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É somente no final do século XIX que as orientações de cunho positivista chegam com força no Brasil, período em que as escolas têm seus currículos reformulados, passando-se a adotar disciplinas consideradas científicas em substituição às chamadas literárias. Ainda que tenha havido essa mudança na organização dos currículos, a rotina escolar seguiu enrijecida pelos padrões culturalmente cristalizados. Assim, hábitos assimilados pela rotina escolar, tais como fragmentação dos espaços/tempos de aprendizagem, objetivação dos procedimentos de ensino, padronização de métodos pedagógicos, agrupamento de alunos por idade ou nível de aprendizagem, fragmentação do currículo por disciplinas, estruturação de horários recortados e rígidos, hierarquização das relações intraescolares, distribuição dos conteúdos escolares por tópicos, determinação de espaços relativamente fixos para cada

75 aluno nas salas de aula, e tantos outros aspectos que marcam a chamada cultura escolar, são construções sociais engendradas desde a Idade Média e reconceitualizadas pela modernidade. Muitos aspectos dessa herança histórica ainda balizam a organização curricular das escolas e servem de orientação para o estabelecimento de suas rotinas.

Com essa rigidez na rotina escolar, vemos que o currículo aparece como preocupação a partir dos anos 20, e até meados da década de 1980, teve como referencial as teorias norte-americanas, em sua maioria com viés funcionalista. Não se pode esquecer as contribuições de Paulo Freire, mas que não tiveram o impacto merecido na ocasião, em função do momento político pelo qual passava o Brasil. Após o enfraquecimento da Guerra Fria e o início da redemocratização do Brasil, o ideário curricular tecnicista norte-americano arrefeceu-se e começaram a surgir correntes curriculares de vertente marxista, principalmente referenciadas em Michael Apple e Henry Giroux, aportados em nossas terras não por meios oficiais, mas subsidiados pelos trabalhos de pesquisadores brasileiros que buscavam referências no pensamento crítico (LOPES e MACEDO, 2005: 13-14).

Pelos anos de 1990, os estudos sobre o currículo passaram a ter um enfoque sociológico, abandonado a orientação psicológica até então vigente. A ideologia política passou a se evidenciar mais nas propostas curriculares, buscando em sua maioria a compreensão do currículo como espaço e relações de poder. Houve um abandono por completo de estudos centrados nos aspectos administrativos-científicos do currículo, restando hegemônica a ideia de que ―o currículo só pode ser compreendido quando contextualizado política, econômica e socialmente‖ (LOPES e MACEDO, 2005: 15), sendo normalmente referenciada por autores estrangeiros, com exceção de Paulo Freire.

Na metade da década de 1990, ainda seguindo Lopes e Macedo, diversos grupos passaram a aprofundar os estudos sobre currículo, notadamente nas questões que se reportam às relações existentes entre conhecimento científico, conhecimento escolar, saber popular e senso comum. Também se debruçaram sobre a seleção de conteúdos, consciência crítica do conhecimento e o currículo como construção social do conhecimento (2005:15). A pluralidade temática estudada no período trouxe novas forças ao currículo, apesar de dificultar sua definição.

No fim da primeira metade da década de 1990, começam a tomar espaço discussões que pretendem entender a sociedade pós-industrial como produtora de bens simbólicos, e a incorporação dessas discussões traz consigo o pensamento de Foucalt,

76 Derrida, Deleuze Guattari e Morin, mas não tomando um único rumo. As teorizações de vertente funcionalista e a crítica marxista se interpõem e se mesclam, dando origens a um hibridismo conceitual, revigorando o campo curricular (LOPES E MACEDO, 2005: 16).

Dessa fusão de teorizações deriva certa dificuldade na definição de currículo, verificada pelas pesquisadoras Lopes e Macedo ao se fazer um levantamento das pesquisas e literaturas publicadas com a temática currículo. Foram encontradas 117 entradas para o descritor currículo no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), mas que, além de pesquisas realmente sobre o currículo, incluem pesquisas sobre alfabetização, conhecimento e cultura, inovações curriculares específicas, novas tecnologias e interdisciplinaridade. Verificou-se uma diluição do termo currículo, tornando-o um tema tão geral e abrangente que se perdem seus limites e contornos.

Os estudos sobre currículo no Brasil podem ser analisados sob a perspectiva de três grupos. O primeiro, denominado Pós-estruturalista, originou-se na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo como mentor Tomaz Tadeu da Silva, com vasta publicação, amparado na tradução de autores ingleses e franceses. Silva descreve o currículo como ―uma forma de representação que se constitui como sistema de regulação moral e de controle. Tanto é produto das relações entre poder e identidade sociais, quanto seu determinante‖. Silva complementa ainda que o currículo admite várias abordagens ―que possibilitem que ampliemos nossa compreensão daquilo que se passa no nexo entre transmissão de conhecimento e produção de identidades sociais (apud LOPES e MACEDO, 2005: 21).

Silva inicia a década de 1990 com publicações que se prendem ainda a perspectivas teóricas histórico-críticas, claramente visíveis no texto a seguir:

A Teoria do Currículo tem se beneficiado enormemente de uma abordagem voltada para sua economia política, uma abordagem que deve muito às influência marxistas. (...) Continuamos a ser uma sociedade capitalista, uma sociedade governada pelo processo de produção de valor e de mais-valia. Ligar o currículo a esse processo é um dos avanços fundamentais que devemos à vertente crítica da Teoria do Currículo. Isso não exclui, entretanto, outras abordagens, outras metáforas, outros conceitos, que possibilitem que ampliemos

77 nossa compreensão daquilo que se passa no nexo entre transmissão de conhecimento e produção de identidades sociais, isto é, no currículo. Acredito que o papel de uma teoria crítica é o de ampliar essa compreensão, não o de estreitá-la (SILVA, 1995, apud LOPES e MACEDO, 2005: 28).

Silva passa a incorporar ao longo da década, através de traduções e publicações de autores internacionais em uma perspectivas pós-estruturalistas, essa mesma posição. Sua base teórica é alicerçada em Foucalt, Stuart Hall, Derrida, Deleuze e Guattari. Quando da publicação de seus primeiros trabalhos, centra-se na ―análise das conexões entre os processos de seleção, organização e distribuição dos currículos escolares e a dinâmica de produção e reprodução da sociedade capitalista‖ ( LOPES e MACEDO, 2005: 21), além de um veemente repúdio ao pós-modernismo:

Na verdade não estamos presenciando o triunfo do neoliberalismo e do capitalismo, mas de sua ideologia. É esta talvez uma oportunidade única para a Sociologia da Educação reafirmar sua vocação crítica, denunciando a mistificação representada pela voga liberal e por este dernier cri9ideológico travestido de vanguarda cultural que atende pelo nome de pós-modernismo (SILVA, apud LOPES E MACEDO, 2005: 21).

O segundo grupo, Currículo e Conhecimento em Rede, tomou forma a partir da metade da década de 1990, no Rio de Janeiro, coordenado por Nilda Alves e Regina Leite Garcia. Na visão das pesquisadoras, a trama curricular deveria ―ser constituída pelos eixos curriculares de base nacional, por princípios do movimento de construção desta base, pelos processos metodológicos e pelas disciplinas que compõem o currículo‖. (LOPES e MACEDO, 2005: 34). A ideia de construção curricular em rede traz implícita a integração curricular entre as diversas disciplinas, contrariando o princípio de incomunicabilidade entre as ciências, afirmado nas seguintes palavras:

78 Tecer o pensamento em rede exige múltiplos caminhos e inexistência de hierarquia, em um mundo de pensamento linear, compartimentado, disciplinarizado e hierarquizado que formou a mim mesma na disjunção, na separação e na redução. (ALVES & OLIVEIRA, apud LOPES e MACEDO, 2005: 36).

O terceiro grupo é denominado História do Currículo e Constituição do Conhecimento Escolar, também sediado no Rio de Janeiro e coordenado por Antônio Flávio Moreira; norteia suas pesquisas em duas direções: o estudo do pensamento curricular brasileiro e o estudo das disciplinas escolares. Moreira mostra uma frequente preocupação com a formação dos professores, pois em sua visão eles são os melhores avaliadores da eficácia curricular, afirmação também compartilhada por Sacristán, quando ele nos diz:

Quem a não ser o professor, pode moldar o currículo em função das necessidades de determinados alunos, ressaltando os seus significados, de acordo com suas necessidades pessoais e sociais dentro de um contexto cultural? A figura do professor como mero desenvolvedor do currículo é contrária a sua própria função educativa. (SACRISTÁN, 2000:168).

Claro que, apesar de ainda serem poucos os autores brasileiros a escrutinar o tema currículo, em comparação a outra áreas da educação, este recorte não tem a pretensão de ser definitivo, pois um campo em constantes transformações, atrelado que está a uma sociedade dinâmica, ainda tem muito a oferecer.