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Plano Real e a dependência financeira

Foi a partir do Plano Real que se ergueu a configuração política e econômica que atualmente está em crise, instaurada no governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) e mantida nos governos Lula e Dilma. O plano surgiu a partir da necessidade de reafirmar e intensificar as reformas neoliberais na América Latina impostas pelo Consenso de Washington, consolidando o setor financeiro como o principal beneficiado das políticas econômicas do país, assumindo o lugar da parasitária burguesia industrial dominante no período de substituição de importações. De forma subjugada à classe capitalista financeira, o mesmo buscou acomodar os interesses das demais classes sociais – como os latifundiários, os industriais e parte da classe trabalhadora. O Plano Real surge após a crise da dívida, em um cenário marcado pelo baixo crescimento econômico combinado com altas taxas de inflação nos países dependentes, assunto já explicado de forma detalhada no capítulo III desta monografia.

O caminho de legitimação do Plano Real passou fundamentalmente pela construção ideológica de que a inflação era o maior dos males que o Brasil enfrentava, à frente do subdesenvolvimento, dos baixos salários e da exorbitante dívida pública. O Plano foi apresentado enquanto um remédio necessário para se vencer esse maior dos males do país, o qual supostamente prejudicaria principalmente a classe trabalhadora. Nas palavras de Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e membro atuante na formulação do Plano Real, pode-se perceber com clareza a tentativa de identificar a inflação como uma espécie de “injustiça” contra os mais pobres:

A inflação (...) nada mais é do que um imposto, e um particularmente perverso, posto que incide exclusivamente sobre o pobre. Constitui óbvia tolice imaginar o desenvolvimento econômico, ainda mais quando pensado como processo amplo que incorpore necessariamente o progresso na dimensão social, deva ter como pré- requisito um imposto sobre o pobre. (FRANCO, 1998, p.122)

Esse discurso foi utilizado como uma forma de buscar acomodar os interesses da classe trabalhadora na nova configuração política instaurada a partir do Plano Real. A inflação exigia um grande nível de organização sindical para garantir apenas a manutenção dos salários reais, o que além de ser politicamente exaustivo muitas vezes não era possível diante de conjunturas desfavoráveis para a classe trabalhadora na luta de classes. Nesse caso, a inflação de fato corroia o poder de compra da classe trabalhadora e trazia, portanto, grandes prejuízos à mesma. O que ficou de fora do discurso professado pelos elaboradores do Plano Real é que aos trabalhadores a estabilidade de preços não garante melhores condições de vida (OURIQUES, 1997). Os ganhos reais dos trabalhadores dependem de outros fatores, como a capacidade da classe trabalhadora organizada em pressionar por maiores condições salariais e direitos, a taxa de desemprego, a intensidade de acumulação de capital, etc.

Já a classe dominante tem seus meios de elevar as taxas de exploração seja em momentos de estabilidade monetária, seja em momentos de elevação dos preços. De acordo com Ouriques (1997):

A inflação foi sempre uma estratégia para transferir riqueza das classes populares para a classe dominante, o que tem levado alguns economistas a reconhecê-lo como resultado de um conflito distributivo. Contudo, isto não nos impede de afirmar que em períodos de inflação alta os trabalhadores podem perder menos do que em períodos de inflação baixa, e é assim que podemos destacar o caráter mitológico do combate à inflação que, em nome de diminuir as perdas das classes subalternas, não faz mais que aprofundar sua exploração. (OURIQUES, 1997, p. 132)

Sendo apresentado enquanto uma medida que tinha como foco melhorar a situação dos trabalhadores, o Plano Real escondia sua principal função: colocar o setor financeiro no centro do bloco de poder do Estado brasileiro, em perfeito alinhamento com os interesses imperialistas e permitindo uma intensa ampliação da massa de capital fictício acumulada por meio da dívida pública.

O Plano Real se sustentou substancialmente sob três pilares: a supervalorização do câmbio, a alta das taxas de juros e o ajuste fiscal. A supervalorização da moeda torna as importações mais baratas comparativamente à produção interna e estimula a compra de

mercadorias estrangeiras, sendo uma medida eficaz para combater a inflação no curto prazo. Como contrapartida, há um desestímulo à produção doméstica e uma tendência a déficits na balança comercial. Em 1994 a balança comercial apresentava um superávit de mais de 10 bilhões, que foi sendo reduzido até chegar a um déficit da ordem de 6,6 bilhões, em 1998 (FILGUEIRAS, 2000). A fim de atrair capitais que permitissem sustentar a valorização cambial e também equilibrar o déficit no balanço de pagamentos agravado pelo aumento das importações, elevaram-se as taxas de juros. A elevação das taxas de juros gerou um desestímulo ao investimento produtivo, seja por tornar o crédito menos acessível, seja por torná-lo menos lucrativo comparativamente ao investimento financeiro. Diante das altas taxas de juros e da inflação reduzida, o setor financeiro tornou-se o principal beneficiário desta política, em especial o setor financeiro internacional, dada a discrepância entre as taxas de juros brasileiras em relação às externas. Como resultado, a dívida interna que representava 21,3% do PIB, em 1994, se elevou intensamente diante das exorbitantes taxas de juros, passando para 37,5%, em 2002, no último ano do segundo mandato de FHC (FILGUEIRAS, 2007).

O setor produtivo, mesmo que em visível desvantagem diante de tais políticas, permaneceu acomodado com relação ao Plano Real porque conseguiu auferir lucros elevados, dado seu alinhamento com o capital estrangeiro e através da superexploração da força de trabalho. A abertura dos mercados possibilitou que o setor industrial tivesse acesso facilitado à “importação tecnológica”, uma vez que o câmbio valorizado reduzia o custo de importação de máquinas e equipamentos para o setor. Sempre orientada para a importação de tecnologia ao invés da busca interna pela elevação da produtividade, a burguesia industrial se reafirmou enquanto sócia menor do capital estrangeiro.

A redução dos gastos primários do governo e a privatização de empresas estatais foram defendidas com base no discurso ideológico de que o déficit fiscal era uma das principais causas da inflação, devendo, portanto, ser combatido. No governo FHC, as privatizações foram justificadas como forma de elevar a eficiência econômica e proporcionar ao Estado recursos que seriam investidos nas áreas sociais e também na redução da dívida pública. Todavia, a venda das estatais passou longe de se reverter em qualquer ganho social e muito menos de contribuir para a redução da dívida pública, que se elevava intensamente diante das altas contínuas nas taxas de juros. O dinheiro arrecadado com as privatizações não foi nem mesmo superior às perdas que o governo obteve no processo: se entre 1991 a 1998 “o

país teria arrecadado 85 bilhões de reais com as privatizações, (...) perdeu pelo menos 87 bilhões de reais com as privatizações” (GONÇALVES E POMAR, 2001, p. 26). A dívida líquida do setor público que em 1994 valia 153 bilhões ou 30% do PIB passou a representar 881,1 bilhões em 2002, valor equivalente a 50,5% do PIB (FILGUEIRAS; GOLÇALVES, 2007).

Ainda que a valorização cambial aliada às altas nas taxas de juros se consolidasse enquanto um mecanismo eficiente para reduzir a inflação no curto-prazo, tal medida se demonstraria insustentável no longo prazo. Manter a moeda brasileira supervalorizada diante de um nível de produtividade muito inferior ao ritmo das economias centrais implicava na necessidade de entradas massivas de capitais para sustentar o câmbio, a fim de contrabalancear a redução das divisas causada pelo déficit comercial. De acordo com Ouriques:

As contradições inerentes ao “êxito de curto prazo do plano” no que diz respeito ao controle momentâneo da inflação levam, inevitavelmente, a sua crise no médio ou longo prazos. Esta crise manifesta-se sob a forma de uma brusca desvalorização da moeda, motivada pelo baixo crescimento da competitividade industrial do país e dos elevados déficits comerciais. Outro fator de pressão decisivo é o aumento do sistema de dívidas – interna e externa -, consequência natural da estratégia implantada que conspira contra a estabilidade da moeda na medida em que aprofunda a crise financeira do Estado, que é impossível de ser controlada por maior que seja a disciplina fiscal imposta. (OURIQUES, 1997, p. 94).

Foi a partir da crise asiática e, posteriormente, da crise russa que o caráter insustentável de tais políticas se tornou explícito. A fuga de capitais decorrente dessa nova conjuntura levou o governo a intensificar o usual pacote de políticas, reproduzindo suas contradições em maior escala. Foram ampliadas as concessões ao capital estrangeiro, a taxa de juros foi elevada para o patamar de 49% a.a em junho de 1994, além de feito um intenso ajuste fiscal, que tinha a previdência como seu maior alvo (FILGUEIRAS, 2000).

Ainda assim, a fim de evitar um possível colapso o Brasil celebrou em 1999 um acordo com o FMI. Esse acordo com o FMI pode ser compreendido por meio das próprias palavras de Gustavo Franco: “Quando existem acordos de crédito com o Fundo (FMI), há uma perda de soberania, e isso pode ser aceitável para outros países, mas não para nós”13. As recomendações da política econômica foram a desvalorização do real; ampliação as reformas neoliberais em voga até então; redução do déficit fiscal e ampliação da abertura comercial e

financeira. O acordo visava assegurar que o país teria recursos para prosseguir realizando os pagamentos dos juros e amortizações da dívida pública. Além disso, a desvalorização cambial contribui para atender os interesses da burguesia exportadora mais firmemente. Foi a partir da crise cambial e das novas medidas de políticas econômicas que durante o segundo mandato do FHC se implantou o tripé macroeconômico, baseado no câmbio flutuante, no superávit primário e nas metas de inflação.

O Plano Real, longe de ter sido apenas um plano técnico que visava estabelecer a estabilidade monetária, instaurou um pacto de classes que permitiu a governabilidade dentro do capitalismo dependente brasileiro, em consonância com os interesses do capital financeiro nacional e internacional. Em contrapartida, os efeitos trágicos sob a produção nacional, o crescimento econômico e o elevado nível de desemprego colocavam grandes impasses para sustentar a continuidade das reformas neoliberais nas eleições presidenciais de 2002. O desgaste dos governos FHC perante a classe trabalhadora se agravou com a crise de 2001. Nesse contexto, Lula surge como o candidato ideal para dar continuidade a manutenção do atendimento dos interesses da classe dominante e prosseguir com a dependência brasileira, agora em um novo momento do ciclo econômico.