias de objectos, tinha alguma relutância “em as integrar em «colecções», no sentido restrito do termo, o que implicava a sua permanência e inalienabilidade”, designadamente no campo da arqueologia ou da indústria e da técnica, em que “não se impõe a retenção por tempo indeterminado. (…) O próprio termo «colecção de estudo» é como tal uma armadilha, sobretudo se implicar o pesado procedimento de desclassificação. Poderia ser reservado um destino especial para os «materiais de estudo»” ou certas colecções científicas (Rigaud, 2008: 13). Após o processo de restituição da cabeça Maori de Rouen, também os conservadores de museu franceses se tinham mostrado disponíveis para reflectir sobre a possibilidade de criar um “período de purgatório” para os objectos, que permitisse “uma avaliação serena do seu real interesse”, antes da sua sacralização definitiva (FEMS, ICOM e AGCCPF, 2007). Numa linha de pensamento semelhante, o EMS afirma praticar, “em certos casos, uma forma de inventário intermédio, (…) subsequente ao Registo de Entrada e antecedendo o Inventário Geral, nomeadamente para espólio de sítios arqueológicos, cuja relevância o justifique. Mediante uma posterior avaliação assente em critérios de natureza museológica, o inventário intermédio (e/ou de sítio) serve de base ao inventário geral do EMS ou pode ser parcialmente integrado nele”315. Já o Museu Nacional do Traje, por exemplo, procede a uma avaliação e selecção prévia das doações, sendo as peças não seleccionadas para incorporação na colecção permanente encaminhadas, com o acordo dos doadores, para os serviços de restauro, educação ou montagem de exposições (IMC, 2008: 30).

Quando, em 1882, José Leite de Vasconcelos redigiu o Regulamento do Museu Etnológico Português, estabeleceu como “obrigação” do conservador “facilitar quanto possa o estudo do Museu às pessoas que isso desejarem” (apud Gonçalves, 1960: 1). Parece algo óbvio, mas nem sempre os museus têm tornado as suas reservas verdadeiramente acessíveis e facilitado o trabalho daqueles que pretendem estudar as suas colecções – ora por razões ligadas à confidencialidade da informação, ou a controlos de segurança,

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Análise e citações feitas a partir das políticas de incorporação dos seguintes museus: Ecomuseu Municipal do Seixal, Museu Bocage, Museu de Setúbal/Convento de Jesus, Museu da Imagem em Movimento, Museu de Arqueologia e Numismática de Vila Real e Museu de Penafiel.

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indisponibilidade de horários e de acompanhamento técnico, ou mesmo a preceitos de prioridade científica. Os investigadores externos aos museus são frequentemente olhados com desconfiança, como concorrentes num trabalho que é considerado próprio da instituição e dos seus profissionais 316. Apesar de estas situações serem cada vez mais reduzidas, não deixa de soar estranha a redacção de alguns dos textos regulamentares consultados, que apresentam formulações como: “o museu predispõe-se” ou “está disponível” para “colaborar com investigadores”, “na medida do possível” ou “sempre que lhe seja possível”. Bastante mais assertivas e adequadas parecem, por exemplo, as políticas de incorporação dos museus de Setúbal e de Loures, que afirmam categoricamente ser “obrigação [do museu] dar apoio às solicitações de investigadores externos”, ou “colaborar com investigadores, centros de investigação, escolas e universidades e outras entidades públicas e/ou privadas, facultando-lhes o acesso aos bens museológicos (documentos e objectos) à responsabilidade da instituição” – ainda que dentro das suas limitações e salvaguardando a conservação e a segurança do espólio. Não é pois de estranhar que, no catálogo de uma recente exposição no Museu Nacional de História Natural, Pedro Portugal (2011: 2) tenha escrito, provocatoriamente, que “hoje, o principal trabalho do museu e dos seus curadores e conservadores é impedir, por todos os meios possíveis, que o público esteja em contacto com as obras guardadas. (…) As coisas dentro do museu só têm utilidade para o museu”.

As reservas dos museus portugueses têm um imenso potencial informativo, grande parte do qual ainda por explorar. Tomando como exemplo o Museu Nacional de Arqueologia, e de acordo com o seu director, “cerca de 70% das colecções do museu continuam inéditas” (apud Marques, 2010). Também no início do corrente ano, o levantamento sistemático das colecções pertencentes ao Museu da Ciência da Universidade de Coimbra permitiu descobrir uma notável e raríssima colecção de peixes coleccionados no século XVIII, originárias do Real Museu da Ajuda317, que jaziam esquecidas nas suas reservas. Uma das formas de contornar a actual escassez de recursos dos museus poderá passar por dar prioridade à reavaliação, investigação e divulgação das colecções em reserva – muitas das quais subaproveitadas –, relativamente a novas aquisições – que consomem mais recursos –, tirando partido de todo o seu potencial. Para isso, será necessário facilitar o acesso às colecções e promover a sua mais efectiva e imaginativa utilização, designadamente aproveitando melhor os recursos humanos disponibilizados por instituições de ensino e investigação. Será também proveitoso aprofundar alguns dos objectivos programáticos da Rede Portuguesa de Museus, nomeadamente a cooperação, articulação e partilha entre instituições e a racionalização dos investimentos públicos, criando, por exemplo, reservas de âmbito regional e fomentando a criação de projectos de investigação conjuntos (Pereira, 1998: 115-116; Brito e Cuñarro, 2004: 3).

Digna de registo é a recente criação do Consórcio Nacional para a Preservação e Uso em Investigação das Colecções de História Natural, que reúne os cinco maiores museus de ciência do país, apostados em unir sinergias para inventariar, estudar e divulgar os seus acervos: “as colecções nacionais, separadas, são relativamente pequenas; mas juntas são muito significativas da biodiversidade não só

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De acordo com a Lei n.º 47/2004, de 19 de Agosto: os “museus devem estudar e investigar o património afim à sua

vocação” (art.º 9º). 317

Descoberta notável de colecção de peixes colectados no Séc. XVIII (disponível em

portuguesa mas a nível do planeta” (Paulo Mota, apud Geraldes, 2011). Estes museus concluíram recentemente a primeira relação do espólio de História Natural em Portugal, com mais de dois milhões de espécimes registados, constituindo “ o primeiro passo para tirarem do armário conchas e insectos, plantas e sementes, aves e esqueletos de baleia” (Geraldes, 2011). Outra interessante iniciativa, que teve lugar no Dia Nacional dos Bens Culturais da Igreja, foi a discussão de novas formas de utilização, fruição e dinamização do património cultural religioso, sob o lema de que “a melhor forma de preservar o património é usá-lo” (Roque, 2011).

O final da primeira década do século XXI trouxe algum recuo à situação dos museus portugueses, agravando-se consideravelmente os problemas de suborçamentação e de carência de recursos humanos, situação a que não foi (e continua a não ser) alheia a profunda crise económica, nacional e internacional. Estes problemas, no entanto, têm vindo a mobilizar os conservadores de museu para uma reflexão sobre questões até agora pouco debatidas, como é o caso da gratuitidade do acesso aos museus. Assim, é relevante assinalar a realização, em Novembro de 2011, do encontro Museus e Sustentabilidade Financeira, promovido pelo ICOM, que marca a actualidade museológica nacional. A procura de novas soluções para os actuais problemas dos museus trará consigo, inevitavelmente, renovadas formas de cooperação institucional e uma evolução na forma de olhar estas instituições.