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A semântica dedica-se ao estudo do sentido e da aplicação das palavras ou sinais de uma língua em um determinado contexto. A compreensão dos significados das sentenças envolve tanto os elementos lexicais isolados e o modo como estes se relacionam, como o contexto sócio-discursivo.

Na Língua Brasileira de Sinais, o uso do espaço serve a propósitos gramaticais e semântico-pragmáticos, isto é, resulta em significados semânticos (por exemplo: os pronomes pessoais) e pragmáticos (as características contextuais codificadas nas formas pronominais).

Além disso, como ocorre com línguas distintas, o significado de um sinal pode não corresponder exatamente ao de uma palavra equivalente em português. Em se tratando de sinais polissêmicos (com vários significados), o contexto determina a nuance do significado em questão. Palavras consideradas polissêmicas, na LIBRAS, podem não ter equivalentes polissêmicos em português e vice-versa. Também existem expressões metafóricas específicas desta língua, como TOCAR-VIOLINO, cujo significado é “monotonia” ou “ser monótono”.

A LIBRAS também dispõe de recursos que permitem ao sinalizador variar o registro, ou o nível de linguagem, a fim de adaptar seu discurso ao grau de familiaridade entre ele e seu interlocutor, à ocasião, ao ambiente, ao tema e ao tom que lhe deseja conferir. Os atos de fala, por exemplo, podem se distinguir pelas expressões faciais e pelo ritmo que são equivalentes às entoações em português.

Portanto, verifica-se que, na Língua Brasileira de Sinais, a construção do significado das sentenças ocorre de maneira distinta do português. Respeitando os aspectos visuoespaciais, a LIBRAS apresenta regras específicas para o estabelecimento sócio- comunicativo; mas obedece aos princípios gerais das línguas naturais, sendo constituída por componentes fonológicos, morfológicos, sintáticos e semântico-pragmáticos que propiciam aos utentes dessa língua uma comunicação perfeita.

5 APRENDIZAGEM DA ESCRITA DE L2 POR SURDOS: UM

REFLEXO DE INTERFERÊNCIA DE UMA LÍNGUA DE SINAIS

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou. O que se salva então é ler “distraidamente”.

Clarice Lispector A aprendizagem e o domínio da linguagem, principalmente em sua modalidade escrita, acarretam mudanças significativas no desenvolvimento humano. Por meio da escrita é possível expor ideias e experiências, desenvolver a imaginação e o raciocínio crítico e ampliar a própria capacidade de comunicação. É possível realizar não apenas a leitura da palavra; mas, sobretudo, a leitura do mundo.

No caso específico dos surdos, verifica-se que a aprendizagem da escrita também é de fundamental importância para a ampliação dos processos comunicativos. Embora as línguas de sinais possuam regras gramaticais próprias que asseguram uma comunicação completa e eficaz aos seus usuários, poucos ouvintes são usuários dessas línguas. Para interagir com um número maior de pessoas e, assim, ampliar seu universo comunicativo, um indivíduo surdo tem a necessidade de aprender a língua escrita da comunidade oral-auditiva do país onde vive.

Observa-se, entretanto, que o aprendizado da linguagem escrita não se limita à simples compreensão dos códigos de uma determinada língua. É uma tarefa complexa e exige do indivíduo tanto a potencialidade de assimilar as diferenças específicas dos sistemas fônico, fonológico, morfológico e lexical da língua; quanto a habilidade de identificar o que há de peculiar na estrutura sintática e no modo como as relações semânticas se estabelecem. Desse modo, verifica-se que o domínio da escrita de uma língua é um processo gradual, através do qual o indivíduo reflete a respeito dos fatos do próprio sistema de escrita, combinando os

elementos de maneira singular e distanciando-se, muitas vezes, da variante “padrão” da língua escrita.

Uma das possíveis maneiras de se lidar com a frequência dos “erros” no processo de aprendizagem da escrita é considerá-los como uma escrita fonética, ou seja, uma reprodução da fala. Contudo, no que diz respeito aos surdos, verifica-se que, pelo fato de se comunicarem, na maioria das vezes, através de uma língua de modalidade visuoespacial, apresentam dificuldades distintas àquelas apresentadas pelas crianças ouvintes.

Conforme Fernandes (1990), os surdos deixam transparecer, através das construções escritas, considerável limitação no que se refere ao domínio da estrutura da Língua Portuguesa: restrição lexical; falta de consciência no processo de formação de palavras; uso inadequado das conjugações, tempos e modos verbais; omissão e uso inadequado de preposições e conectivos em geral; falta de domínio e uso restrito de certas estruturas de coordenação e subordinação.

Alguns discursos tentam relacionar a frequência dessas dificuldades a uma natureza patológica, entendendo a surdez como uma doença que afeta cognitivamente o indivíduo e que, consequentemente, gera uma linguagem fragmentada e incoerente. Entretanto, pesquisas recentes têm demonstrado que, embora o surdo possua uma limitação sensorial auditiva, esta não afeta necessariamente sua cognição, nem sua predisposição para a aquisição de uma língua. No âmbito dos estudos surdos, surdez não significa doença, mas diferença.

Na verdade,

Não é apenas o fato de o surdo não receber informações auditivas que interfere nas suas práticas linguístico-discursivas [...], mas também o fato de sua língua fundadora (a língua de sinais) não estar [ou estar] participando ativamente no processo de elaboração discursiva. A língua de sinais, portanto, não pode ser desconsiderada quando se avaliar e trabalhar com as produções escritas dos surdos. (GUARINELLO, 2007, p. 59)

De fato, o processo de aprendizagem da escrita pelos surdos é mediada através de uma língua de sinais. Desse modo, muitas dificuldades que os surdos apresentam nas construções escritas advêm do fato de que estes se baseiam na estrutura de uma língua de sinais. Confirmando este fato, Silva expõe

A língua escrita é um objeto linguístico construído a partir de seu lugar social. Assim, tanto o surdo quanto o ouvinte terão como pressuposto a língua que já dominam para ter acesso à linguagem escrita. A língua que o surdo tem como legítima e usa não é a mesma que serve como base ao sistema escrito, por ser um sistema visuomanual, portanto muito diferente do oral auditivo. (SILVA, 2001, p. 48)

Assim, não se pode deixar de levar em consideração que o aprendizado, pelo surdo, da escrita de uma língua oral-auditiva é a aprendizagem de uma segunda língua. Há, sem dúvida, diferenças significativas entre as línguas orais-auditivas e as línguas de sinais, já que cada modalidade possui regras e recursos específicos.

Somente por meio da negociação e das interações entre essas modalidades de língua é que o surdo será capaz de aprender as diferenças e usar cada língua de acordo com suas normas. No caso específico da escrita, o surdo deve basear-se em experiências com a língua que já domina, em geral a de sinais, para construir e desenvolver essa forma de comunicação. (GUARINELLO, 2007, p. 56)

Nesse sentido, verifica-se que o domínio de uma língua de sinais é fundamental para o processo de aprendizagem de uma segunda língua pelos surdos e que os equívocos presentes na escrita destes são, muitas vezes, consequentes da associação entre a língua já adquirida e a que está sendo aprendida. Em consonância com estas ideias, Guarinello (2007, p. 87) escreve: “os erros devem ser encarados como decorrentes da aprendizagem de uma segunda língua, ou seja, resultado da interferência da sua primeira língua e da sobreposição das regras da língua que está aprendendo.”

Também se verifica que a falta de domínio de uma língua de sinais pelo surdo compromete o processo de aprendizagem da escrita, visto ser tal língua indispensável para o desenvolvimento de habilidades cognitivas, semânticas e pragmáticas que auxiliarão na aprendizagem de outra(s) língua(s).

Assim, observa-se que a escrita do surdo reflete os conhecimentos deste em relação a uma língua de sinais; apresentando características normais do aprendizado de uma segunda língua. Mas à medida que o contato com a nova língua vai sendo intensificado, através de relações discursivas significativas, novas regras vão sendo aprendidas e os “erros” vão se transformando em “acertos”. Certamente,

A aquisição do léxico e a capacidade de planejar o discurso numa segunda língua podem ser facilitadas com a maturidade, através de estratégias metalinguísticas conscientes que concentrem nos procedimentos, depois transferidos para o uso da língua. Para essas habilidades, quanto maior o domínio linguístico na língua nativa, tanto mais facilitado o caminho para a proficiência nas segundas línguas, nessas habilidades. (SCLIAR-CABRAL, 1988, p. 47)

Entretanto, é preciso ressaltar, conforme Karnopp (2009), que embora seja a língua de sinais que forneça o conhecimento de mundo e atue como a língua de significação do surdo, nem todo o surdo fluente em uma língua de sinais apresenta um bom desempenho na leitura e escrita de uma língua de modalidade oral-auditiva.

Segundo a autora, a imersão na leitura e escrita da língua portuguesa pelo surdo está intimamente ligada às experiências de leitura, escrita e tradução vivenciadas tanto na escola como fora dela. Portanto, para além de uma pedagogização da escrita, é necessária uma discussão em torno do tema letramentos, tendo como pressuposto a ideia dos usos sociais da escrita pelo surdo, as práticas e o contato que o mesmo tem com a leitura, escrita e tradução de uma língua para outra.

Também Soares (2002) argumenta que a criança precisa saber fazer uso das atividades de leitura e escrita, ou seja, precisa compreender, inserir-se, avaliar, apreciar a leitura e escrita por meio do convívio efetivo com estas práticas. Nesse sentido, observa-se que “o letramento compreende tanto a apropriação das técnicas para a alfabetização quanto esse aspecto de convívio e hábito de utilização da leitura e da escrita.” (LEBEDEFF, 2005, p. 129)

Assim, os surdos usuários da Libras, que apresentam um bom desempenho na leitura e escrita, são aqueles que têm mais contato com os usos sociais da escrita, através da leitura de jornais, revistas, cartas, materiais pedagógicos, gibis, livros, uso da escrita para escrever mensagens em telefones, e-mails, diários pessoais, tradução e criação de histórias escritas... enfim, práticas frequentes e constantes de leitura, escrita e tradução, em geral, com o apoio de algum familiar ou intérprete (cf. Karnopp, 2009).

Contudo, nota-se que, nos anos iniciais da escolarização, boa parte das crianças, sejam elas surdas ou ouvintes, são expostas a atividades artificiais de escrita em sala de aula, ou seja, “a língua escrita é apresentada como algo de domínio oficial, escolar, não há função social (e, muito menos, prazerosa) para essa escrita, apenas uma função escolar.” E, no caso dos surdos, a situação é ainda mais complexa, pois “embora a língua de sinais seja considerada importante, em muitos contextos, ela passa a ser uma ferramenta, cujo objetivo final é a escrita da língua portuguesa. É [...] a língua ‘deles’, dos surdos, mas não chega a ser a língua da educação do surdo.” (KARNOPP, 2009, p. 2) Tal fato, provavelmente, perpetua a longa tradição histórica que deu privilégio ao uso das línguas de modalidade oral-auditiva, menosprezando e proibindo a utilização das línguas de sinais pelos surdos.

Diante dessas constatações, nota-se que a escola tem importante função, seja no rompimento de estigmas e preconceitos existentes em relação à surdez e às línguas de sinais;

seja no desenvolvimento de competências e habilidades para a apreensão de uma segunda língua por surdos através de atividades significativas com a leitura e escrita.