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Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. Vai um sujeito.

Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e [na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe

[o paletó ou a calça de uma nódoa de lama: É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero. Sei que a poesia é também orvalho.

Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e [as amadas que envelheceram sem maldade.

(BB, p. 205)

2. 1. O contexto modernista

Para compreender as propostas de Bandeira em relação ao seu projeto poético e pensamento critico, é salutar refletir sobre o conceito de Modernismo, em sua poética que parece desdobrar em tradição e modernidade. De acordo com Lafetá (2000, p.22), devido à sensibilidade do país à modernização dos quadros culturais, o Modernismo destruiu as barreiras da linguagem oficializada, "[...] acrescentando-lhe a força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular. Assim, as componentes recalcadas de nossa personalidade vêm à tona, rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial (...)". Os autores, então, passam a experimentar a linguagem "[...] com suas exigências de novo léxico, novos torneios sintáticos, imagens surpreendentes, temas diferentes, que permite ― e obriga ― essa ruptura".

O grupo dos literatos, principalmente do eixo Rio-São Paulo, do qual Bandeira era participante, entra em contato com leituras dos textos dos futuristas italianos, dos dadaístas e dos surrealistas franceses. A música de Debussy, o teatro de Pirandello, o cinema de Chaplin6, o cubismo de Picasso, o expressionismo plástico

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Em ―O heroísmo de Carlitos‖, uma das Crônicas da Província do Brasil, Bandeira (in Seleta de Prosa, 1997, pp. 123), escreve: ―Aqui é que começa a genialidade de Chaplin. Descendo até o público, não só não se vulgarizou, mas ao contrário ganhou maior força de emoção e de poesia. A sua originalidade extremou-se. Ele soube isolar em seus dados pessoais, em sua inteligência e em sua sensibilidade de exceção, os elementos de irredutível humanidade‖.

30 alemão, a psicanálise de Freud, o relativismo de Einstein e o intucionismo de Bergson constituem-se elementos da base do pensamento modernista brasileiro. Embora essas correntes de pensamento sejam referenciais aos grupos modernistas, nem todos concordavam com essas posições, demonstrando diversidade de ideais e projetos.

Os ecos do Iluminismo e das teorias lançadas pelo Romantismo na Europa, tanto na literatura quanto na música, ainda faziam-se ouvir no território brasileiro. Em Bandeira, tais manifestações são demonstradas nas as cartas enviadas por ele a Mário:

Fizeste bem em nada corrigir na Paulicéia. Beethoven dizia que toda a correção parcial feita mais tarde em uma obra de arte lhe quebra a unidade. E compreende-se: o artista não está mais na [storming] do momento de criação. Salvo quando esse momento de criação é a eternidade de um Fausto. (MORAES, 2001, p. 74)

Esses dois interlocutores, apesar dos anseios por uma brasilidade literária autêntica, deixam transparecer certa identificação com a literatura e a música universal europeia. Segundo Sebastião Uchoa Leite (1966, p. 22), ―O poeta revivificava as tradições. Seu romantismo inato não o abandonou nas futuras metamorfoses e concorreu no início para evitar que o poeta fosse confundido com os ‗grandes‘ parnasianos da época pré-modernista‖. A busca por uma identidade ocorria em toda a América Latina. Tentava-se criar uma fronteira entre o Eu e o Outro. Essa alteridade alterna-se no jogo do duplo: o aqui e o lá, o presente e o passado, impulsionando, conquanto de maneira lenta, a consciência da relação tradição versus modernidade, mais tarde retomada, incisivamente, por T. S. Eliot (s/d) e Octavio Paz (1984), por exemplo.

Dentre os movimentos ocorridos, a Guerra do Paraguai, significou um "[...] verdadeiro divisor entre o denominado tempo antigo e o moderno". (VELLOSO, 2010, p. 40), pois deixou como herança a antagônica situação de escravidão. Moderno, nesse momento histórico, tem a ver com a transição da abolição da escravidão e da implantação do regime republicano. A sociedade impôs ao negro uma dupla identidade: cidadão enquanto soldado nas lutas em defesa do país, especialmente contra o Paraguai, e escravo assim que retornava em solo brasileiro.

31 Com as incipientes transformações no sistema de produção, alterava-se a percepção do tempo, devido às "Mudanças no panorama técnico-industrial" (VELLOSO, 2010, p. 40). Como consequência, gerava-se certo "Estranhamento e mal estar". A velocidade cada vez mais acentuada nos processos e experiências de mundo levava à chamada perda de referências.

Stuart Hall (2006, p. 10) entende esses fenômenos como fragmentação da identidade. Segundo ele, diferentemente do sujeito iluminista, cujo centro era fixo e no qual permanecia, o sujeito moderno, ou sociológico, começa a sair desse núcleo. Ele desliza por outros centros e não consegue retornar ao anterior. Em relação a essa crise, Bosi, no capítulo ―Era dos extremos‖, amplia esse conceito e nos auxilia na compreensão desse fenômeno:

A crise de identidade do sujeito que escreve, que a prática desconstrucionista tende a exasperar, é, no limite, a morte do autor auspiciada, a certa altura por Barthes. Sujeito da escrita e autor seriam, em última instância, encenadores móveis de mensagens pelas quais não passaria uma consciência estruturante estável nem uma personalidade criadora de um estilo próprio. A escrita seria, portanto, um produto de aglutinação de subdiscursos que caberia à Retórica ou à História das mentalidades classificar. (BOSI, 2002, p. 253.)

Para essa recuperar sua história, o poeta moderno precisa forjar um instrumental, e assim, a linguagem alegórica e fragmentada é o modo que encontra para dialogar com a tradição. A tensão causada pelo mal estar, dada a perda da capacidade da fruição do homem, provoca, como postula Stuart Hall (2006, p. 10), a crise de identidade. Isso porque "A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o 'interior' e o 'exterior' - entre o mundo pessoal e o mundo público".

Ainda de acordo com Stuart Hall (2006, p. 12), por projetarmos em nós mesmos essa identidade cultural "[...] ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os 'parte de nós', contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural". Em virtude disso, "A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, 'sutura') o sujeito à estrutura". Bandeira, em sua poesia, por meio da linguagem prosaica, permite a acessibilidade da leitura. A aproximação do leitor

32 com o texto permite-lhe sua acessibilidade ao universo poético, propiciando-lhe, recuperar essa identidade enquanto um sujeito no mundo.

Para entendermos a importância de Bandeira enquanto um escritor preocupado com o seu tempo e com a própria literatura, apoiamo-nos na ideia de Edward Said (2007), que questiona o papel dos intelectuais e, também, a verdadeira função da literatura para humanidade. Um dos pontos centrais de seu pensamento pauta-se no papel do intelectual como mediador na conjugação de humanismo e cidadania, dada a importância das diversidades, e da relação entre as artes e a realidade do homem. De forma um pouco parecida, Bandeira, ao se preocupar com essa inserção do leitor, opta pela linguagem prosaica, como uma espécie de democratização da leitura, mais liberta das formalidades. É nesse sentido que se entende o humanismo na poesia de Bandeira. Embora não tenha sido uma pessoa engajada politicamente, por sua vida reclusa à escrita, Bandeira produz uma poesia que promove a reflexão do leitor.

As mudanças sociais e econômicas ocorridas nesse período contribuíram, de certa maneira, para a transformação do sujeito. A esse respeito, Lafetá (2000, p. 23) escreve:

Outro fator que permite essa convergência é a transformação sócio- econômica que ocorre então no país. O surto industrial dos anos de guerra, a imigração e o conseqüente processo de urbanização por que passamos nessa época, começam a configurar um Brasil novo. A atividade de industrialização já permite comparar uma cidade como São Paulo, no seu cosmopolitismo, aos grandes centros europeus.

Esse fato é relevante, pois "[...] a literatura moderna está em relação com a sociedade industrial tanto na temática quanto nos procedimentos (a simultaneidade, a rapidez, as técnicas de montagem, a economia e a racionalização da síntese)‖ (LAFETÁ, 2000, p. 23). Na poética bandeiriana há a construção da síntese emotiva, sobre a qual o autor discute em carta enviada de Petrópolis, em 6 de janeiro de 1923:

Há qualquer coisa de científico em sua poesia, pelo menos de aguçadamente inteligente. Dá-me, como já lhe disse, o mesmo gozo da moral dedutiva de Espinosa. Não creio que você esteja perdido para a poesia. Onde há síntese emotiva e aproximações bruscas de termos remotos, haverá sempre poesia. A prova é o silogismo regular (...). (MORAES, 2001, p.81)

33 Esse trecho já aponta a identificação do autor com uma escrita poética do amigo composta da síntese emotiva e da busca por termos remotos. De certa maneira, essa fala contradiz em alguns momentos ao que o próprio Bandeira escreve em seus poemas. Exemplo disso é a sua ―Poética‖: Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.”.

No início do século XX, a imaginação literária é permeada pela urbanidade, demonstrando as transformações tanto do espaço físico quanto da própria cultura. Ambos os aspectos re-encenam o espaço literário, as temáticas e a própria linguagem. A esse respeito, Luiz Costa Lima (1995, pp. 18-19) afirma:

Partindo do pressuposto de ser a linguagem uma rede de significações verbalmente estabelecida, através da qual o homem não apenas se assegura do que já soubesse, mas a partir de que estabelece o novo que desconhecera, partindo-se, em segundo lugar, do suposto de que a linguagem é elemento da cultura, modificado e propulsionado por esta, chegamos ao terceiro lugar, ao pressuposto fundamental: a linguagem se modifica por responder e se propor como ponta de lança na sociedade que muda. Entre linguagem e sociedade corre um vínculo estreito, não determinista, que faz com que a sombra desta se projete no semblante dessemelhante daquela.

Nessa esteira do pensamento moderno brasileiro, a literatura passa a revelar "novas subjetividades em jogo" (VELLOSO, 2010, p. 40). Recria, por meio da palavra, o sentimento de ambivalência interposto no constante jogo de duas temporalidades: tradição e modernidade. Para exemplificar esse jogo, Velloso recupera a voz de Machado de Assis: "A Antiguidade cerca-me por todos os lados. E não me dou mal com isso. Há nela um aroma que, ainda aplicado a coisas modernas, como que lhe troca a natureza [...]".

Instaurava-se o desafio: integrar o país no panorama da moderna cultura ocidental. Com Tobias Barreto na liderança, "[...] um movimento intelectual de projeção nacional surge na Faculdade de Direito de Recife, como continuidade do desejo de mudança desencadeado pelas tensões do período. Já Machado de Assis apontava, em ‗Instinto e nacionalidade (1872)‖, para o ‗sentimento íntimo‘ como uma maneira de se pensar a brasilidade, segundo o qual era necessário mudar o "instinto de nacionalidade em força consciente" (VELLOSO, 2010, p. 41). Buscava-se "[...]

34 definir a nacionalidade através da elaboração de uma crítica literária". Continua Velloso (2010, p. 42):

Pela primeira vez, constatava-se o caráter mestiço da cultura. Mas ainda predominava a visão pessimista da nacionalidade, vista como resultado do atraso cultural. Lia-se a brasilidade através da cartilha do darwinismo social, distinguindo-se civilizações superiores e inferiores em função das etnias. Imaginava-se que a nacionalidade brasileira fosse um elo fraco na corrente mundial.

Segundo ainda Velloso (2010, p. 40), na América Latina, intelectuais da geração de 1898, na tentativa de se criar os ideais heroicos americanos, acreditavam que o instrumental científico poderia auxiliar no progresso e na marcha evolutiva. Apoiavam-se nas teorias evolucionistas de Hippolyte Taine (Histoire de la literature anglaise, 1863), cuja base é o pensamento determinista. Além disso, o positivismo de August Comte (1789-1854) era um ideal que se somava para estabelecer no país o ideal autoritário que tendia ao progresso. Esse pensamento permeava o ideário nacional de 1870 a 1914. Sobre essa marcha, Alfredo Bosi (2002, p. 9) escreve:

[...] há sempre a "marcha das civilizações, a curva da história", a decadência dos ideais feudais, a centralização monárquica, a irrupção do espírito crítico..., em suma, o grande quadro evolutivo estabelecido a partir das Luzes e mantido e até mesmo enrijecido pelo dogma do progresso linear dos evolucionistas do século XIX.

Para Bosi, há uma estreita relação da literatura e da história. A literatura funciona, nessa conjuntura, como componente de um sistema "[...] que a condiciona, a atravessa e a transcende. E a história literária tende, teoricamente, a perder a sua especificidade e a tornar-se inseparável da evolução daqueles fatores, verdadeiras causas que concorreram para determiná-la‖ (BOSI, 2002, p. 9).

Instalam-se aí as bases para a chamada modernização conservadora de 1930, estabelecendo, simultaneamente, a imposição autoritária e a sensibilidade modernista. Por conseqüência, desembocou na desmistificação do estereótipo do brasileiro como um povo "abstrato e romantizado" (VELLOSO, 2010, p. 42). A evidência estava no fato de que "Nos cantos, nos contos, na poesia e nas danças o povo brasileiro começava a ser identificado na figura do indígena, no africano, no

35 europeu e no mestiço". Velloso completa: "Mesmo de forma precária e contraditória reconhecia-se a perspectiva de multiplicidade".

Vários estudos acerca da complexa mestiçagem brasileira começavam a despontar e a revelar um Brasil múltiplo. Silvio Romero desenvolve em Os cantos populares do Brasil (1883) e Contos populares do Brasil (1885) um estudo das tradições populares. Tem como pilar os critérios etnográfico e geográfico, estudos esses, elogiado por Câmara Cascudo. Três anos depois, em Etnografia brasileira (1888) observa os elementos da cultura negra presentes nas casas brasileiras. Em Os ciganos do Brasil, Mello Moraes (apud. VELLOSO, 2010, p. 43) ressalta a significativa representação desse grupo como contribuição à expressividade de "natureza crédula, fantasiosa e visionária", que culminava na agregação de traços de integração nacional e na associação das distintas narrativas formadoras do ideário brasileiro.

A esses dois intelectuais, junta-se Euclides da Cunha (1902) com Os Sertões. Nessa obra, elege o sertanejo como símbolo nacional. Em uma das passagens, o autor descreve esse sertanejo como o Hércules-Quasímodo, nome atribuído à também duplicidade do caráter de homem forte e desajeitado. Destaca- se aí um duplo universo, desencadeado na tensão criada pelo jogo entre os elementos antagônicos: passado/presente, serão/litoral, Norte/Sul, mestiço/branco. Euclides desvela os conflitos entre o Estado e o sertanejo. Sob a lente de sua escrita "Ficava claro o isolamento em que vivia parte expressiva da população brasileira", fazendo observar uma outra realidade "fora da escrita, da história e da civilização" (VELLOSO, 2010, p. 43).

Além desses autores, Bosi (1995, p. 359) registra a importância de Lima Barreto por revelar o "[...] ridículo e o patético do nacionalismo tomado como Bandeira isolada e fanatizante". Afirma ainda, "[...] no Major Policarpo Quaresma afloram tanto as revoltas do brasileiro marginalizado em uma sociedade onde o capital já não tem pátria, quanto a própria consciência do romancista de que o caminho meufanista é veleitário e impotente".

O Brasil mostrava-se nesse momento, em uma dimensão espaço-temporal dupla, dada a distância geográfica e grau de desenvolvimento dos sertanejos em relação à população do litoral e à dos sul do país. Nas obras de Romero, Mello Moraes e de Euclides da Cunha,

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[...] pode-se perceber, no entanto, dois pontos em comum: a questão de temporalidade histórica e o entendimento do campo literário. Compreender como o passado se articulava ao presente e as formas através das quais a literatura vinculava-se à vida moderna é uma questão estratégica. (VELLOSO, 2010, p. 44)

A partir desse momento, surge a querela entre Machado de Assis e Silvio Romero. O primeiro defendia a ideia de uma modernidade em contínuo diálogo com a tradição, já que era cético em relação ao papel dos letrados. Já Romero, adotando o critério evolucionista geográfico, defende o papel dos intelectuais como uma espécie de "função redentora" (VELLOSO, 2010, p. 45). Essa polêmica possibilitou o amadurecimento intelectual para se pensar a literatura como uma prática escritural, processo por meio do qual se podia depreender a base dos elementos moduladores da produção textual.

Se, para Romero, o regionalismo significava o atraso passadista, para Machado e José Veríssimo era uma outra voz em diálogo com a modernidade. Em 1930, toda essa efusão de pensamento culmina em uma nova leitura do moderno. Assim fez diluir as fronteiras entre categorias como provincianismo, regionalidade, tradicionalismo, compreendidas até então como antagônicas ao cosmopolitismo, universal e moderno. Essa tese foi corroborada pelo pensamento de Mário de Andrade em relação à desgeografização (cf. VELLOSO, 2010, p. 46) e também desfez a separação entre passado e presente: tradição/modernidade.

Essa diluição de fronteiras é outro aspecto observado na poética de Bandeira. Em seus versos, a fluidez fronteiriça é recriada pela linguagem prosaica, pelo diálogo entre tradição e modernidade. Cria, destarte, uma maneira de aproximação dos espaços distintos. Segundo Said, o humanismo proposto pela literatura permite uma nova maneira de se olhar para a tensão existente no espaço da realidade e no da poesia. Essa tensão é imposta pela força de embate das distintas visões de mundo. Destarte, esse pensamento projeta uma fluida fronteira espaço-temporal na sociedade. Bandeira7 constrói em muitos versos uma espécie de tensão. Entretanto, muitas vezes ela aparece velada, como um pano de fundo. É o caso, por exemplo,

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Para se compreender o modo como a fissura das fronteiras se projeta na modernidade, autores como Milton Santos (2001), Stuart Hall (2006), Deleuse e Guattari (1997), Akhil Gupta & James Ferguson (2000), além de George Steiner (1990) e Flora Süssekind (2005), colocam-se como sólidos alicerces capazes de sustentar a discussão sobre o tema da desterritorialização, por vezes chamada extraterritorialidade, já iniciada no início das grandes revoluções industriais.

37 de ―Meninos carvoeiros‖, em que a leveza do poema contrasta com a realidade dos meninos raquíticos:

Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado, Encarapitados nas alimárias,

Apostando corrida,

Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos [desamparados! (RD, p. 116)

Bandeira torna-se protagonista nessa arena em que fervilham novas ideias em torno da renovação da literatura, especialmente da poesia. Identifica-se com o grupo paulista, principalmente pela amizade revelada a Mário de Andrade nas cartas. Em 23 de novembro de 1923, ciente dessas transformações, escreve: ―Creio que a poesia modernista é propícia aos grandes poemas. O classicismo e o romantismo foram. O parnasianismo não. Era pau. O simbolismo não. Era débil, monocórdio.‖. Bandeira expressa a vontade de se criar uma ciclo de escritores modernos: ―Eu tinha ganas de fazer um Malazarte! Faze tu! Já disse ao Graça que nós brasileiros podemos criar um ciclo, o ciclo de Malazarte.‖ (MORAES, 2001, p.107)

A Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 22 de fevereiro de 1922, pode ser considerada, como ressalta Alfredo Bosi (1995, p. 341), um divisor de águas. Isso em virtude das novas ideias proclamadas pela estética em relação às anteriores como o Parnasianismo e o Simbolismo. No entanto, o espírito de mudança explodira bem antes. Sob os auspícios das batalhas travadas pelos ideais iluministas, o foco era o rompimento com a tradição em todos os setores da sociedade. A Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII, marcara profundamente os meios de produção e definiram as divisões do trabalho em etapas. Essa ideologia transpôs as linhas limítrofes das fábricas e impôs à sociedade um novo conceito nas relações sociais.

O movimento inovador que surgia no Brasil situava-se ―em primeiro lugar dentro da série literária‖ mediante ―sua relação com as outras séries da totalidade social‖. A nova ―proposição estética‖ era encarada em suas ―duas faces‖ complementares e ―relacionadas em forte tensão‖, afirmando que: ―enquanto projeto estético, diretamente ligada às modificações operadas na linguagem, e enquanto projeto ideológico, diretamente atada ao pensamento (visão de mundo) da época.‖.

38 Situando-se no eixo São Paulo-Rio, Lafetá analisa o Modernismo brasileiro em duas linhas, distinguindo: ―o projeto estético do Modernismo (renovação dos meios, ruptura da linguagem tradicional) do seu projeto ideológico (consciência do país, desejo e busca de uma expressão artística nacional, caráter de classe de suas atitudes e produções)‖ (LAFETÁ, 2000, pp. 19-21).

A revolução estética propunha uma ―radical mudança na concepção de obra de arte‖, abandonando os preceitos da mimese platônica em prol ―de uma qualidade diversa e relativa autonomia‖. No momento em que subverte os ―princípios da expressão literária‖, insere-se ―dentro de um processo de conhecimento e interpretação da realidade nacional.‖. Dentre os aspectos presentes na literatura nacional, Lafetá afirma: ―convergência entre projeto estético e ideológico‖, rompimento da ―linguagem bacharelesca, artificial e idealizante‖, bem como a ―força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular‖ (LAFETÁ, 2000, p. 21). Ainda completa:

[...] as ‗componentes recalcadas‘ de nossa personalidade vêm à tona, rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial; curiosamente, é a experimentação da linguagem, com suas exigências de novo léxico, novos torneios sintáticos, imagens

surpreendentes, temas diferentes, que permite – e obriga – essa

ruptura. (LAFETÁ, 2000, p. 22).

De acordo com Lafetá, o modernismo brasileiro nasce sob as influências das vanguardas europeias. Absorve delas a concepção de arte e as bases de sua

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