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Perspetiva hodierna do conceito de valor mobiliário – em especial o artigo 1.º

PARTE II : OS TOKENS DE INVESTIMENTO COMO VALORES

3. Perspetiva hodierna do conceito de valor mobiliário – em especial o artigo 1.º

A redação do artigo 1.º introduzida pelo Decreto-Lei n.º 66/2004, de 24 de março, manteve-se inalterada até à atual 42.º alteração do CVM operada pelo Decreto-Lei n.º 144/2019, de 23 de setembro. Como oportunamente referimos, a alínea g) do artigo 1.º do CVM conformou uma alteração substancial do pensamento do legislador jus-mobiliário ao substituir o “princípio da atipicidade dos valores mobiliários por um princípio de liberdade de criação destes

156Cfr., PAULO CÂMARA, Manual (…), cit., p., 114 e A.BARRETO MENEZES CORDEIRO, Valor mobiliário (…), p.

325.

157Cfr., preâmbulo do Decreto-Lei n.º 66/2004, consultável em: https://dre.pt/pesquisa/-

/search/209605/details/maximized.

158 Para mais desenvolvimentos, cfr., PAULO CÂMARA, Manual (…), cit., p., 111 e A.BARRETO MENEZES

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valores”159, tendo o legislador justificado a sua decisão com o facto de “o mercado de valores

mobiliários português [revelar], atualmente, a experiência e a maturidade necessárias à revogação daquele princípio que, em 1999, foi consagrado, fundamentalmente, por razões de segurança”, seguindo-se, neste

sentido, “de perto a prática internacional e as soluções consagradas nas legislações estrangeiras e vai-se ao

encontro de recentes indicações comunitárias, dando-se primazia ao dinamismo e à criatividade dos intervenientes no mercado na emissão de possíveis novos tipos de valores mobiliários”160.

O preceito, contudo, não fornece uma noção de valor mobiliário161. O artigo 1.º nas

alíneas a) a f) enumera um conjunto de valores mobiliários típicos e na alínea g) fornece três condições cujo preenchimento cumulativo se exige para a qualificação de um instrumento financeiro como um valor mobiliário atípico, em linha com o que decorre da DMIF II162, e

sujeitá-lo ao enquadramento jurídico-mobiliário.

Para efetivar o desígnio da qualificação jurídica dos tokens, será imprescindível a análise individualizada dos requisitos previstos naquela alínea e a sua aplicabilidade ao conceito introduzido pela inovação financeira.

a. O documento

Como primeiro requisito, a alínea g) do artigo 1.º do CVM exige que o valor mobiliário assuma a forma de um documento onde se encontre representadas determinadas situações jurídicas. Como ponto de partida, o ordenamento jurídico português concebe uma noção ampla de documento no artigo 362.º do Código Civil (“CC”) definindo um documento como “qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de representar ou reproduzir uma pessoa, um facto ou uma situaçao”. A doutrina163 tem identificado dois elementos essenciais que compõem esta noção

ampla de documento: i) o corpus, que, através de uma interpretação atualista e sistematicamente coerente, permite a inclusão de suportes corpóreos e incorpóreos duradouros164; e ii) um elemento teleológico (a docência) que exige a incorporação, nesse 159 Ibidem.

160 Ibidem.

161 Neste sentido, PAULO CÂMARA, Manual (…), cit., p., 115.

162 Cfr., ANTÓNIO GARCIA ROLO, As criptomoedas como meio de financiamento e a qualificação dos tokens de investimento

emitidos em ofertas públicas de moeda (ICO) como valores mobiliários, in FinTech II – Novos Estudos sobre Tecnologia Financeira (coord., António Menezes Cordeiro, Ana Perestrelo Oliveira e Diogo Pereira Duarte), Almedina, 2019, p. 282.

163 Entre outros, MARGARIDA LIMA REGO, O e-mail como título executivo, in Estudos em Homenagem ao Prof.

Doutor José Lebre de Freitas, I, Coimbra, 2013, cit., p., 1022.

164Tem-se assistido, fruto da digitalização dos serviços, a uma crescente desmaterialização dos documentos no

âmbito da celebração de negócios jurídicos, prescindindo-se, por exemplo, de parâmetros de proximidade em benefício da celeridade, redução de custos e demais caraterísticas associadas à celebração de contratos à distância através da internet, tendo-se consolidado, no ordenamento jurídico português, a noção de suporte duradouro e de documento eletrónico, como forma fidedigna para a prestação de informação e como

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suporte, de uma comunicação com a finalidade “de representar ou reproduzir uma pessoa, um facto ou uma situação”.

No domínio jus-mobiliário, afigura-se pertinente atender às possíveis formas de representação do valor mobiliáro. Neste contexto, o artigo 43.º do CVM, sob a epígrafe “formas de representação”, prevê o seguinte: “os valores mobiliários são escriturais ou titulados, consoante sejam representados por registos em conta ou por documentos em papel; estes são, neste Código, designados também por títulos”. Poder-se-ia questionar se, à luz da noção de documento prevista no artigo 362.º do CC, a forma de representação em conta, própria dos valores mobiliários escriturais165, pode ser considerada como um documento166. Ora, o ordenamento jurídico

português não se encontra alheio à realidade dos documentos eletrónicos167, como será o

caso do registo em conta, porquanto o Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto, define o documento eletrónico como “documento elaborado mediante processamento electrónico de dados”.

Neste sentido, e em conformidade com o que ficou supra explanado, a desmaterialização do

corpus do documento não prejudica a eficácia jurídica da comunicação nele inscrita,

preservando-se a aplicabilidade das normas jurídicas relativas aos seus efeitos, nomeadamente o disposto no artigo 74.º do CVM, relativo à presunção da titularidade do valor mobiliário escritural em nome de quem se encontra registado.

Face ao exposto, não aparenta suscitar dúvidas que a noção de documento eletrónico, enquanto noção desmaterializada de documento, encontra acolhimento no nosso ordenamento jurídico, bem como a sua compatibilidade com a noção ampla de documento prevista no Código Civil e ainda que, no domínio jus-mobiliário, se admite que os valores mobliários sejam representados eletronicamente.

Partindo destas premissas, o preenchimento do requisito documental previsto no artigo 1.º, alínea g) do CVM pelos tokens não suscitará dificuldades. O token, enquanto representação de situações jurídicas registadas numa tecnologia DLT, que consiste num “processamento

integrando a noção amplíssima de documento prevista no artigo 362.º do CC. Pense-se, por exemplo, no Decreto-Lei n.º 95/2006 de 29 de maio, que estabelece o regime jurídico aplicável aos contratos à distância relativos a serviços financeiros, onde, através do recurso a uma disjunção, equipara o documento em papel ao “suporte duradouro”, permitindo que a informação ao consumidor seja prestada por qualquer uma dessas formas. Ou, similarmente, no âmbito dos mercados de capitais, o CVM, permite que a informação seja prestada pelo intermediário financeiro ao seu cliente através de “suporte duradouro”.

165 Esta forma de representação de valores mobiliários foi criada em meados da década de 80 pelo legislador,

através da aprovação do Decreto-Lei n.º 229-D/88 de 4 de julho, sob a égide da “desmaterialização dos títulos” que, no entender do legislador, seria um “requisito indispensável à dinamização do mercado de capitais”, pelo que “entendeu o Governo criar um género de ações não tituladas”. Com efeito, a ideia de desmaterialização dos documentos, no seio dos mercados de capitais, não configura uma inovação recente.

166 Vide, PAULO CÂMARA, Manual (…), cit., p., 116.

167Na realidade, o ordenamento jurídico português foi pioneiro na regulação dos documentos eletrónicos,

assinaturas eletrónicas e no âmbito da criptografia assimétrica, precedendo inclusive as iniciativas comunitárias. Para mais desenvolvimentos, cfr., AFONSO PATRÃO, Assinaturas Eletrónicas, (…), cit., pp. 49 e ss.

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eletrónico de dados”, poderá ser enquadrado no conceito de documento eletrónico168 e, por

extensão, no conceito amplo previsto no artigo 362.º do CC, em conformidade com a progressiva desmaterialização dos valores mobiliários que tem ocorrido, pelo menos, desde a década de 1980 através da introdução no ordenamento jurídico interno dos títulos sob a forma escritural.

b. A situação jurídica homogénea

Para que se esteja perante um valor mobiliário atípico, a alínea g) do n.º 1 do CVM adita que o documento terá de ser “representativo de situações jurídicas homogéneas”. Apesar das situações jurídicas poderem ser classificadas169 em ativas e passivas, e em simples e complexas, aquelas

que os valores mobiliários agregam são, em regra, complexas, pois atribuem ao seu titular posições jurídicas ativas e passivas perante o emitente. No âmbito das situações jurídicas ativas, o artigo 55.º do CVM utiliza a terminologia “direitos inerentes”170 aos valores

mobiliários, sendo que no seu n.º 3 enumera alguns dos direitos inerentes que se encontram representados através dos valores mobiliários tipícos, v.g., os dividendos, os juros e outros rendimentos (alínea a)), os direitos de voto (alínea b)) e os direitos à subscrição ou aquisição de valores mobiliários do mesmo ou de diferente tipo (alínea c)).

Em conformidade com o exposto naquele preceito normativo, e se recorrermos à tipologia de valores mobiliários enumerada no artigo 1.º do CVM, verifica-se que as ações171,

enquanto posição jurídica unitária complexa que compõem o status socii172, configuram tanto situações jurídicas ativas como, por exemplo, o direito ao dividendo ou direito de voto, como situações jurídicas passivas, nomeadamente, a participação nas perdas da sociedade.

Para além dos valores mobiliários incorporarem situações jurídicas simples ou complexas, também apenas representam situações jurídicas de natureza privada e patrimonial173, pelo que

168 Em sentido convergente, cfr., ANTÓNIO GARCIA ROLO, As criptomoedas (…), pp. 282-283, LUÍS CATARINO,

Inovação financeira (…), p. 52, JOÃO VIEIRA DOS SANTOS, Desafios (…), p. 13, TIAGO BASÍLIO, Investment (…), p.

160.

169 Vide PEDRO PAÍS VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2012, pp. 239 e 240.

170 Para mais desenvolvimentos doutrinários, cfr., PEDRO PAIS VASCONCELOS, Direitos inerentes e Direito subjetivo,

in Cadernos do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 4, 1999; ANTÓNIO SOARES, Direitos inerentes a valores

mobiliários, in Direito dos Valores Mobiliários, Vol. I, Coimbra Editora, 2001; JORGE COSTA SANTOS, Direitos

inerentes aos valores mobiliários: em especial os direitos equiparados a valores mobiliários e o direito ao dividendo, in Direitos dos Valores Mobiliários, 1997; ALEXANDRE VEIGA, Direitos destacados e warrants autónomos, in Direitos dos

Valores Mobiliários, Vol. 3, 2001.

171 Vide PAULO CÂMARA, Manual (…), cit., p. 117.

172 Cfr., JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES, Os Instrumentos (…), cit., p., 88.

173 Cfr., PAULO CÂMARA, Manual (…), cit., pp. 117 e 118 e ANTÓNIO GARCIA ROLO, As criptomoedas (…), p.

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não constitui um valor mobiliário um documento onde se encontrem representadas situações jurídicas de natureza sucessória, familiar, fiscal, processual, administrativa ou qualquer outra situação jurídica de natureza pessoal e/ou pública.

Todavia, a componente fundamental no conceito de valor mobiliário legalmente prevista prende-se com o facto das situações jurídicas que integram o valor mobiliário terem de ser homogéneas, no sentido em que não sejam emitidos com caraterísticas próprias e individuais174 para cada investidor.

A homogeneidade relaciona-se com o conceito de categoria175 previsto no artigo 45.º do

CVM, onde se estabelece que “os valores mobiliários que sejam emitidos pela mesma entidade e apresentem o mesmo conteúdo constituem uma categoria, ainda que pertençam a emissões ou séries diferentes”, pelo que determinados valores mobiliários são considerados da mesma categoria desde que sejam emitidos pela mesma entidade e que apresentem o mesmo conteúdo (homogeneidade). A necessária homogeneidade das situações jurídicas incorporadas no valor mobiliário advém de uma necessidade do próprio mercado, pois a uniformização dessas posições jurídicas permite alcançar o desígnio da liberdade de circulação dos ativos que carateriza a dinâmica inerente à negociação, ocorra ou não em mercado regulamentado. A ideia vertida no preceito em apreço, converge com a letra do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”), em particular o artigo 302.º, n.º 2, através do qual se considera que “as ações que compreendem direitos iguais formam uma categoria”.

O desígnio da liberdade de circulação dos valores mobiliários em mercado regulamentado apenas consegue efetivar-se se o objeto da negociação for fungível176. Efetivamente, o artigo

204.º, n.º 2 do CVM, estabelece que “são fungíveis, para efeitos de negociação organizada, os valores mobiliários que pertençam à mesma categoria, obedeçam à mesma forma de representação, estejam objetivamente sujeitos ao mesmo regime fiscal e dos quais não tenham sido destacados direitos diferenciados”, pelo que, no âmbito da negociação em mercado organizado, a fungibilidade encontra-se presente nos valores mobiliários que pertençam à mesma categoria, obedeçam à mesma forma de representação e estejam sujeitos ao mesmo regime fiscal.

174 Neste sentido, LUÍS CATARINO, Inovação (…), cit., p. 53.

175 Cfr., HELENA LOUREIRO BAYÃO HORTA, Unidades de Participação em Fundos de Capital de Risco para Investidores

Qualificados sob Forma Titulada, in Caderno do Mercado de Valores Mobiliários, n.º 21, 2005, p. 11, OLIVEIRA

ASCENSÃO, O actual conceito de valor mobiliário, in Direito dos Valores Mobiliários, Vol. 3, 2001, p. 22, PAULO

CÂMARA, Manual (…), cit., pp. 128-129 e MIGUEL GALVÃO TELES, Fungibilidade de Valores Mobiliários e Situações

Jurídicas Meramente Categoriais, Direito dos Valores Mobiliários, Vol. 4, 2003.

176 Em sentido análogo, cfr., PAULO CÂMARA, Manual (…), cit., p. 118, ALEXANDRE LUCENAE VALE, Informação

e Operações sobre Valores Mobiliários, in Direito dos Valores Mobiliários, 2012, p. 15 e JOÃO VIEIRA DOS SANTOS,

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No âmbito de uma emissão de tokens, os emitentes procurarão, previsivelmente, promover a homogeneidade das situações jurídicas incorporadas em cada token, uma vez que esta caraterística permite fomentar a circulação dos tokens no mercado e garantir a sua liquidez177.

Com efeito, o que se tem exigido nas emissões de tokens é que estes, sendo colocados por uma determinada sociedade emitente durante uma dada ronda de financiamento, adotem idênticas caraterísticas relevantes178. Esta exigência pela homogeneidade, numa ótica de

proteção do investidor, permite aos emitentes veicular informação aos potenciais investidores de forma mais eficaz e transparente relativamente a cada token179 e a estes formarem uma decisão de investimento esclarecida e fundamentada.

Do exposto resulta que a qualificação de um token como valor mobiliário, no que concerne à composição de situações jurídicas inscritas, ficará circunscrito à situações jurídicas de caráter patrimonial, que assumam uma natureza privada e que não confiram direitos e deveres individuais por forma a garantir a sua homogeneidade.

c. A suscetibilidade de transmissão em mercado

O requisito da suscetibilidade de transmissão dos valores mobiliários em mercado deverá ser aferida em abstrato180. Com efeito, para que um determinado instrumento seja suscetível

de transmissão em mercado, deverá se encontrar livre de qualquer constrangimento ou entrave que inviabilize a transferência da sua titularidade para um potencial interessado. Por conseguinte, uma limitação da transferabilidade que assuma uma natureza contratual não será suficiente para permitir a exclusão do presente requisito181, dado que a inserção de uma

cláusula contratual que limite ao seu titular a possibilidade de transmitir o token não afeta a transferência da propriedade em violação dessa cláusula contratual, sem prejuízo do incumprimento contratual que o titular venha a incorrer na sequência da violação da cláusula convencionada entre as partes. Observe-se, por exemplo, as ações com cláusulas de intransmissibilidade182, em que a sua transmissibilidade se encontra constrangida, sem que tal

motivo seja refletido na sua qualificação como valor mobiliário.

No âmbito de uma emissão de tokens será particularmente relevante aferir a existência de eventuais limitações técnicas que tornem a transmissão da propriedade para terceiros

177 Cfr., JOÃO VIEIRA DOS SANTOS, Desafios (…), cit., p. 14.

178 Cfr., PHILIPP HACKER e CHRIS THOMALE, Crypto-Securities (…), cit., p. 23. 179 Ibidem.

180 Cfr., PAULO CÂMARA, Manual (…), cit., p. 120.

181 Cfr., PHILIPP HACKER e CHRIS THOMALE, Crypto-Securities (…), cit., p. 20 e ESMA, Questions and Answers,

Prospectuses, 30th updated version – April 2019, pergunta n.º 67, p.56. 182 Exemplo dado por PAULO CÂMARA, Manual (…), cit., p. 120.

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impossível183, tornando o token irreversivelmente associado ao titular originário. Como

exemplo paradigmático, a doutrina184 tende a apontar a circunstância em que as situações

jurídicas incorporadas no token emitido se encontram irreversivelmente associadas ao identificador único do comprador original, i.e., a sua chave pública.

A inserção de limitações técnicas suscetiveis de afetar a transmissibilidade do token poderá ocorrer previamente, durante ou posteriormente à fase de subscrição. Tome-se como exemplo a oferta inicial de moeda da EOS185, emitida pela sociedade Block.one, onde se

previa, no whitepaper, a intransmissibilidade do token vinte e três horas após o término do período de subscrição. Efetivamente, durante o período de subscrição dos tokens da EOS o requisito em análise estaria, em abstrato, preenchido dado ser suscetível de transmissão da sua propriedade em mercado durante esse intervalo temporal. Porém, findo o prazo de vinte e três horas após o período de subscrição, o token deixou de ser suscetível de transmissão em mercado devido às restrições técnicas incorporadas no protocolo da blockchain da Ethereum, tornando as situações jurídicas inscritas no token exclusivamente exercíveis pelo titular originário.

Adicionalmente, encontra-se em crescimento paulatino a difusão de plataformas online de câmbio de criptoativos como, por exemplo, a Binance186 onde permite um encontro de

vontades negociais entre oferta e a procura relativas a esses criptoativos. Sem prejuízo da atual discussão relativamente à qualificação destas plataformas de câmbio como sistemas de negociação multilateral ou plataformas de negociação organizada em mercados regulamentados à luz da normas comunitárias jus-mobiliárias187, a mera circunstância de os

criptoativos serem suscetíveis de negociação nesses mercados secundários constituirá um

183 Neste sentido, PHILIPP HACKER e CHRIS THOMALE, Crypto-Securities (…), cit., p. 20 e JOÃO VIEIRA DOS

SANTOS, Desafios (….), p. 14.

184 Por todos, cfr., PHILIPP HACKER e CHRIS THOMALE, Crypto-Securities (…), cit., p. 21.

185Cfr. PHILIPP HACKER e CHRIS THOMALE, Crypto-Securities (…), cit., p. 21 e ANTÓNIO GARCIA ROLO, As

criptomoedas (…), cit., p. 285.

186 A plataforma encontra-se disponível para consulta através do seguinte link: https://www.binance.com/. 187 Cfr. Recomendações da ESMA relativamente às Initial Coin Offering e Criptoativos, datado de 09-01-2019,

subtítulo VII.3 The Markets in Financial Instruments Directive framework, em particular os parágrafos 103 e ss., onde refere que: “ESMA’s preliminary view is that where crypto-assets qualify as financial instruments, platforms trading crypto- assets with a central order book and/or matching orders under other trading models are likely to qualify as multilateral systems and should therefore either operate under Title III of MiFID 2 as Regulated Markets (RMs) or under Title II of MiFID 2 as Multilateral Trading Facilities (MTFs) or Organised Trading Facilities (OTFs). RMs are operated or managed by a market operator. MTFs and OTFs are operated by a market operator or an investment firm.”, em contraste com a circunstância onde “the operators of those platforms are dealing on own account and executing client orders against their proprietary capital, they would not qualify as multilateral trading venues but rather as broker/dealers providing the MiFID II services of dealing on own account and/or the execution of client orders and should therefore comply with the requirements set out in Title II of MiFID 2” (sublinhado nosso).

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forte indicador de que a sua transmissibilidade abstrata, do qual depende o preenchimento do requisito em apreço, se encontra assegurada.

d. Comparabilidade funcional (remissão)

Para além dos requisitos tradicionais para a classificação de um valor mobiliário, a doutrina, nacional e internacional, tem identificado a necessidade do preenchimento de um quarto requisito do qual depende a aplicabilidade do enquadramento normativo jus- mobiliário aos tokens: a comparabilidade funcional entre o token e os valores mobiliários típicos.

Sem prejuízo da análise posterior ao tema em apreço, no plano nacional, o requisito da comparabilidade funcional não se encontra expressamente previsto na alínea g) do n.º 1 do Código dos Valores Mobiliários. Na verdade, os proponentes do requisito ora em análise alicerçam a sua posição na interpretação das normas comunitárias, em particular no conceito de valor mobiliário consagrado na DMIF II, e que influenciou a construção conceptual de vaor mobiliário dos vários ordenamentos jurídicos que promoveram a transposição do referido diploma.

A discussão sobre a comparabilidade funcional será desenvolvida em páginas posteriores188.

i. Conclusões preliminares

Em Portugal não existe uma moldura normativa que expressamente discipline as tokens sales, pelo que a abordagem a este fenómeno emergente da inovação financeira terá de ser enquadrado no domínio do leque normativo vigente de modo a mitigar a incerteza jurídica nas partes que optam por recorrer a este método de financiamento, em particular quando o público-alvo da oferta são os investidores não profissionais. Neste contexto, em especial quanto aos tokens estruturados similarmente a um valor mobiliário, assume um particular destaque as normas jus-mobiliárias vigentes no ordenamento jurídico nacional.

Através da aplicação do artigo 1.º, alínea g) do CVM, será possível ao intérprete, quando confrontado com uma emissão de tokens, prescrutar os critérios do qual depende a classificação de um valor mobiliário atípico e determinar a subsunção daquela realidade ao âmbito objetivo de aplicação do CVM.

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O caráter inovador deste modelo de financiamento promovido pela engenharia financeira