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Capítulo 2. Avanços da astronomia antiga

2. A astronomia grega

2.2 Platão

Também influenciado pelas ideias pitagóricas, Platão (c. 428 – 348/7 AEC)

desenvolveu concepções astronômicas que se tornaram fundamentais para a astronomia posterior a ele. Suas ideias astronômicas apresentam dificuldades para o intérprete, tanto pelo grande número de obras em que são expressas quanto pelo modo poético com que são comunicadas. A influência pitagórica aparece primeiramente na adoção, por parte de Platão, do modelo do Universo de duas esferas: ele afirma que a Terra está no centro do Cosmos pelas mesmas razões que Anaximandro, isto é, por não ter motivo para cair em nenhuma direção:

Estou convencido, antes de tudo, que se a Terra, que é esférica, for colocada no meio do Universo, não tem necessidade de ar para não cair, nem de nenhum outro meio desse gênero, dado que basta para sustentá-la a uniformidade do Universo, que é igual a si próprio em cada parte sua, e o equilíbrio da própria Terra. De fato, um corpo em equilíbrio posto num meio uniforme não se inclina nem muito nem pouco para nenhuma parte (PLATÃO, 1997a, p. 242-3 [Fédon, 108e-109a]).

Na República, Platão descreve um modelo mecânico do Universo em que oito rodas são designadas para as estrelas fixas e para os sete planetas, ligadas a um eixo que as mantêm em movimento (PLATÃO, 1997b, p. 523-5 [República, 616c-617e]). A roda externa, a das estrelas fixas, é responsável pela rotação diária dos céus, enquanto as outras sete giram lentamente em sentido oposto, para que ocorram os movimentos dos planetas através da eclíptica. A ordem dos planetas que Platão adota é Lua, Sol, Vênus, Mercúrio, Marte, Júpiter

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Ptolomeu defende que o tamanho da Terra é desprezível em relação ao tamanho do Universo apontando justamente para o argumento dos pitagóricos: não há diferença perceptível nas observações astronômicas feitas em partes diferentes da Terra, o que indica que o planeta é um ponto se comparado aos céus. Ver o livro I, 6 de PTOLOMEU (1984).

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e Saturno (EVANS, 1998, p. 348), seguindo a ordem Lua, Sol e demais planetas de Anaxágoras.

O Timeu, o locus clássico da cosmologia platônica, contém a concepção de que o Universo é um ser dotado de alma criado pelo Demiurgo. Este junta duas faixas em X, e divide a faixa interna em sete círculos. A faixa externa é aquela do “movimento da natureza do mesmo” (PLATÃO, 1997b, p. 563 [Timeu, 36b-d]), o equador celeste com o movimento

diário das estrelas fixas, enquanto a interna, oblíqua, é aquela do “movimento da natureza do diverso”, que representa as órbitas dos sete planetas pelo zodíaco, e gira em sentido contrário à primeira faixa. Assim, os sete planetas orbitariam no mesmo plano, inclinado em relação ao equador. A Terra permanece imóvel no centro, em volta do eixo do Universo (ibidem, p. 569 [ibidem, 40c])58. Além disso, Platão reconhece apenas um movimento para o mundo, aquele circular ao redor do eixo do Universo, e "mais cedo ou mais tarde todos os movimentos celestes devem ser reconduzidos à rotação da esfera estelar" (HANSON, 1973, p. 38).

Mais ainda do que os aspectos cosmológicos, talvez a maior contribuição de Platão para a astronomia seja um problema que ele deixou para os outros astrônomos. Tradicionalmente, acredita-se que Platão tenha proposto aos outros astrônomos que representassem o movimento irregular dos planetas através de movimentos circulares uniformes. Diz Simplício: “Platão colocou este problema para aqueles engajados nesses estudos (i.e., astronômicos): quais movimentos uniformes e ordenados devem ser hipotetizados para salvar os movimentos fenomênicos das estrelas errantes?” (apud VLASTOS,

2005, p. 60). As razões para a colocação desse problema são ao menos duas: em primeiro lugar, o pitagorismo de Platão, que supunha que os movimentos circulares eram mais nobres que os outros; em segundo lugar, uma razão ética, segundo a qual os movimentos celestes deveriam ser uniformes para espelhar o comportamento do homem sábio, do filósofo, que se mantém constante em suas decisões e nos rumos que dá à sua vida (HOCKEY, 2005, p. 914).

PANNEKOEK (1961, p. 102) atribui essa proposição de Platão ao declínio do prestígio dos trabalhos manuais e práticos na sociedade cada vez mais escravocrata da Grécia Antiga. Ao contrário dos babilônios e dos filósofos gregos anteriores, Platão estava interessado não em procurar a representação, a explicação e os constituintes dos fenômenos do mundo do dia-a- dia, e por consequência, dos movimentos dos astros tais quais aparecem aos homens; mas em

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Segundo Aristóteles, Platão ensinava o movimento de rotação da Terra. O passo do Timeu em questão (40c) suscitou um vivo debate que durou por séculos, da Antiguidade até o século XX, motivado por questões filológicas. Sobre isso, ver DREYER, 1953, p. 71-84. Hoje, concorda-se em geral que a rotação da Terra contradiria inteiramente o resto do sistema platônico.

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procurar uma ordem subjacente, inacessível e baseada na teoria, na contemplação, antes da experiência sensível do homem comum. Ainda que essa atitude apareça já no misticismo pitagórico, com Platão ela se eleva ao estatuto de uma verdadeira teoria do conhecimento: o mundo real é o das ideias, não o dos sentidos.

Ainda assim, não se pode dizer que Platão fosse completamente avesso às vicissitudes do mundo sensível e dos movimentos fenomênicos dos céus. Em várias partes da sua obra, Platão mostra que conhecia pontos como a inclinação da eclíptica e o movimento retrógrado dos planetas. Para que pudesse encontrar a ordem subjacente aos fenômenos, era necessário prestar atenção aos movimentos visíveis dos astros, por mais enganadora que fosse a percepção sensível. Gregory Vlastos resume bem a posição filosófica de Platão acerca da relação observação-teoria em sua prática astronômica:

[O] rebaixamento do valor da experiência sensível poderia facilmente ter tornado Platão contrário à metodologia que transformou o estudo dos céus de conjecturas inspiradas em pesquisa controlada empiricamente. [...] Sua prática, se não sua teoria, mostra que ele poderia ter entendido a loucura de qualquer teorização sobre os céus que ignorasse ou negasse fatos averiguados por observação. Sua tarefa era, então, a de reconciliar as convicções a priori de que todos os movimentos são circulares com os fatos empíricos concernentes ao movimento "errante" das sete estrelas. No Timeu, o vemos projetando uma teoria designada a efetivar essa reconciliação: ele hipotetiza que os movimentos do Sol, Lua e planetas são em todos os casos composições de movimentos circulares não-errantes [unwandering] ocorrendo em diferentes direções em velocidades diferentes – o movimento para oeste do Mesmo no plano do equador celeste, composto com o movimento muito mais lento para o leste do Diferente, no ou perto do plano da eclíptica (VLASTOS, 2005, p. 53-4).

VLASTOS (ibidem, p. 61-5) também chama atenção para outro aspecto do Cosmos

platônico: tal como o Universo dos atomistas, aquele platônico também é guiado por leis naturais; o que muda é o fundamento dessas leis. Enquanto os primeiros afirmam que tudo no mundo ocorre por causa do movimento dos átomos no vácuo e dos seus choques e enganchamentos, criando um mundo baseado em leis naturais que não pressupõe divindades, o segundo ensina que o Universo divino criado pelo Demiurgo não será afetado em seu funcionamento – também ele está sujeito a leis naturais, cujo fundamento é o intelecto de uma divindade sem inveja de sua criação. Para Vlastos, a revolução que levou à ciência moderna é nada mais do que a “dissolução do modelo platônico do Cosmos” (ibidem, p. 62). O que determinou a longa vida e o sucesso do modelo platônico foi o seu caráter cinemático, em oposição à busca dinâmica das causas dos movimentos celestes por parte dos atomistas – um objetivo que a ciência antiga não poderia alcançar com os meios que dispunha, e que só

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poderia ser plenamente atingido através da unificação teórica e empírica da física terrestre e celeste e da criação de ferramentas matemáticas novas, avanços realizados nos séculos da Revolução Científica. O astrônomo platônico poderia simplesmente adotar o modelo das duas esferas baseado na metafísica das Ideias e tirar daí conclusões, sem ter que se preocupar com as causas dos fenômenos59. E foi esse o caminho adotado pela astronomia posterior, percorrido por “Eudoxo, Apolônio, Hiparco, Ptolomeu” (ibidem, p. 65).

No documento Modelagem causal da astronomia antiga (páginas 70-73)