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CAPÍTULO 3 MECANISMOS ENUNCIATIVOS

1 OS FUNCIONAMENTOS LINGUÍSTICOS E OS PLANOS DE ENUNCIAÇÃO

3.2 Os planos de enunciação para De Vogüé

Os planos de enunciação que Benveniste (1995) apresenta em seus pressupostos teóricos são retomados por Sarah de Vogüé (1989) sob uma outra perspectiva. Apesar de haver uma correspondência entre as reflexões dos teóricos, esta última propõe uma continuidade às discussões de Culioli (1999) sobre os funcionamentos da linguagem.

De Vogüé (1989), então, diferencia suas propostas das de Benveniste (1995) nos seguintes pontos:

• apresenta três planos de enunciação, a saber, histórica, de constatação e de discurso;

• relaciona os planos de enunciação com as marcas léxico-gramaticais que os caracterizam, ao invés de associar os planos com apenas marcas de tempos verbais como o faz Benveniste.

Vejamos, então, as reflexões de De Vogüé (1989) a respeito de cada um dos planos de enunciação, suas características e a relação que estabelecem entre os funcionamentos linguísticos (discreto, denso e compacto).

3.2.1 Plano de Enunciação Histórico

Os enunciados se produzem de modo a apresentarem um sujeito como sendo o agente de um processo que culmina em uma finalidade. A partir de uma causa, o sujeito desencadeia uma sucessão de fatos que vão chegar a um estado resultante.

De Vogüé (1989) fala de agente (causa) / processos / finalidade (padrão) na enunciação histórica, que estabelecem relação com o funcionamento discreto da atividade de linguagem (como já especificado neste capítulo, item 2.1).

Tendo em vista os enunciados que compreendem o plano histórico e o funcionamento discreto, podemos, por meio de uma glosa, dizer que “houve um processo”. Isto é, o sujeito assume sua função de causativo de um processo que atinge seu ponto limite de acabamento, e não resta nada a dar continuidade.

A enunciação histórica de De Vogüé (1989) converge, em partes, para a enunciação histórica de Benveniste (1995) no que concerne à narrativa se desenrolar conforme os acontecimentos forem aparecendo na história. Por um outro lado, De Vogüé (1989) abre a reflexão desse plano ao considerar que os acontecimentos, além de poderem ser narrados, também manifestam uma série de situações que atingem um ponto de cumprimento. Segundo De Vogüé (1989, p. 35), “os acontecimentos que não são mais apenas fatos a contar

(o que daria a narrativa), que tomam um sentido, se inscrevem num desenrolar o qual não é qualquer um (fala-se de cadeias causais)” 35.

3.2.2 Plano de Enunciação de Constatação

Os enunciados se produzem de modo a apresentarem um sujeito que localiza noções de uma determinada situação onde se dá um processo.

Tal processo se caracteriza, segundo De Vogüé (1989), como sendo parte de um “todo maior”, e se manifesta em estrutura narrativa. A narração, aqui, atende a uma história contada por um sujeito-locutor que não se coloca, não se posiciona; os acontecimentos registrados se “auto-narram”, e não há um sujeito que assume seu discurso.

Tendo em vista o processo como parte de um todo maior, encontramos noções (densas) que se relacionam com o extrínseco (todo maior), ou os partitivos “um pouco de”, “muito de”, para serem validadas na ocorrência.

De Vogüé (1989) fala de localizadores / processo na enunciação de constatação, que estabelecem relação com o funcionamento denso da atividade de linguagem (como já especificado neste capítulo, item 2.2).

Os enunciados que compreendem o plano de constatação e o funcionamento denso apresentam, pois, o sujeito que assume sua função de localizador de noções, em uma dada situação enunciativa, cujo processo da ocorrência depende de um externo.

A enunciação densa de De Vogüé (1989) não apresenta nenhum correlato com os planos de enunciação de Benveniste (1995), visto que este último propõe os planos histórico e de discurso. Apesar de não haver uma correspondência do plano de constatação entre as reflexões dos teóricos, De Vogüé (1989, p. 35) faz referências da categoria da narração (“récit”) em uma passagem da teoria de Benveniste:

Trata-se, então, do que se pôde chamar, sempre seguindo Benveniste, embora não houvesse ele mesmo [...] empregado este termo, a categoria da narrativa, onde nada é dito pela pessoa ("Ninguém fala aqui"), nada é comentado 36.

35 "des événements qui ne sont plus seulement des faits à raconter (ce qui donnerait le récit), qui prennent un sens, s’inscrivent dans un déroulement qui n’est pas quelconque (on parle de chaînes causales)" (VOGÜÉ, 1989, p. 35).

36 "Il s’agit alors de ce que l’on a pu appeler, toujours à la suite de Benveniste quoiqu’il n’ait pas lui-même [...] employé ce terme, la catégorie du récit, où rien n’est dit par personne (" Personne ne parle ici"), rien n’est commenté" (VOGÜÉ, 1989, p. 35).

3.2.3 Plano de Enunciação de Discurso

Os enunciados se produzem de modo a apresentarem um sujeito como sendo o tema em que a predicação se ancora. Esta atribui uma propriedade ao sujeito selecionado.

Na enunciação de discurso, os enunciados se constroem a partir do ser + adjetivo que se encarna no tema e toma-o como o suporte da predicação.

De Vogüé (1989) fala de tema / proposição na enunciação de discurso, que estabelecem relação com o funcionamento compacto da atividade de linguagem (como já especificado neste capítulo, item 2.3).

A enunciação de discurso de De Vogüé (1989, p. 35) encontra o seu correspondente na enunciação de discurso de Benveniste (1995), ao explicar essa tipologia de plano como “[...] um enunciador predica a propriedade em jogo a propósito do que serve de tema ao seu discurso” 37.

A partir da predicação que se elabora sobre um determinado tema selecionado, temos um colocar em trabalho o discurso. Isso significa que há sujeitos envolvidos nessa atividade, em relação dialógica, e que, ao desenvolverem os enunciados, atribuindo-os uma predicação ao que serviu de proposição, garantem sua enunciação. Assim, para De Vogüé (1989, p. 35), “fazendo isso [o enunciador predicar o tema], leva-se a responsabilidade de seu dizer; e por lá mesmo ele se expõe face a um interlocutor: todo o universo do discurso é colocado em trabalho lá” 38.

37 "[...] un énonciateur predique la proprieté en jeu à propôs de ce qui sert de thème à son discours" (VOGÜÉ, 1989, p. 35).

38 "ce faisant il se porte garant de son dire; et par là-même il s’expose face à un interlocuteur : tout l’univers du discours est là mis en oeuvre" (VOGÜÉ, 1989, p. 35).