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PESSOA COMO CIFRA – UMA REFLEXÃO SOBRE O CONCEITO DE PESSOA A PARTIR DE KARL JASPERS

Jonna Bornemark*

O que é uma pessoa? Quais as condições de possibilidade para se definir o que é ser pessoa? Existem inúmeros modelos para se esclarecer como um certo tipo de personalidade aparece e o que constitui uma pessoa. São modelos psicológicos, biológicos, sociológicos, fenomenológicos etc. Os diversos modelos explicativos podem, sem dúvida, ajudar-nos a distinguir pessoas entre si. Todavia, esses modelos constroem-se a partir de generalizações e regras generalizantes, seguindo universalizações e redes conceituais que equiparam cada

individualidade a um parâmetro não individual de explicação. Esses modelos não nos ajudam a pensar a especificidade da pessoa, ou seja, a condição primeira e mais fundamental da pessoa que é a questão da sua diferença específica e singular. De onde e como surge a diferença constitutiva do singular e como encontrar na rede dos modelos explicativos o seu lugar e a palavra que lhe corresponde? Os vários modelos explicativos do que é ser pessoa estão marcados por um paradoxo: o que deve explicar a diferença é em si mesmo indiferenciado, equiparador, generalizante, universalizante. Por um lado, as diferenças já sempre pré-existem, não sendo criadas pelos modelos de explicação, e por outro, os modelos explicativos estão sempre a fracassar na tentativa de explicar como surgem as diferenças. Os parâmetros de

conceitualização devem ser, portanto, secundários, podendo descrever as diferenças apenas num quadro de generalidades. As diferenças podem ser descritas mas não a diferenciação propriamente dita, ou seja, o como, o modo de sua diferença. Pode-se descrever o “que” é diferente, mas não a vitalidade do dar- se da diferença, ou seja, “que” a diferença se dá. “Pessoa” compreende assim dois momentos intimamente interconectados: aquele que corresponde ao fato de a pessoa dar-se como vitalidade de diferenciação – que diferença se dá – e aquele que corresponde ao como a pessoa se diferencia. Podemos chamar de

personalidade esse como a diferença se realiza.

No presente artigo, gostaria de aproximar-me desse momento – “que a diferença se dá”, do fato de a pessoa dar-se como vitalidade de diferenciação, momento que constitui, na verdade, a pergunta de base e assim a condição de possibilidade para todos os modelos explicativos. Com base nesse ponto de partida, vou procurar levantar certas questões relativas a como o cristianismo definiu o “ser pessoa”. Como apoio para essa reflexão, buscarei seguir certos posicionamentos do filósofo da existência Karl Jaspers (1883-1969) e, assim, pensar com ele em contraste a ele.

* Jonna Bornemark é doutoranda em filosofia em Södertörns University College e na Universidade de Uppsala. O original em sueco foi traduzido para o português por Marcia Sá Cavalcante

*

Karl Jaspers também entende as pessoas e suas visões de mundo a partir de uma rede genérica constituída por tensão de dicotomias antinômicas que ele chamou de situações-limite, Grenzsituationen. A compreensão de mundo de cada pessoa forma-se a partir de como cada pessoa se relaciona com a necessidade e o acaso, com a vida e a morte ou com a luta e a cooperação. Esses são exemplos de antinomias, entendidas como tensão entre dois lados, em que ambos os lados não podem se realizar simultaneamente. Não obstante essa impossibilidade, ambos os lados estão reciprocamente interligados, de maneira que, se um dos lados não pudesse ser negado, o outro tampouco poderia afirmar-se. Jaspers busca esclarecer sobretudo como diferentes imagens de mundo podem surgir. O mesmo raciocínio pode todavia ser aplicado com relação à pergunta de como surgem as personalidades e como elas podem colocar-se entre extremos tais que bom e mau, humilde e arrogante, generoso e avaro etc. Sem nos aprofundarmos nesse ponto, podemos constatar que esse modelo explicativo tampouco consegue tratar propriamente das diferenças de base. Nossa situação humana é tal que sempre nos encontramos entre extremos. Minha posição constitui um corte-limite específico numa linha entre dois pólos. Esse fato tem duas conseqüências

fundamentais. Por um lado, eu sou limitada, não podendo preencher tudo. Minha vida mostra-se assim como o que tem limite. Pode-se assim entender o que Jaspers chama de situação-limite como toda situação é limitada. Ao mesmo tempo, tudo o que eu posso preencher instaura-se nesse limite, por esse limite e graças a esse limite. “Situação-limite” indica nesse sentido que nossa existência é a vida do limite. Limite diz tanto o que eu não posso como tudo o que eu posso. Quando nos tornamos conscientes de que devemos assumir uma posição em antinomias insolúveis e que não existe somente uma solução, tornamo-nos conscientes de nossa ek-istência. Ek-sistência significa descobrir-se como a vida do limite e não apenas como o que existe limitadamente. Ek-sistência distingue-se portanto da idéia de existência empírica. Descobrimos que não existe uma

resposta absoluta que possa ser dada de uma vez por todas, mas que devemos assumir nossa própria responsabilidade com respeito à solução de cada caso específico. Descobrimos que somos um processo vivo que deve relacionar-se com o infinito – em parte com o número infinito de posições dentro das antinomias, em parte com nosso próprio não-saber, nossa própria abertura e falta de finalidade. Essas duas infinitudes são, na verdade, a mesma coisa, mas expressas a partir de dois lugares distintos. Aqui, negação e multiplicidade coincidem.

A consciência de ser limitado e limite, de que minha vida é vida do limite no limite de uma vida, faz aparecer que estar limitado não se separa de um ativo limitar ou de-limitar. Desse modo, pode-se dizer que a consciência de “que” limite se dá como dinâmica infinita não se separa da constatação de ser limitado. Ou ainda: ser existencialmente um estar situado num limite é, ao mesmo tempo, um situar-se na dinâmica infinita porque aberta do limite. Esse dar-se da existência como vida do limite se dá “antes” de cada traço específico de caráter, ou melhor, dá-se primariamente. Como limite, esse “que” vida se dá como limite sempre demarca um limite entre um eu específico e um mundo específico. Esse “que” não é porém

em si mesmo específico. Todavia, sendo o que só aparece como tal retraindo-se na especificidade desse ou daquele modo ou “jeito” de ser, mostra-se como o não específico de toda especificidade.

O que é então esse “que” a vida se dá como limite, esse não específico do

específico? Esse “que” é a condição de possibilidade para “o que” a pessoa é em sua especificidade, uma especificidade que pode ser descrita numa rede de

universalidades mas nunca esclarecida a partir delas. Esse “que”, oposto a todo “o que” dos modos e especificidades, não pode ser investigado como um objeto que colocamos diante de nós uma vez que esse “que” não é uma parte das pessoas, não é algo de que as demais partes das pessoas possam separar-se para ser observado como objeto. O que se investiga deve naturalmente ser uma pessoa e uma pessoa não pode estabelecer uma distância relativamente a esse “que”, uma vez que é justamente esse “que” que instaura distâncias e proximidades, ou seja, a diversidade do específico. “Que” a vida se dá como limite é o processo vivo que se investiga. Husserl descreve como o eu sente a si mesmo como eu mediante um colocar a si mesmo numa distância, como um objeto a ser investigado. O

movimento desse colocar-se, porém, nunca se deixa apreender. Assim, não é possível nem descrever e nem explicar esse “que”, esse processo vivo, do mesmo modo que descrevemos ou explicamos objetos (inclusive os traços de nossa personalidade). Isso não significa, porém, que devamos deixar esse “que” para lá. Ignorar esse “que” acarreta o perigo de nos fecharmos num mundo estático e imanente onde nos ressentimos de um relacionamento com as questões mais fundamentais, ou onde as atitudes fundamentais tornam-se irrelevantes. Para Jaspers, em sua maior parte, filosofia, religião, arte surgem de diversas tentativas de lidar com essas situações-limite mediante a formação de regiões delimitadas. Uma região traz em si condições para um conhecimento embora a vitalidade do limite não possa ser em si mesma objeto de conhecimento. Isso não caracteriza porém apenas o que estamos chamando de “que” da pessoa em contraste “ao que” dos modos e especificidades da pessoa. O mundo como um todo tampouco pode objetivar-se, pois o mundo não pode ser colocado em contraste com outra coisa, com outro limite. O mesmo se dá com o conceito “Deus”, enquanto o conceito mais elevado que se pode pronunciar. Isso que não se deixa apreender mediante uma delimitação frente a outras regiões ou âmbitos específicos, foi o que Kant chamou de “idéia”. Nesse sentido, a idéia expõe a vitalidade desse “que” enquanto doação da vitalidade do limite.

“Que” pessoa se dá como limite, isso constitui a condição de possibilidade para a especificidade da pessoa, para o que a pessoa é, para o seu modo de ser ou personalidade. Essa condição, esse “que”, podemos chamar, com Jaspers, de liberdade. É liberdade em parte por estar livre das generalizações dos conceitos mas também por ser a abertura para o que a pessoa em sua especificidade ainda não é, ou seja, por ser a força de seu movimento. Enquanto abertura frente ao que a pessoa também não é ao ser o que é, esse “que” consiste igualmente no que ela, a pessoa, não controla. Sua liberdade é ser específica, única e ao mesmo tempo a força de movimento frente a essas possibilidade infinitas de escolha e variações infinitas. Essa liberdade é ao mesmo tempo a sua dependência, o que

constitui a sua possibilidade de agir, pois criar e escolher é o que ela não pode criar e nem tampouco escolher. Isso lhe é dado. Sua liberdade não é, assim, algo que ela possua no sentido de poder controlar. Que ela é essa liberdade, nisso consiste a sua liberdade. Nesse sentido, pode-se ainda dizer que ela já é sempre expressão dessa liberdade. É a liberdade que instaura a vontade e não a vontade que instala a liberdade. Essa liberdade dada, ou melhor, a liberdade de doação tampouco pode tornar-se objeto. Não obstante, o que acontece pela e desde a liberdade pode ser compreendido e tornar-se objeto para estudos humanísticos. Liberdade é, desse modo, característica e constitutiva para toda consciência. Em virtude dessa movimentação da liberdade na doação podemos e até mesmo devemos cultivar o “modo”, o “jeito”, o “o que”, (teor quiditativo) da personalidade. Esse modo é o que podemos elaborar e modificar. sempre já nos foi dada uma

certa especificidade, pela qual possuímos um lugar no sistema e a partir do qual

entendemos a “pessoa”: É dentro dessa estrutura de descrição que um eu se estabelece com certos limites fixos. O eu pode influenciar essa posição em estruturas enquanto ponto livre de possibilidades. Um dos extremos das teorias sobre a personalidade é representado, por exemplo, pela idéia de que nascemos como tabula rasa, tal página em branco, ou seja, que todos nascemos com as mesmas condições. Mediante as influências do meio-ambiente, essa página em branco passa a ser preenchida de modos distintos. De acordo com essas teorias, é esse “preenchimento” que constitui nossa personalidade. Essa maneira de ver implica que os indivíduos sejam de início iguais e que só depois, mediante um preenchimento, passam a distinguir-se ao ocuparem lugares distintos na rede de universalidades. A igualdade que podemos encontrar está portanto relacionada às universalidades. O igual é, ao mesmo tempo, o que constitui a possibilidade para a diferença entre pessoas. Para haver igualdade é porém preciso que haja

diferença. Ser diverso é a condição básica para que possamos ocupar lugares distintos na rede de universalidades. Como páginas em branco somos iguais, mas como diversos somos não iguais. O que partilhamos e compartilhamos é

justamente o que nos separa. Mesmo partindo-se, como hoje é tão comum, da premissa de que nascemos iguais e de que essa igualdade pode modificar-se, o modo de pensar a diferença não se modifica. Ter códigos genéticos diversos significa que, desde o momento em que o esperma e o óvulo se juntam, o que resulta dessa junção entra imediatamente na rede de universalidades. A

dificuldade está em que, enquanto disposição para diferentes códigos genéticos, não nos distinguimos.

Para além das universalidades, encontramos no momento da especificidade uma outra conjunção. Justamente em nos separando, em nos diferenciando, é que co- pertencemos, é que somos iguais. Esse nós “nos separamos” não deve ser entendido ôntico-cronologicamente como um nós já existíamos “antes” da diferença ter lugar. Ao contrário, esse nós existimos só acontece por força da diferenciação. Diferença por sua vez só existe pela força de um nós. Quando o conceito alcança assim o seu limite, vendo-se extrinsecamente interligado com seu contrário, tocamos no que Jaspers chama de antinomia da existência. Essas antinomias ficam mais nítidas quando acontecem dentro de um e mesmo conceito.

Já mencionamos um exemplo disso. Escrevemos acima que o que partilhamos é o que nos separa. O conceito “partilhar”, fazer parte sustenta uma tal antinomia. O que partilhamos é por um lado o ponto que nos reúne, o ponto em que não mais nos separamos e distinguimos. Isso fica claro em frases como “partilhamos um ponto de vista” – quando partilhamos um ponto de vista é o ponto de vista o ponto em que passamos a conviver e ser parte do mesmo. Mas “o ponto de partilha” também significa o ponto em que um eu e um tu se separam e distinguem. “Separar-se” significa seguir direções distintas. “Partilhar” é simultaneamente o ponto que nos reúne e separa. Quando eu e tu partilhamos algo, uma convicção, esta nos reúne mas justamente por sermos distintos, pois somente em sendo distintos podemos ter algo em comum. “Quando nos separamos”, o conceito funciona em outra direção, pois se está pressupondo que já fomos con-juntos para poder “separar-nos”. Existem outros exemplos lingüísticos que expõem de modo ainda mais gritante essa vitalidade da antinomia. Se eu e tu partilhamos um bolo, o conceito se vê ativado em ambas as direções. A unidade do bolo ultrapassa uma dispersão enquanto eu e tu nos unimos. Que eu e tu partilhamos o bolo não

significa somente que o bolo se parte, mas igualmente que um nós se cria nessa partilha, que eu e tu nos unimos em um nós mediante uma ação e uma ação conjuntas. “Nós” nos criamos à medida que “nós” assumimos a unidade do bolo, ao parti-lo e comê-lo. Nós damos ao bolo a nossa separação e dele extraímos a nossa unidade. Não obstante o verbo “partilhar” comporte a conjugação

inalienável desses dois sentidos contrários, só muito raramente os confundimos. Talvez porque os dois sentidos não sejam propriamente oposições mas sim sentidos simultâneos, onde um pressupõe o outro. No partilhar ativamos sempre dois – separação e conjunção – o movimento pode ir de uma direção para a outra ou simultaneamente para ambas.

Nossa partilha da especificidade que nos separa pode ser entendida num

paralelismo direto com a análise do conceito “partilhar”, acima esboçada. O modo específico de uma pessoa só pode ser entendido em relação ao modo específico de outra pessoa. Um eu só pode ser entendido a partir de um tu e o tu e o eu só podem ser entendidos a partir de um nós. Fascinante é que o teu e o meu “que” (a vitalidade da vida se dá como limite, a liberdade ilimitada do limite) não se separa do eu e do tu, sendo no entanto justamente o que nos separa. Aproximar-se desse ponto originário significa pensar as oposições ao mesmo tempo. Isso foi o que pensadores como Nicolau de Cusa chamaram de coincidentia oppositorum. À medida que eu e tu nos separamos e compartilhamos, partilhamos mundo (em ambos os sentidos). Mundo é a multiplicidade de diferenças que se tenciona entre diferentes especificidades. Os pontos de reunião significam que nós partilhamos mundo ao mesmo tempo que nos separamos em nossos modos específicos de possuir esse mundo. Partilhamos o mundo mas também o separamos e dividimos em partes.

Outros conceitos aproximam-se desse mesmo ponto-limite tão operante no verbo “partilhar”. Como vimos, nossa liberdade comporta dependência. Pessoa comporta especificidade e ao mesmo tempo igualdade enquanto possibilidade. Essas

tenciona um campo de relação com um número imenso de pontos possíveis. Essas oposições caracterizam-se por falta de distância e simultaneidade. Devemos observar que a terminologia que escolhemos introduz uma distinção ulterior. Fiz uma distinção entre o “modo” da especificidade e o “que”. Nesse “que” dá-se uma simultaneidade. Esse “que” nos compartilha (conjuga) e nos separa. O modo da especificidade é explicitamente distinto (não obstante ocupar lugar numa estrutura que é comum a todos). Essa distinção se dá no próprio conceito de “especificidade”. Isso mostra como mundo, linguagem e pensamento se

constroem por diferenças que nós podemos reunir e conjugar de modos variados. O pensamento se constitui em vendo diferenças – mesmo que isso aconteça numa unidade – que assim se torna não transparente para si mesma. Não podemos ver o que não se distingue, mas mesmo assim parece que temos uma necessidade contínua de exprimir essa conjunção invisível e transparente. Assim, estamos de volta aos conceitos que Jaspers chama de idéias: deus, mundo e talvez um conceito como subjetividade transcendental. Aqui, a palavra que mais se aproxima dessa categoria é “que”. “Que” designa sobretudo a simultaneidade desse algo comum, situado para além das distinções do pensamento. Jaspers caracteriza esse “que” valendo-se do conceito de “transcendência” e também da expressão “o transcendente” para marcar esse outro que abarca tudo e que justo por isso não se deixa saber.

Pensar é buscar compreender as pressuposições do pensar. Pensamento

caracteriza-se por consciência, atividade e diferença. O que encontramos no “que” da especificidade – que limite e especificidade se dão – é, porém, algo que não tem espaço no pensamento, sendo no entanto aquilo de que depende o

pensamento. O pensamento ativo pode influir sobre o modo da especificidade. Já sobre o fato de “que” há especificidade, de que nossa liberdade e possibilidade são doações e não determinações, sobre isso o pensamento não pode jamais influir. A possibilidade de nos separarmos e distinguirmos não pode ser dada a nós por nós mesmos. Ao contrário, é em virtude dessa partilha (doação) que o si mesmo pode surgir. Essa doação tampouco pode objetivar-se. Todavia, frente a ela nada podemos fazer a não ser tentar objetivá-la e exprimi-la. Jaspers (1970) chama de cifraessa relação que só pode ser nomeada como inominável, que só pode ser descrita como indescritível. Cifras são indicações. Sua ação é indicar multiplamente, nunca como um único modo de compreensão. Compreender literalmente cifras, na forma de uma imagem correta, de uma única armação conceitual que seria capaz de corresponder de forma direta e excludente àquilo que está a simbolizar, é o mesmo que dogmatismo e fanatismo. Assim como a rede de universalidades, também as cifras parecem negar o específico, o cada um a seu modo. A negação das cifras estaria em negar o específico e individual em prol da origem comum. Mas as cifras podem ser entendidas diferentemente. Podem ser entendidas de acordo com o conceito de “partilha” sobre o qual venho insistindo. Ou seja, o movimento das cifras e o movimento do específico é o mesmo movimento só que em direções diversas. Cifra como cifra aponta em direção ao que Jaspers chamou de transcendência ao passo que o específico “surge” da transcendência. A rede de universalidades para o específico pode ser

por sua vez entendida como estruturas que acolhem a entrada do específico justamente no momento em que generaliza o específico. Também a relação entre ambas deve ser entendida como relação recíproca.

Jaspers faz uso, mais uma vez seguindo Kant, das palavras bíblicas “não farás para ti imagens, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, nem embaixo, na terra, nem do que existe nas águas, debaixo da terra” (Ex 20,4), como a mensagem mais profunda da Bíblia. Imitar Deus, a transcendência, o nada, ou seja fabricar imagens da transcendência é sempre tarefa impossível porque esses conceitos procuram indicar o que nunca pode se objetivar. Ao mesmo tempo, o ser humano caracteriza-se justamente por não conseguir evitar tentar imitar a radicalidade inimitável do fundo da vida. Como seres de

pensamento e linguagem, como seres simbolizadores, vivemos de maneira a continuamente fazer imagens mesmo das condições mais extremas e isso de tal modo que imagens extremas de Deus, do mundo, de nós mesmos emergem como condições necessárias para toda objetivação possível.