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CAPÍTULO II FRANCISCO SÁ CARNEIRO: O ENCONTRO MARCANTE COM O PERSONALISMO A CENTRALIDADE DA PESSOA HUMANA

2.2 A pessoa humana

O Personalismo tem a sua centralidade na pessoa humana. Concebe-a como portadora de uma dignidade excepcional, como liberdade, como relação, como transcendência. Mas qual é a origem remota dessa concepção de pessoa? Quem primeiramente a define e expressa? Qual o trajecto histórico, teológico e filosófico que percorre? De que modo, tal concepção se constitui referencial para os pensadores personalistas do século XX? Em que medida influencia o pensamento político de Francisco Sá Carneiro?

2.2.1 A origem do conceito de pessoa: referência breve

O pensamento clássico grego não conhece o conceito de pessoa. Usa o termo prosôpon. Aplica-o ao teatro. Que motivo de fundo terá impedido a filosofia grega de aceder à realidade pessoal? Talvez “o primado que nela exercem as ideias de natureza e as qualidades de imutável, de universal, de intemporal, como distintivas do ser mais autêntico

e real.” Assim é: a antropologia grega manifesta a carência do conceito de pessoa. 357

Privilegia a essência, a substância, a natureza, que a teologia cristã, mais adiante, saberá usar.

Ao contrário do grego, “o pensamento cristão não coloca o sinal distintivo do homem no ter, mas no ser, na pessoa.” A concepção de pessoa tem uma marca cristã. 358

Prosôpon, um traço pagão. A Igreja, no início, recusa-o. Denuncia a falta de pudor, que decorre da sua vinculação ao teatro, ao palco, à máscara aparente. É um termo curto. Perigoso. Os Padres gregos consideram-no insuficiente para falar das Pessoas divinas. Preferem hypostasis. Assim faz Porfírio. Usa-o no sentido de “singularidade substancial”, de “princípio último de individuação”. Mas a insuficiência persiste. Hypo-stasis ou sub- stantia é ambiguo. Pode significar uma coisa, mas também uma acção. Como coisa é ousia, substância. Como acção é “o ato de estar por baixo”, de subsistir. Como coisa, é referível, apenas, a Deus. Como acção, como “acto concreto de subsistir na substância”, exige que se fale em três hypóstases.

A tensão terminológica prolonga-se. Invade o território dos primeiros debates teológicos. Ocupa-o durante vários séculos e concílios. Mas evolui e produz resultados. Passa da substância para a subsistência (subsistentia), num caminho de equivalência progressiva entre hypostasis e prosôpon. Uma complementar da outra. Ambas indispensáveis para chegar à noção ontológica ou metafísica de pessoa: acto de subsistir em si e por si. 359

A Bíblia, não sendo um manual de antropologia, tem subjacente uma concepção do homem. O homem bíblico é criatura de Deus. É capaz de conhecer e de amar o Criador. É a única criatura à qual Deus ama por si mesma. O Livro do Génesis afirma que a alma é criada por Deus. O corpo é criado a partir de matéria pré-existente (Gn 2, 1). Noutros livros bíblicos, consta que a alma é criação divina. Criada à imagem de Deus, é dotada, desde o início, de dons extraordinários (Gn 2. 3). A natureza da alma humana é espiritual e

RUIZ DE LA PEÑA, Juan - Imagen de Dios, Antropologia Teológica Fundamental. Bilbao: Editorial Sal

357

Terrae, 1988. p. 155-156.

SELLÉS, Juan Fernando - La Persona Humana, Parte I: Introducción e Historia. Edição Electrónica,

358

iBook em suporte iPad Air 2. Bogotá: Universidad de La Sabana, 2014. p. 84.

HOUSSET, E. - La Vocation de la Personne. Paris: Presses Universitaires de France, 2007. p. 36-37.

imortal (Sab 3. 4. 5 e Ecl 12, 7). O homem é o centro da criação. Deus cuida dele ( Sl 8, 5-7).

Hypostasis e prosôpon são termos presentes na tradução grega do AT, na designada Setenta. Prosôpon é mais recorrente. Designa a superfície do solo ou da terra, preferencialmente a frente, a dianteira de cada objeto. No homem, designa o rosto, a face. É, por analogia, usado em relação a Deus, para exprimir simbolicamente a sua 360

“face”. Moisés conversa com Deus face a face (Gn 32, 31; Ex 33, 11; Dt 5, 4). Mas Moisés, também esconde a face diante de Deus (Ex 3, 6). Coloca um véu sobre o rosto. A face de Deus expressa benevolência: “O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te favoreça” (Nm 6, 25). Mas também cólera: “Voltarei o meu rosto contra vós e sereis derrotados pelos vossos inimigos” (Lv 26, 17). Num ou noutro caso, Deus revela-se como ser pessoal. Toma a iniciativa de estabelecer, com o homem, uma relação face a face. Prosôpon, no AT, chega, também a designar a pessoa: “Levanta-te perante uma cabeça branca e honra a pessoa do ancião” (Lv 19, 32); “ não façais distinção de pessoas no julgamento” (Dt 1, 17).

No Novo Testamento, o homem é entendido como filho de Deus. A filiação divina é a sua radical novidade. O homem é filho, porque Cristo, uma das três Pessoas Divinas, é Filho de Deus. Criado à imagem e semelhança de Deus, o homem, como filho, como pessoa, tem uma dignidade infinita. A vontade de Deus a respeito do homem é que ele seja perfeito (Mt 5, 48; 1Ts 4, 3). O homem é composto de corpo e alma, de carne e espírito. Não numa lógica dualista, platónica, gnóstica ou maniqueia. O homem neotestamentário é uma nova criatura, em e para Cristo. Em e por Cristo, ressuscitará dos mortos. No fim dos tempos.

No NT, prosôpon tem o sentido de rosto. Exprime a pessoa. Paulo despede-se dos presbíteros de Mileto: “Agora sei que não vereis mais o meu rosto” (At 20,25). Na transfiguração, o rosto de Jesus resplandece como um sol (Mt 17, 2). Os anjos das crianças “vêem constantemente a face de meu Pai, que está no Céu” (Mt 18,10). Na eternidade o homem verá Deus, “face a face” (1 Co 13,12).

Prosôpon expressa a identidade pessoal. Ter um rosto é ser um sujeito vivo. Deus tem um rosto. Jesus tem um rosto. O rosto de Jesus revela do rosto do Pai: “Quem me vê, vê o Pai”.

O NT dá a conhecer três nomes divinos. A fé trinitária revela a interpessoalidade do próprio Deus. No AT, Deus, no diálogo com o homem, revela-se como pessoa. No NT, é o próprio Deus que se revela como interpessoal. Jesus é o Verbo, o Filho que revela o Pai e envia o Espírito.

Nos Evangelhos, cada ser humano é uma pessoa. A individuação pessoal traduz- se na participação plena na graça da filiação divina. A dignidade da pessoa humana fundamenta-se no ser filho no Filho. O Verbo feito carne é o primogénito duma multidão de irmãos. Ele assume uma solidariedade nova e total com a humanidade.

Tertuliano é o primeiro pensador cristão a usar o termo persona. Fá-lo em relação à Trindade. Afirma que, em Deus, há três personae, três individualidades distintas. 361

Encontra na Sagrada Escritura a fundamentação para o seu uso. Persona, em Tertuliano, exprime o indivíduo particular, a presença efetiva de alguém que existe nele mesmo. Realidade individual, distinta, incomunicável.

No Oriente, Orígenes fala de três hypóstases em Deus. Basílio de Cesareia distingue substância de subsistência. Esta é uma radicalidade mais profunda e mais adequada à pessoa. As hypóstases divinas são três modos distintos de subsistir, segundo propriedades incomunicáveis. 362

Santo Agostinho, em De Trinitate, reflecte sobre os “vestígios” da Trindade no homem: memória, inteligência e vontade. Analisa a relação constitutiva do amor: amante, amado, amor. Estabelece as bases de uma teoria psicológica da Trindade. Descobre a consciência de si. Estabelece a equivalência entre consciência de si e pessoa. Em Confissões, expressa a subjetividade do eu: Deus é o mestre interior, que fala na e com a pessoa humana.

Cf. HOUSSET - La Vocation de la Personne, p. 42-43.

361

Cf. HOUSSET - La Vocation de la Personne, p. 51-52.

Boécio, influenciado por Platão e Agostinho, estabelece a mais universalizada noção de pessoa. Descreve o homem como animal racional e mortal. Concebe a pessoa como “uma substância individual de natureza racional.” 363

Na Escolástica, Alberto Magno, o Doutor Universal, distingue, no homem, entre essência (quod est) e existência (esse) e entre pessoa e natureza. A pessoa tem domínio sobre a natureza. 364

São Tomás de Aquino reitera a distinção entre essência e existência em todo o criado. Aplica-a à alma humana. Discerne nela o acto e a potência. Ao que se comporta como acto, acto de ser, chama pessoa. Daí, define pessoa: “o perfeitíssimo em toda a natureza.” Para São Tomás, viver é um acto humano intelectual, racional e livre. A alma, 365

criada imediatamente por Deus, é a vida. É espiritual. É a forma única do corpo. Mas não redutível às suas potências. São Tomás desenvolve a doutrina das relações subsistentes 366

na Trindade. Analisa, em Deus, a noção de relação (o para-o-outro) e a noção de pessoa (o para-si). Constata que, em Deus, estas duas relações coincidem. Em Deus, não há acidente. Tudo é substância. As três Pessoas apenas se distinguem pelas suas relações de origem. Não multiplicam a natureza divina.

A conseqüência antropológica desta concepção é óbvia: as relações entre as pessoas são vitais e constitutivas do ser pessoal humano.

No século XIV, o Humanismo percorre toda a Europa contra a crise social, política e ética de que padece. O pensamento manifesta fins moralizantes e pedagógicos de acção social. Todos evidenciam uma nova concepção do homem e dos seus problemas. 367

Petrarca considera que nada há mais digno de admiração que a alma humana. Erasmo de Roterdão defende, até à exaustão, a liberdade do homem. Tomás Moro canta, em Utopia, as virtudes sociais. A utopia só é possível pela esperança. Um homem sem esperança é um homem amputado, morto como homem. Admite a imortalidade e a providência divina. 368

BOÉCIO - Contra Eutiques e Nestório. PL MG, 64, 1343 C.

363

Cf. SELLÉS - La Persona Humana, Parte I, p. 115-118.

364

Cf. TOMÁS DE AQUINO - Summa Teologica, l, q. 29, a. 3.

365

Cf. SELLÉS - La Persona Humana, Parte I, p. 118-122.

366

Cf. SELLÉS - La Persona Humana, Parte I, p. 131-132.

O Renascimento, de seguida, abre uma crise na concepção de pessoa. Procura esquecer o legado da Idade Média. A Reforma Protestante opõe-se à filosofia escolástica. Lutero desqualifica a razão humana. Fere a liberdade essencial do homem. Francisco de Vitória é, no seu tempo, um sinal de esperança. Ao contrário de Maquiavel, defende que todo o sistema jurídico deve estar baseado na dignidade da pessoa humana. A atenção à natureza humana, permite descobrir o direito natural e a lei natural, base de qualquer outra legislação positiva, que só é correcta se apoiada naquela e orientada para o bem comum. Então, o poder civil só tem legitimidade se procura ordenar as actividades humanas na promoção do bem comum. A política deve subordinar-se à pessoa humana. 369

A Filosofia Moderna, entre os séculos XVII e XIX, entre Descartes e Hegel, caracteriza-se antropologicamente pela valorização da razão. Razão autónoma, independente, auto-suficiente, emancipada. O homem, enquanto fundamento, é autónomo e independente. Assiste-se ao protagonismo do homem em detrimento de Deus. Se o homem é racional, a razão é a solução para toda a problemática humana. A emancipação da razão, começada com o Racionalismo cartesiano, desenvolve-se com o Iluminismo de Hobbes, 370

de Rousseau, de Smith e de Kant, entre outros, e agudiza-se com o Idealismo de Hegel. 371

O fim do século XIX apresenta sinais contraditórios em torno da concepção filosófica da pessoa humana. Se nele se evidenciam nomes como os de Nietzsche, Feuerbach, Marx, Engels, Malthus, Bentham, Stuart Mill, Freud e Schopenhauer, que a colocam de parte, nele também se destacam Kierkgaard De Maistre, Lammenais, Bautain e Louis De Bonald, Maine de Biran, Blondel, Bergson, Scheler, entre outros, que a procuram recuperar. Estes últimos, cada um a seu modo, vão contribuir para o regresso da pessoa ao pensamento filosófico. O Personalismo, em pleno século XX, saberá manifestar-lhes a devida gratidão.

Cf. SELLÉS - La Persona Humana, Parte I, p. 142-143.

369

Racionalismo é a emancipação da razão humana face a qualquer outro fundamento como a autoridade, a

370

tradição, a moral, a fé, etc. O racional, no homem, é o absoluto. Cf. SELLÉS - La Persona Humana, Parte I, p. 150.

2.2.2 A pessoa em Emmanuel Mounier

Mounier apresenta uma visão global da pessoa humana. Visão aberta, moderna. A pessoa é uma realidade ontológica e subsistente, presente no mundo e com capacidade para agir nele e, em liberdade, o modificar. Tem um carácter singular, único, rico, denso, irrepetível. A riqueza e a subjectividade do ser pessoal dificultam a possibilidade de uma definição literal. 372

Mounier considera, então, que a pessoa, mais que ser definida, deve ser descrita. É pela vida e na vida que se descobrem os caminhos do mistério pessoal. Cada pessoa é um mistério. Toda a definição acerca da pessoa é, por isso, redutora. Contudo, Mounier tenta uma definição. Elabora-a. Apresenta-a:

“Uma pessoa é um ser espiritual, constituído como tal, por uma forma de subsistência e de independência no seu ser. Mantém esta subsistência com a sua adesão a uma hierarquia de valores livremente adoptados, assimilados e vividos num compromisso responsável e numa constante conversão. Unifica assim toda a sua actividade na liberdade e desenvolve pela sua acção criadora a singularidade da sua vocação.” 373

A singularidade a que Mounier se refere não incompatibiliza a pessoa com a comunidade. Pelo contrário, reclama-a. Cada um só é a sua verdade na relação com todos os outros. A partir daqui, Mounier coloca em evidência as dimensões essenciais da pessoa e os seus espaços vitais.

Vocação

A vocação é o acto próprio da pessoa, o princípio unificador do seu agir. O homem, cada homem, tem uma vocação. Deve descobri-la. Identificar o seu centro. Estruturar, a partir dela, a sua acção. Condição sine qua non da coerência, da unidade, do sentido da vida. A unificação do sentido da vida é um caminho. Caminho que não reduz o que integra. Antes o valoriza, o potencia, o completa, o recria. A pessoa é caminho constante de integração. O indivíduo é movimento permanente de dispersão. O fim da pessoa é a descoberta da sua vocação. A vocação unifica a pessoa. Consigo. Com a transcendência.

Cf. BURGOS - Introducción al Personalismo, p. 98-99.

372

MOUNIER, E. - Qué es el Personalismo?. In INSTITUTO EMMANUEL MOUNIER - Emmanuel

Encarnação

A encarnação evidencia a dimensão corporal da pessoa. Unifica o homem com o universo. O homem não é mero espírito. É espírito encarnado. É corpo exactamente 374

como é espírito. Integralmente corpo. Integralmente espírito. Fusão plena. Inextricável. A amplitude das suas capacidades percorre a vastidão entre os instintos primários e as sublimes expressões artísticas. Mas não dispensa o corpo, nem é imune aos seus limites. No homem, existir subjectivamente e existir corporalmente são uma única e mesma existência. Do mesmo modo que não há pensamento sem ser, não há ser sem corpo. Pelo corpo, o homem expõe-se a si próprio. Através do corpo, o homem expõe-se ao mundo. A união indissociável entre espírito e corpo prolonga-se para além do próprio homem. Liga-o ao mundo, liga-o à natureza, com laços irrompíveis. 375

Comunhão

A comunhão recorda o carácter social e comunitário da pessoa. A dimensão social do homem “é uma dimensão radical, irredutível, primária, consubstancial.” A pessoa 376

autentifica-se pela capacidade de acolher e de se dar. A experiência fundamental do homem não reside na originalidade, na auto-suficiência, na afirmação solitária, na separação. Reside na comunhão, na comunicação, no movimento. Para fora. Para o outro. A concepção personalista convida à abertura, à comunhão. Entre as pessoas. Com o mundo. Os outros não a limitam. Fazem-na ser. Fazem-na crescer. O tu, o nós, precedem o eu. Ou, pelo menos, acompanham-no. A comunhão compromete. Mas não limita. Amplia. Constrói. Faz cada um presente. Para si. Para os outros. Ser presente é condição que viabiliza a criação ampla de uma sociedade de pessoas. A criação de uma sociedade viva, de uma civilização personalista e comunitária convoca a pessoa a sair de si própria para se lhe oferecer. A ser toda para todos. Sem dissolução de si. Sem perda de identidade. A Cf. DOMINGUES, B. - A Pessoa: entre o mundo e Deus. Porto: Metanoia, 1988. p. 38. Obra dedicada

374

pelo autor “À memória do Dr Francisco Sá Carneiro, com quem estes e outros temas do Personalismo foram ampla e vivamente debatidos”.

Cf. MOUNIER, E. - O Personalismo. Coimbra: Ariadne Editora, 2004. p. 45-66.

375

LOBATO, Abelardo - Dignidad y Aventura Humana. Salamanca: Editorial San Esteban, 1997. p. 176.

exprimir-se. Livre. Responsável. Corajosa. A expor o seu rosto. A disponibilizar o seu ombro. A sofrer na própria carne. Com generosidade. Em acto gratuito. Em acto contínuo. Em acto de amor. Amor como nova forma de ser. “Amo, logo o ser é, e a vida vale a pena ser vivida.” 377

Comunidade

A comunidade é um factor indispensável para a pessoa. O personalismo de Mounier é comunitário. É-o pela insistência na relevância da comunidade para a realização do ser pessoal. Nem todos os grupos ou agregações de pessoas formam uma comunidade. Para se poder falar de comunidade é necessário que se leve a pessoa a sério, é necessário assumir e integrar a sua dignidade e irrepetibilidade. É necessário ver no outro um tu, um próximo, não um mero semelhante. Só deste modo é possível chegar ao nós, que viabiliza a comunidade. A esse nós, chega-se pelo amor. “O amor é a unidade da comunidade, como a vocação é a unidade da pessoa.” A comunidade personalista, a comunidade que viabiliza 378

o crescimento do ser pessoal é uma comunidade, cujos laços não são utilitários, mas pessoais, porque constituídos sobre uma densidade de relações eu-tu, vividas em plenitude, cimentadas pelo amor. A comunidade personalista é, então, uma “pessoa de pessoas”. O Personalismo recusa a afectação pejorativa à existência social. Defende a importância das estruturas colectivas. Mas distingue-as. Hierarquiza-as. Adopta-as em função do seu maior ou menor potencial comunitário, da sua maior ou menor personalização. Recusa a aglomeração que impede a distinção, a lucidez e a responsabilidade. Rejeita o mundo da consciência sonolenta, dos instintos anónimos, das opiniões vagas, dos respeitos humanos, das relações mundanas. Não aceita o conformismo, social ou político, a mediocridade moral da multidão anónima, indiferente. Não. O personalismo não aceita isto como não aceita as sociedades vitais ligadas a funções que coordenam, mas não unem. Não aceita as sociedades racionais, fundadas no acordo dos espíritos sobre um pensamento impessoal ou numa ordem jurídica formal, que sufoca a pessoa num labirinto regulamentador. Não. A

MOUNIER - O Personalismo, p. 77.

377

MOUNIER, E. - Revolucion Personalista y Comunitaria. In INSTITUTO EMMANUEL MOUNIER -

ordem da pessoa é constituída por um movimento dialéctico: entre a afirmação dum absoluto pessoal, que resiste a qualquer redução e a edificação de uma unidade universal constituída por pessoas singulares. É entre esta tensão que o caminho se faz. Orientado pela bússola da unidade da humanidade. Bússola recuperada da tradição judaico-cristã e da sua defesa da igualdade dos homens diante de Deus criador e que a todos chama à salvação em Jesus Cristo. É esta mesma bússola que permite viabilizar as estruturas sociais, enquanto estruturas de pessoas livres, intotalitarizáveis, que crescem na comunhão, na comunidade. 379

Vida política

As relações inter-pessoais e laborais encontram um novo espaço na vida social e cívica. O homem não é só animal racional. É, também animal político. Se a racionalidade indica algo interior, que irradia em todos os sentidos, o político indica a dimensão exterior das relações do homem com o homem, formando uma sociedade completa. A vida política é a vida do homem na unidade cidadã-nacional-estatal. A política é serviço de participação na vida da cidade. A autoridade é o maior serviço. O bem-comum resulta da integração de todos os serviços, de tal modo que as pessoas possam desenvolver os seus dotes de racionalidade. A racionalidade da vida política expressa-se nas leis, pelas quais se procura a justiça, o bem-comum e o desenvolvimento integral. 380

Intimidade

A Pessoa é, também conversão íntima, interioridade. É ser-para, movimento rumo ao outro, impulso vital constitutivo do ser, rio que corre e que cresce ao correr. Mas não há pessoa sem ser. Onde tem, então, a pessoa a sua nascente? Qual a fonte de que se fez e de que se faz? Existirá sem ela? Silêncio, segredo, recolhimento, interioridade: alimentos do ser, impulsos decisivos, vitais, determinantes da pessoa. O homem não é exterioridade pura. Não vive expulso de si próprio, confundido pelo tumulto exterior, vulnerável aos

Cf. MOUNIER - O Personalismo, p. 82-93.

379

Cf. LOBATO - Dignidad y Aventura Humana, p. 216.

ventos dos apetites, dos hábitos, das funções. Vida imediata. Mas sem sentido. As distracções, o ruído, o apelo permanente, a sobre-informação comprometem o usufruto pleno da vida, inviabilizam o gosto pelo tempo que corre, impedem a paciência da obra que amadurece, silenciam as vozes interiores, dificultam a acção dos critérios, encarceram a pessoa. Não em si. Mas fora dela, no exterior. Só no recolhimento é possível suster a voracidade do mundo. O recolhimento liberta da prisão das coisas. Para a pessoa, é vital parar o movimento, instalar o silêncio: em si, no seu centro íntimo. Para que dele se alimente. Para que nele se reforce. Para que por ele salvaguarde o vital segredo, a renovada vida, a fecunda densidade. As pessoas completamente viradas para fora, para a exibição, para a conversa, para o alarde, esgotam-se. As pessoas reservadas na expressão, as discretas, as serenas, respeitam-se. Têm em si o pudor. Sentimento pessoal que sustém o movimento desregulado da saída de si, do esvaziamento, da vulgaridade. As pessoas reservadas encontram a intimidade. Encontram-se na intimidade. E, nela, a plenitude e a alegria emergem, refrescadas nas fontes interiores, onde o ser social não se esconde, nem se refugia. Mas delas regressa, renovado, para melhor se dar. Movimento vital, do recuo para a afirmação. Movimento que exige um território para onde recuar: o da intimidade.