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CAPÍTULO I – OS MBYA-GUARANI E A REGIÃO DAS MISSÕES

1.3. REPRESENTAÇÕES SOBRE O PASSADO GUARANI NA REGIÃO DAS MISSÕES

1.3.3. O pertencimento “bugre”

O pertencimento que impulsionou Braga na produção do Ponto de Memória Missioneiro é vislumbrado em diversos outros contextos, em que habitantes não indígenas da região acionam uma ascendência “indígena” ou “bugre”, afirmando-se, em alguns casos, como netos ou bisnetos de guarani. Estes sujeitos, quase que em sua totalidade, são pertencentes às camadas menos abastadas da população, como pequenos agricultores, trabalhadores assalariados e funcionários públicos que ocupam cargos de baixa escolaridade. Dentre pessoas pertencentes a camadas populacionais consideradas ricas, é mais comum encontrarmos o apego a um ancestral indígena remoto, produzido no âmbito do gauchismo e representado pela bravura de Sepé.

São Miguel das Missões é um município de grande área rural, estando a Tekoa Ko’enju localizada entre dois assentamentos do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), o Assentamento da Barra e o Assentamento Pessegueiro, próxima ainda do Assentamento Santa Helena, também do MST. A base econômica do município é a agropecuária, gerida por grandes proprietários de terras, para os quais a presença indígena, ao longo dos anos, nunca esteve próxima do orgulho com o qual a imagem do guerreiro Sepé Tiaraju é narrada na região. Souza et.all (2012) destacam que há anos atrás, por volta da década de 1970, fazendeiros da região tratavam os Guarani como mendigos. Havia quem lhes confundissem com bandidos, sujeitos de quem se deveria suspeitar, ao mesmo tempo em que havia aqueles que os respeitavam por sua origem. Os autores pontuam que nesse período, anterior aos direitos assegurados pela Constituição Federal de 1988, os Guarani eram tratados como caso de polícia em São Miguel, sendo que o próprio SPI (Serviço de Proteção ao Índio) reprimia o transito indígena na região. Somado a isto, destacam que:

Nem todos os fazendeiros e posseiros foram benevolentes com o transito das famílias Mbyá

pelas matas da região, havendo informações orais (obtidas com muito constrangimento por parte dos depoentes não indígenas) sobre casos de chacinas praticadas contra os Mbyá-Guarani, como foi relatada ocorrência na região da Mata São Lourenço (kaaguy Mirῖ), outro lugar de importância cultural desses índios, localizado a cinco quilômetros da atual cidade de São Miguel. (SOUZA et.all, 2012, p 137)

A Mata São Lourenço, marcada como um lugar de represália não é mais habitada por Guarani, mas compõe suas demandas por demarcação de terras na região das Missões e voltarei a isto no capítulo IV. Neste espaço o que gostaria de destacar é que, embora Sepé seja mencionado por tradicionalistas como o primeiro caudilho do Rio Grande, os Guarani contemporâneos sofreram e ainda sofrem severa discriminação. A maioria das pessoas que nutrem respeito pelos Guarani possuem em comum o pertencimento a uma origem indígena ou, como se costuma dizer, “bugra” e são pessoas que não estão vinculadas ao estatuto de proprietárias de terras – elemento de disputa na região.

Na região das Missões o pertencimento “bugre” se dá na intersecção de classe e etnia, no sentido de que aqueles não indígenas que tomam para si o pertencimento a uma origem comum (indígena) que é distinta da origem comum dos imigrantes, são também pessoas de classes sociais mais pobres. Aqui “bugre” é sinônimo de indígena e ao contrário de outras regiões do país, na qual o termo é extremamente pejorativo, adquire outra roupagem e é muitas vezes exaltado. Há muitas narrativas que localizam estes sujeitos como netos ou bisnetos de indígenas, os quais são classificados por seus descendentes como Guarani, através de elementos que buscam na história da colonização da região. Uma explicação para a valoração do termo bugre enquanto resistência pode ser buscada a partir das pesquisas de Nonenmacher (2000), que identifica nos documentos indigenistas do século XIX, na província do Rio Grande do Sul, a utilização deste termo relacionado aos nativos não dispostos a ingressar nos Projetos Reducionais. Segundo a autora:

Quando são feitas referências aos índios para que se adaptem às reduções e adotem as ordens dos “civilizadores” são estes chamados simplesmente de “índios” e de criaturas “infantis”, que precisam de alguém que lhes ensine a trabalhar e “seguir o

bom caminho da civilização”. Isso é feito a partir da catequização. Os padres desempenham portanto um papel importante neste intento. Já os grupos que não se adaptavam a essa organização, que fugiam para os matos eram caracterizados como “selvagens”, “bugres”, “gentios”. Para limitar a ação dos “selvagens” é frequente o pedido de uma ação de pedestres para contê-los.

Há uma crescente preocupação com a segurança pública e principalmente com as reduções indígenas. Enfatiza-se que é preciso socorrê-los, tanto religiosamente, quanto com as “clarezas da civilização”, pois são braços úteis e menos dispendiosos do que os africanos que têm de ser importados. (NONENMACHER, 2000, p. 9)

Tal configuração parece ter contribuído para que no cotidiano popular, bugre passasse a ser empregado como sinônimo de indígena que vive no mato e que pouco se relaciona com outros grupos sociais. Em São Miguel das Missões, uma das expressões que mais exaltou este pertencimento foi a construção do “Rancho guarani”, pelo falecido cantor e compositor nativista Cenair Maicá. Ao lado de outros artistas – Noel Guarany, Jayme Caetano Braun e Pedro Ortaça – que em suas composições exaltam seu orgulho de ser Missioneiro e o legado de Sepé, Maicá, que em 1973 passou a administrar um antigo restaurante, próximo ao Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo, onde hoje funciona o Escritório Técnico do IPHAN, construiu um galpão, batizado de “Rancho guarani”, mas também conhecido pela população local como “galpão dos bugres” (ARNT, 2010). A finalidade era abrigar os Mbya-Guarani, que ali pernoitavam e preparavam seus alimentos. Era também um espaço de inspiração para esse artista, mas que não durou por muito tempo. Em 1978 o galpão foi queimado e os Guarani deixaram a cidade, ou como sublinham Souza et.all (2012), foram expulsos de São Miguel.

Dentre os artistas que apoiaram o Rancho, o único que ainda vive é Pedro Ortaça. Há alguns anos, com intuito de render homenagem aos Guarani missioneiros, convidou um coral guarani para participar da gravação de um DVD, no Sítio Arqueológico de São Miguel Arcanjo. No audiovisual, o cantor introduz as imagens deste encontro apresentando as ruínas e falando que ali foi fundada a “República Comunista Cristã dos Guarani”, fazendo alusão à obra de Clovis Lugon

(1977), assim intitulada39. O cantor explica que jesuítas e guarani produziram uma riqueza “de alma”, um convívio de fraternidade e igualdade, todos plantavam e semeavam a terra, colhiam e dividiam entre si. Na sequencia surgem as imagens do interior da igreja, com o coral no centro, cantando a musica karay Sepé (Anexo 4). Pedro Ortaça e seus filhos (também músicos) aparecem ao lado esquerdo, sentados e assistindo a performance. Quando os Guarani acabam de cantar, Floriano, que coordenava o coral, e Ortaça andam um em direção ao outro e cumprimentam-se. O tradicionalista diz que são irmãos, elogia o coral e diz que são “gente nossa, raiz da terra, da pampa e dos sete povos”. Convida a todos para sentarem-se junto a ele e os demais músicos, que cantam a canção “De guerreiro a payador” (Anexo 5). Na letra, critica o valor dado à “carcaça de um templo quase no chão”, referindo-se às ruínas e a patrimonialização, enquanto os Guarani, “descendentes da raça”, caminham em busca de sobrevivência em condições que não lhes são dignas. Questiona também a procura deste lugar por pesquisadores, que, em sua concepção, parecem não dar devida atenção aos Guarani. Afirma-se ainda como descendente de Sepé, que não luta com lança, mas com guitarra, algo que ele consegue comprovar “na estampa”, ou seja, nos traços físicos, no fenótipo.

Cabe destacar aqui que embora o passado nas Reduções seja evocado como formador de um ethos missioneiro, entre os habitantes não indígenas da região das missões, não se pode desconsiderar que este pertencimento está ligado também a um passado de conflitos étnicos na região. Ao passado Missional, acrescenta-se também um passado de imigração alemã, italiana e polonesa, posterior à Conquista, que igualmente enche de orgulho alguns habitantes da região. Descendentes de imigrantes, quaisquer que sejam, são denominados de “pessoas de origem”, enquanto negros e mestiços são chamados de “pelo duro” e aqueles com possível ascendência indígena de “bugres”. Sepé Tiaraju, no entanto, conforme observou Brum (2006a), também adquire feições

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Este livro de Clovis Lugon foi originalmente publicado na França em 1949. Percebe a Redução como uma república “comunista demais para os cristãos burgueses e cristã demais para os comunistas da época burguesa” (Ibid. p 05). Cita o pouco sucesso da URSS em realizar o comunismo, dificuldade também encontrada pelo império Inca e comunidades de base religiosa da América do Norte. Destaca então que a República dos Guarani, diferencia-se destas experiências por ter sido uma sociedade organizada a partir de preceitos cristãos, na qual a fraternidade estava inscrita na estrutura social, no regime de propriedade, nos modos de produção e distribuição e nas instituições.

brancas nas representações que se faz do passado e torna-se motivo de orgulho para todos os pertencimentos étnicos.

Muito tem se debatido sobre os segmentos étnicos que compõem o gauchismo (OLIVEN, 1992, 2006), bem como o racismo manifesto nos Centros de Tradições Gaúchas (KAISER, 1996). Não é minha intenção adentrar em tais aspectos neste capítulo, mas sim destacar o quanto a ideia de “origem” é importante para os habitantes da região das missões. Como consequência, há de se considerar o quanto uma origem branca possui muito mais prestígio que uma origem negra ou “bugra”, bem como o quanto a ideia de “origem” (neste caso, étnica) encontra-se em uma relação de intersecção com a ideia de classe.

Ao mesmo tempo dentre alguns não indígenas, o pertencimento “bugre” é um marcador das relações com os Mbya, que os situa como aliados, em um contexto bastante conflituoso. Neste âmbito, o discurso democrático do MTG, aliado a imagem do povo gaúcho que é único, mas pluriétnico, é utilizado em poesias e canções regionais, como nas letras de Ortaça, de modo a promover a agência daqueles vistos como pertencentes a uma “origem” considerada inferior.

Apesar de serem descritos como aqueles que ergueram as construções da Redução de São Miguel Arcanjo e que, portanto, estão localizados no passado remoto daquele lugar, percebemos que os Mbya já sofreram muitas represálias e ainda lutam pela demarcação de terras em São Miguel das Missões. O modo como são representados no imaginário regional une gauchismo, catolicismo e patrimônio, esferas absolutamente imbricadas quando se fala da região Missões, mas distanciadas da vida guarani. Tal contexto tem sofrido pequenas transformações nos anos recentes, por meio de iniciativas que buscam compreender os significados das antigas Reduções para os Guarani contemporâneos e que nos auxiliam na compreensão de formas de circulação de saberes e processos de resistência Guarani, no passado e no presente desta região.