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3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

3.2 Conceitos e categorias lingüístico-discursivas de análise

3.2.2 Pessoa, espaço e tempo

Essas categorias de análise lingüística vêm da teoria da enunciação, desenvolvida por Émile Benveniste. Em sua reflexão, esse autor estabelece uma relação de indissociabilidade entre a linguagem e o ser humano. Suas formulações, que foram

gradualmente explicitando uma teoria da enunciação, foram elaboradas e divulgadas de modo disperso em diversos artigos, sendo posteriormente reunidas e apresentadas como unidade na forma de um aparelho formal da enunciação (cf. Brait, 2006, p. 37-50; Benveniste, 1970/1989). Dessa teoria, que, de modo geral, trata do processo de “colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização” (Benveniste, 1970/1989, p.82), tem-se em vista a questão da subjetividade e da intersubjetividade na forma das categorias de pessoa, espaço e tempo5.

É na e pela linguagem que o homem se apresenta como sujeito, pois, ao falar, remete a si mesmo em seu discurso como um “eu”, ou seja, “é ‘ego’ que diz ego”. Portanto, de modo geral, a subjetividade pode ser definida como “a capacidade do locutor para se propor como ‘sujeito’”, o qual só pode dizer “eu” ao se dirigir a uma outra pessoa, isto é, a um “tu”. A intersubjetividade, por sua vez, pode ser definida como a troca verbal entre duas pessoas, “eu” e “tu”, num processo recíproco em que uma pessoa ao dizer “eu” instaura a outra como um “tu” e em que esta última, por sua vez, ao tomar a palavra, diz “eu” e instaura a primeira como seu “tu” (Benveniste, 1958/2005).

Até aqui foram apresentadas duas pessoas, na forma dos pronomes pessoais “eu” e “tu” e, a partir delas, foram definidos os conceitos de subjetividade e intersubjetividade, mas, para Benveniste, “há sempre três pessoas e não há senão três”: “eu”, “tu” e “ele”. Na realidade, esta última, a terceira pessoa, é definida pelo autor como “não pessoa”: “ele” corresponde a uma forma verbal cuja função é expressar a categoria da “não pessoa”, sendo que as formas verbais “eu” e “tu” são as únicas que indicam pessoas. Quando em um enunciado ocorre a forma “ele”, não há, portanto, remissão ao eixo do processo de troca verbal entre “eu” e “tu”, mas a uma situação “objetiva”, o que cria o efeito de sentido de apagamento da subjetividade e, conseqüentemente, de realce de uma suposta objetividade. Em outras palavras, “eu” e “tu” se escondem, nesse caso, por trás do “ele” (Benveniste, 1946/2005, p. 248 e 282; Fiorin, 2002, p. 45).

Logo, pode-se dizer que os pronomes pessoais, acompanhados de outras classes de pronomes que deles dependem, são uma forma de revelar a subjetividade e a intersubjetividade na linguagem. Trata-se aqui da categoria de pessoa, mas existem outras

5 É importante ressaltar que o objetivo deste item 3.2.2 não é abordar essas categorias conforme foram sendo

desenvolvidas, cronologicamente, por Benveniste em seus diversos artigos. Essa cronologia existe e pode ser consultada em Brait (2006).

duas que dela dependem, a de espaço e a de tempo, as quais “organizam as relações espaciais e temporais em torno do ‘sujeito’ tomado como ponto de referência”. Tanto a categoria de pessoa quanto a de espaço e tempo se definem unicamente a partir das instâncias de discurso do “eu”-“aqui”-“agora” na qual ocorrem (Benveniste, 1958/2005, p. 288-289). Pode-se definir instâncias de discurso como “os atos discretos e cada vez únicos pelos quais a língua é atualizada em palavra por um locutor” (Benveniste, 1956/2005, p. 277).

O ato de dizer “eu” ocorre, portanto, por oposição a “tu” e “ele” e se constitui como um ato novo e singular cada vez que é repetido, pois insere o locutor em momentos e circunstâncias novas e singulares do tempo e do espaço. Assim, cada vez que se diz “eu”, há oposição não só em relação a “tu” e “ele”, mas também oposição em relação ao próprio espaço e tempo dessas duas outras pessoas: “eu” é o ponto de referência e centro a partir do qual se organizam no discurso as categorias de pessoa, espaço e tempo com todas as oposições que lhe são próprias (Benveniste, 1965/1989, p. 68-69).

Assim, ao lado dos pronomes, no que diz respeito à categoria do espaço, há, por exemplo formas lingüísticas como os demonstrativos, que, ao indicar os objetos, organizam o espaço: um dado objeto está próximo ou afastado, em frente ou atrás, no alto ou embaixo etc., tudo isso, de uma forma ou de outra, em relação ao ponto de referência que, como já dito, é “eu”. Isso constitui um sistema de coordenadas espaciais que permite a localização de qualquer objeto em qualquer posição no espaço (Benveniste, 1965/1989, p. 69-70).

Para Benveniste, dentre as formas lingüísticas que revelam a experiência subjetiva, a mais rica é a de tempo. Para o autor, compreende-se o tempo lingüístico em relação ao tempo crônico. Este último corresponde à disposição dos acontecimentos em continuidade, os quais podem ser observados se percorridos em duas direções: em um movimento que vai do passado ao presente e do presente ao passado. A continuidade dos acontecimentos se constitui como escala socialmente reconhecida e fornece, portanto, pontos de referência aos quais o homem pode relacionar seu passado recente ou distante (Benveniste, 1965/1989, p. 70-71).

O tempo possui, portanto, duas versões: uma objetiva, relativa a sua fixação em um calendário orientado a partir de um ponto de referência externo ao exercício da fala (o nascimento de Cristo, por exemplo) e outra subjetiva, relativa à experiência humana, a qual

se traduz e se manifesta lingüisticamente, tendo como ponto de referência e centro o presente da instância do discurso. É principalmente esta última versão do tempo que interessa para este estudo, a qual se denomina tempo lingüístico: todas as vezes em que um dado locutor faz uso de uma forma gramatical do presente ou de uma forma eqüivalente, localiza o acontecimento no mesmo tempo da instância do discurso em que ele é mencionado. O que está em jogo aqui é a reinvenção do presente todas as vezes em que é usado, pois diz respeito a um momento novo e singular, nunca vivido antes (Benveniste, 1965/1989, p. 74-75).

O presente lingüístico pode, portanto, ser definido como “o fundamento das oposições temporais da língua” e se constitui como a linha que separa o passado, o qual só pode ser recuperado pela memória, e o futuro, o qual se manifesta por prospecção, na forma de previsão da experiência humana. Portanto, a língua organiza o tempo a partir da instância de discurso e isso é o que permite que os interlocutores, “eu” e “tu”, partilhando a mesma temporalidade, estabeleçam entre si a intersubjetividade temporal.

Com o objetivo de se compreender a atividade de realização das Visitas Técnicas e os modos como interagem o professor, o colaborador e os alunos, buscar-se-á identificar e estudar no corpus, constituído pela transcrição do material verbal produzido em situação, as formas verbais que manifestam as categorias de pessoa, espaço e tempo. É, portanto, o

corpus que revelará as formas verbais nas quais esta pesquisa deverá se deter. Para análise dessas formas, será empregado como referência o levantamento de suas possibilidades de ocorrência em Língua Portuguesa inventariadas por Fiorin (2002).

É articulando as categorias lingüísticas de pessoa, espaço e tempo aos conceitos bakhtinianos de enunciado e gêneros de discurso que será feita a análise do processo de realização das Visitas Técnicas. De modo geral, proceder-se-á da seguinte maneira: 1) identificação dos enunciados produzidos com base na alternância dos sujeitos falantes evidenciada nos recortes selecionados para análise; 2) descrição e interpretação dos enunciados identificados com base nas categorias de pessoa, espaço e tempo; 3) estabelecimento das características que se podem atribuir ao gênero dos enunciados a partir dos dados obtidos nos passos 1 e 2.

Uma vez que se pretende analisar o processo de realização das Visitas Técnicas do ponto de vista da atividade, alguns conceitos e categorias ergonômicas e psicológicas de

análise, voltadas para a explicação da atividade humana no trabalho, podem contribuir para a ampliação do alcance das teorias e dos procedimentos de análise que acabam de ser explicitados e vice-versa. É disso que tratam os próximos itens.

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