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PRODUÇÃO DE PESSOAS, PROCESSOS DE CIRCULAÇÃO DE SABERES MBYA E A DOSE CERTA DO MUNDO JURUA

CAPÍTULO IV – AS MÍDIAS MBYA-GUARANI E A CIRCULAÇÃO DE SABERES SOBRE O NHANDE REKO NA

4.2. PRODUÇÃO DE PESSOAS, PROCESSOS DE CIRCULAÇÃO DE SABERES MBYA E A DOSE CERTA DO MUNDO JURUA

A possibilidade de narrar a história das Missões de um ponto de vista guarani e a abertura dada pelas políticas de patrimonialização para o reconhecimento do patrimônio cultural imaterial, são tomadas pelos Mbya-Guarani da Tekoa Ko’enju como tempos e espaços de circulação de conhecimentos nativos, nos quais é possível legitimar, frente ao Estado e aos jurua kuery de modo geral, a palavra dos mais velhos e os

elementos que compõem seu modo tradicional de vida. Mostram que na região missioneira o nhande reko Guarani encontra-se ameaçado de diversas formas: pela circunscrição territorial, pela mata escassa, pelas narrativas que deslegitimam a cosmologia guarani e que trazem a tona elementos muito doloridos para as pessoas, arraigados em uma história de morte e destruição que afeta de forma muito negativa o viver bem (teko porã) guarani.

Na coletânea de filmes produzidos pelo coletivo e difundidos pelo Vídeo nas Aldeias por meio da Coleção Cineastas Indígenas, Ariel Ortega demonstra essa relação em uma entrevista publicada no encarte que acompanha o DVD. Falando sobre a experiência de fazer o primeiro filme e o modo como os demais Mbya que viviam nas Tekoa Anhetenguá e Ko’enju foram se relacionando com a produção audiovisual, destaca as dificuldades encontradas para formular a narrativa por meio das imagens. Não se sabia ao certo como as oficinas funcionavam, o que deveriam mostrar e em que momento filmar. Sabia contudo que era uma oportunidade de mostrar o mundo guarani de um modo diferente, no tempo certo das conversas, quando boas palavras surgissem, nos momentos do mate da manhã e no entardecer. Reportava-se às experiências de produção de vídeo que observara em Tamandua, onde havia crescido, nas quais pesquisadores pareciam querer criar situações de conversas em que os Guarani eram coagidos a falar. Através do Coletivo era possível imprimir um outro ritmo, uma outra forma de diálogo que envolvesse todas as pessoas da aldeia. Por isso no inicio das oficinas, fizeram uma reunião com a comunidade, explicando a importância do documentário e esclarecendo que cada um poderia ficar a vontade para falar o que quisesse falar e mostrar aquilo que considerasse importante. Nos diálogos dessa reunião e, depois, nos momentos em que assistiam conjuntamente aquilo que fora filmado, muitos elementos foram surgindo para compor o roteiro e dar o formato do filme. Sobre o impacto que este processo trouxe para a Tekoa Ko’enju, especificamente, Ariel entende que as pessoas da aldeia:

Começaram a perceber a importância do vídeo quando assistiram às sequencias ali das ruínas de São Miguel das Missões e lá da Lomba do Pinheiro, na periferia de Porto Alegre. Quando passa o começo, o pessoal roubando madeira, essas coisas marcam. São coisas que os guarani não gostam muito de falar, uma coisa triste, mas eu sinto... Eu sou Guarani, e eu sei quando as

pessoas sentem e não querem falar. Algumas vezes eu acho que eu sou um pouco... não digo pessimista, mas realista mesmo. As pessoas sabem que é triste e preferem ficar quieto do que ficar falando ou lembrando, porque eles vão se sentir mal. Mas isso na Lomba eles ficaram um pouquinho quando as pessoas vendo as imagens da Lomba, que só tem 10 hectares, e aqui tem mais de 200 e poucos hectares, e quando assistiram, e vieram de lá para cá. Quando assistiram isso eu senti um pouco isso. Viram mesmo a importância... As pessoas quando viram ali no centro de Porto Alegre, uma situação bem diferente daqui, se chocaram muito. E ficaram muito triste. (CINEASTAS INDÍGENAS MBYA- GUARANI – VÍDEO NAS ALDEIAS, 2011, p. 10)

A fala de Ariel traz de volta a questão do sentir como um elemento importante para entender o mundo e conseguir melhor explicá- lo. Mostra ainda como a tristeza afeta as pessoas e as ameaça, contrariando os ensinamentos presentes na visão cosmogônica mbya de buscar sempre estar bem, mesmo vivendo em uma terra que é imperfeita.

As ameaças ao nhande reko Guarani que carregam consigo o perigo da transformação impõem uma condição humana de constante dosagem da alteridade, vivida na relação com o universo jurua kuery. Inserem-se aqui as narrativas acerca dos desafios de produzir e produzir-se pessoas na medida – um tema abordado em “Bicicletas de Nhanderu”, um dos filmes mais vistos e premiado do Coletivo Mbya- Guarani de Cinema/VnA. A metáfora da bicicleta é mencionada pelo karaí Solano, um dos principais personagens do filme, que explica a relação com os Nhanderu kuery a partir de um processo em que o corpo é guiado por estes Seres, tal como alguém guia uma bicicleta. Em dado momento do filme, Solano explica também a trajetória de seu nhe’é, através do seu nome mbya:

Eu sou Karaí Tataendy e tenho esse nome porque venho da morada de Karaí. Apesar de eu meditar pouco e cometer alguns erros, de alguma forma os nhanderu kuery me dão outra chance. As vezes se enfurecem comigo,

mas não querem me fazer mal. Nhandedja Tupã é o mais piedoso dos deuses

Adentrando na cosmologia guarani vista a partir do cotidiano, “Bicicletas de Nhanderu”, captura uma série de narrativas formuladas acerca de um raio que acabara de cair na aldeia, arrancando o galho de uma árvore. O raio é parte da caminhada dos Tupã kuery, que segundo nos conta o karaí Solano, protegem os seres humanos dos seres invisíveis que habitam a terra e que podem lhes fazer mal. Emanam daqui uma série de outras narrativas acerca da relação com a alteridade e das dificuldades de permanecer Mbya diante dos elementos do mundo jurua que adentram na aldeia.

No filme, Solano conta que Nhanderu falou com ele e por isso decidiu construir uma Opy (Casa de Rezas) na Tekoa Ko’enju, na esperança de que algum jovem queira se tornar rezador. Afirma que não esquece aqueles que lhe enviaram (Nhanderu Ete e Nhandexy Ete - pai e mãe verdadeiros), mas que é difícil seguir os ensinamnetos e agir de forma correta quando se é uma pessoa cheia de imperfeições. Por isso também, não conseguindo cumprir aquilo que lhes cabe, alguns karaí estão passando por impasses. Precisam seguir aqueles que lhes guiam, que são os karaí kuery e as kunhã karaí kuery, aqueles que usam a fumaça por todos os Mbya e que possuem muito conhecimento. Ao mesmo tempo possuem muitos desafios que advêm, por exemplo, da bebida alcoólica, das festas em formato de “festa jurua” e de jogos de cartas que prejudicam e impedem que as aprendizagens necessárias aos mais velhos possam ser de fato cumpridas.

Solano explica que ser karaí é algo muito difícil, pois caso sinta vontade de matar, de manter relações sexuais, comer demais ou comer muita carne, pode ojepota (virar onça). Diz que são muitas as tentações que cercam os karaí e que inclusive aqueles que são bons podem acabar em um caminho ruim, dizendo mentiras, levando seu trabalho para um lado prejudicial. É o que parece ter acontecido em algumas aldeias com karaí kuery que ajudam no parto e que estão cobrando por seu trabalho, aderindo a uma prática que não existe entre os Guarani. Entende que por viverem em um mundo de imperfeições, nunca ficarão completamente puros e por isso precisam das danças (jeroky) na Casa de Rezas, as quais trazem suor e permitem retirar as impurezas do corpo. Para Solano, viver nesta terra é um desafio muito complexo e o conjunto de posturas inadequadas que se aproxima dos karaí dificulta ainda mais o alcance da terra sagrada. Sublinha, aliás, não ter conhecido nenhum Guarani que chegava a realizar tal feito, talvez ninguém, nem mesmo pessoas da

geração do Sr. Dionísio, avô de Ariel, conseguiram ver um Guarani alcançar a terra sagrada.

Figura 27 - Karaí Solano – Bicicletas de Nhanderu.

Os desafios postos na fala do karaí Solano surgem nas cenas seguintes que mostram uma festa na aldeia. Há música, cerveja, jogos de cartas e pessoas dançando. Do mesmo modo, são mencionados em uma conversa entre Ariel e Mariano, sobre um sonho que o jovem cineasta e cacique tivera. Ariel sonhara que alguns guarani da aldeia estavam bebendo em um bar, junto com homens jurua. Lhes traziam pratos com comida, pareciam sanduiches, mas eram facas. Ofereciam aqueles pratos para os Guarani brigarem e estes comiam sangue no meio do sanduiche. Lembra-se que o sonho acabava com todos brigando e ele e Patrícia fugindo.

Mariano diz que é sinal que estavam querendo controlá-los, que é preciso ficar atento. Questiona-se sobre as razões do sonho, pois é indicativo de que não está bem. Ariel lhe diz que não concordava com as festas na aldeia, mas a maioria concorda. Entende que são espaços para que alguma coisa ruim venha a acontecer e que não adiantaria ele proibir, pois mesmo que ficasse um ano ou dois sem acontecerem festas, as mesmas voltariam em seguida. Mariano então diz que se o cacique gosta, pode participar, sem problemas. Então Papi, filho de Mariano,

que escuta a conversa, levanta-se e diz que os karaí estavam ali para lhe ajudar, para ninguém se machucar, pois não estão sozinhos.

Há um esforço do Coletivo Mbya-Guarani de Cinema em mostrar as transformações que vêm acontecendo no cotidiano mbya, os perigos destas transformações e as formas de controlá-las, através do aprendizado do sonho, dos aconselhamentos, das regras estabelecidas na aldeia e mesmo da construção da Casa de Rezas. Mostram ainda o modo como as crianças se relacionam com estas questões, pois estão presentes nas festas, aprendem a jogar cartas e convivem com todas essas influencias. Buscam lenha para além das cercas que delimitam as terras guarani e sentem desde cedo o impacto das propriedades privadas que circundam a aldeia, bem como a escassez de mata.

Em “Bibicletas de Nhanderu” o dia a dia dos irmãos Palermo e Neneco (Figura 26), na época com cerca de onze e nove anos, respectivamente, que estavam na Tekoa Ko’enju visitando parentes, mostra um pouco desses desafios. Os dois avaliam o artesanato que Elsa Chamorro estava fazendo e comentam que nem os jurua, nem seus filhos irão pagar aquilo que ela está cobrando. Depois saem pelo mato conferindo as armadilhas postas por Palermo, que ao constatar que não capturara nada diz que em função do desmatamento provocado pelos jurua, os passarinhos mudaram-se para outro mundo e estavam extintos.

As cenas em que os irmãos aparecem mostraram-se tão ricas em significado que o Coletivo produziu um curta-metragem, intitulado de “Mbya Mirim”, que veio a integrar os materiais da Coleção Cineastas Indígenas para Jovens e Crianças. Pensado para ser veiculado entre crianças e jovens, o curta possui tanto uma versão legendada, quanto uma versão dublada, destinada a crianças não alfabetizadas. A ideia é contribuir com as discussões em torno da implementação da Lei 11.645/2008, que dispõe sobre o ensino de história e cultura indígena nas instituições de ensino. Do curta foi produzido também um livro de literatura infantil, adaptado por Ana Carvalho e publicado pela Editora Cosac Naify, como parte da Coleção Infantil “Um dia na aldeia” e intitulado “Palermo e Neneco – Um dia na aldeia Mbya-Guarani” (Figura 27).

Figura 28 - Palermo e Neneco – Bicicletas de Nhanderu.

Figura 29 - Livro Palermo e Neneco – Um dia na aldeia Mbya- Guarani.