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De cartas e de poesia: o projeto poético de Manuel Bandeira MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gládiston de Souza Coelho

De cartas e de poesia: o projeto poético de Manuel Bandeira

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Gládiston de Souza Coelho

De cartas e de poesia: o projeto poético de Manuel Bandeira

MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Literatura e Crítica Literária, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Aparecida Junqueira.

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS

A Deus, antes de tudo, pelo Sopro Divino de vida;

Aos meus pais, pela intensa luta para propiciarem minha educação, pelos ensinamentos, e o maior: mesmo nas horas mais difíceis, sempre esboçaram o sorriso incentivador;

A toda minha família, pela compreensão, estímulo e paciência;

Aos amigos e colegas de classe, pelas conversas e discussões nos corredores e nas salas de aula da PUC-SP;

À Lilian de Cássia Felix, amiga, companheira que acompanhou de perto a produção desta pesquisa, incentivou-me, encheu-me de esperanças e, sobretudo, reergueu-me quando as forças coreergueu-meçavam a escapar-reergueu-me;

A todos os professores que comigo percorreram este caminho, especialmente a minha orientadora, Maria Aparecida Junqueira, que, com generosidade e paciência, tranquilizou-me nos instantes mais difíceis, orientando-me a contornar as muitas pedras no caminho;

À CAPES, pelo incentivo e apoio financeiro;

À poética de Bandeira, pela viagem literária por todos esses anos;

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EPÍGRAFE

Sou bem-nascido. Menino, Fui, como os demais, feliz. Depois, veio o mau destino E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida, Rompeu em meu coração, Levou tudo de vencida, Rugiu como um furacão,

Turbou, partiu, abateu,

Queimou sem razão nem dó —

Ah, que dor!

Magoado e só,

— Só! — meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes Na sua paixão sombria... E dessas horas ardentes Ficou esta cinza fria.

— Esta pouca cinza fria... Bandeira, 1917

Meu caro Mário de Andrade.

Recebi a Paulicéia desvairada e a sua carta de 23 de novembro (!). Obrigado.

A sua carta testemunha com abundância d'alma aquele afeto e admiração com que você me ofereceu o seu lindo livro. Desvanece-me grandemente o ter um admirador e amigo da sua força e da sua bondade.

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COELHO, Gládiston de Souza. De cartas e de poesia: o projeto poético de Manuel Bandeira. Dissertação de Mestrado. Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2013.

Resumo

O escopo desta pesquisa é a analise da gênese do projeto poético de Manuel Bandeira por meio das cartas trocadas entre ele e Mário de Andrade. E, assim, por meio das leituras, análises e comparações de sua produção poética, depreender o modo como o poeta constitui sua lírica. Iniciada em maio de 1922 e prolongada até outubro de 1944, essas correspondências revelam elementos constitutivos do projeto poético de Bandeira. Nas dobras dos discursos epistolares, estão registrados os diálogos que balizam boa parte do pensamento desse poeta. Com isso, delineia-se a questão chave desta pesquisa, ou delineia-seja, a verificação de que até que ponto os fatos discutidos pelo poeta em suas cartas são efetivamente aplicados em seus versos. O corpus analisado compõe-se de cartas dos dois interlocutores e dos poemas de Manuel Bandeira. A metodologia parte das análises e comparações dos discursos, observando-se os pontos mais incisivos e que oferecem os elementos necessários para averiguação nos processos de criação. Como referencial teórico para a compreensão da historicidade, contexto social e vida e obra de Bandeira, apoiamo-nos em estudos de Antonio Candido, Lafetá, Júlio Castañon e Alfredo Bosi. Acerca dos estudos das cartas e dos processos de criação, recorremos a Hansen, Moraes e Salles. Em relação à música, o estudo se apoia nos conceitos de Bennett, Carpeaux, Chissel, Dourado, Med, Priolli, Schafer e Schoenberg. Por fim, os resultados da pesquisa nos levam a compreender a carta como fragmentos de discurso e resíduo de memória multifacetada que revela o processo criativo da poética de Manuel Bandeira como uma das propostas dos modernismos brasileiros.

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COELHO, Gládiston de Souza. De cartas e de poesia: o projeto poético de Manuel Bandeira. Master‘s degree dissertation. Program of Postgraduate Studies in Literature and Literary Criticism. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil, 2013.

Abstract

The aim of this research is the analysis of the genesis of Manuel Bandeira‘s poetic project by the letters exchanged between him and Mário de Andrade. And, thus the readings, analyses and comparisons of his poetry, see how the poet constitutes his lyric. Initiated in May 1922 and prolonged until October 1944, these letters show elements of poetic project of Bandeira. In the epistolary discourses, are recorded the dialogues that underpin much from the poet‘s thoughts. Considering this, it delineates the key question of this survey, that is, checking how far the facts discussed by the poet in his letters are effectively applied in his verses. The analyzed corpus is consisted by letters of the two interlocutors and the poems of Manuel Bandeira. The methodology of the analysis goes from comparisons of speeches to observing the more incisive and points that offer the necessary elements for investigation in the processes of creation. As a theoretical framework for understanding the historicity, social context and life and work of Bandeira, we support in studies of Antonio Candido, Lafetá, Julio Castañon and Alfredo Bosi. About the studies of letters and the processes of creation, we resorted to Hansen, Moraes and Salles. The part about the concepts of music, the study is based on the concepts of Bennett, Carpeaux, Chissel, Golden, Med, Priolli, Schafer and Schoenberg. Finally, the results lead us to understand the letter like fragments of memory residue and multifaceted discourse that reveals the creative process of the poetics of Manuel Bandeira as one of the proposals of the turn.

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SUMÁRIO

Índice de abreviaturas... 7

INTRODUÇÃO ... 8

Capítulo 1. Bandeira: o homem, o poeta, o crítico ... 11

1. 1. Bandeira: vida e poesia ... 11

1. 2. Bandeira: cartas e crítica ... 21

Capítulo 2. Bandeira como poeta e crítico no contexto modernista.... 29

2. 1. O contexto modernista ... 29

2. 2. Cartas: testemunho e memória. ... 40

Capítulo 3. Conversa entre poetas: a gênese poética de Bandeira ... 53

3.1. A linguagem poética de Bandeira. ... 53

3.2. Musicalidade em Bandeira. ... 74

Considerações Finais ... 122

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7 Índice de abreviaturas

A seguinte lista compõe-se dos títulos dos poemas do poeta Manuel Bandeira que são utilizados no corpus desta pesquisa. Para facilitar a leitura e organizar o trabalho, utilizamos, com as iniciais, as siglas dos títulos referidos, conforme a obra BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

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8 INTRODUÇÃO

Um clássico é uma obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si, mas continuamente as repele para longe. (CALVINO, 1993, p. 12)

A epígrafe traz uma possível resposta para qualquer pesquisa que se lance ao exame das peculiaridades acerca de um autor conhecido e intensamente estudado. Manuel Bandeira é um desses autores, cujo trabalho é divulgado e estudado por críticos e estudiosos da historiografia literária brasileira.

É amplamente estudado pelo conjunto de sua poesia, e não tanto pela sua correspondência, a qual forma um acervo relevante para os estudos literários brasileiros. Bandeira manteve correspondência com várias personalidades, entre elas, Ribeiro Couto, Vinícius de Morais, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Mário de Andrade. Estudá-la é uma maneira de contribuir para sua fortuna crítica e abrir o leque de compreensão acerca de seu projeto poético.

Com todos os autores com quem se correspondeu, o maior número de cartas foi trocado com Mário de Andrade. Esse diálogo ocorreu de 25 de maio de 1922 a 30 de outubro de 1944. Bandeira discute com o interlocutor paulista assuntos variados: folclore, tradição brasileira, danças, ritmos musicais. Além disso, tece comentários acerca da linguagem, etimologias, fatos linguísticos, crítica, pintura e música.

Este trabalho trata de cartas que Manuel Bandeira enviou a Mário de Andrade, as quais foram publicadas, em 2002, na obra Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira, com introdução e notas de Marcos Antonio de Moraes. As cartas escolhidas revelam o posicionamento de Bandeira em relação à sua poética. Poemas também foram selecionados com o objetivo de tecer diálogo com o processo poético-crítico contido nas cartas.

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9 Bem se sabe do desafio dessa empreitada, uma vez que a fortuna crítica sobre Bandeira é vasta. Destacam-se Ribeiro Couto, Gilberto Freyre, Paulo Mendes Campos, Sérgio Buarque de Holanda, Alceu Amoroso Lima, Mário de Andrade, Sérgio Milliet, Carlos Drummond de Andrade, Haroldo de Campos, Gilberto Mendonça Teles, Sebastião Uchoa Leite e outros tantos nomes. Mais recentemente, podem-se citar quatro outros pesquisadores: Davi Arrigucci Jr, João Luiz Lafetá, Júlio Castañon Guimarães e Ruy Espinheira Filho.

A troca de cartas entre Bandeira e Mário, mantida por mais de duas décadas, entretanto, instiga-nos a levantar questões que nos ajudem a problematizar a relação entre a correspondência e a poesia de Bandeira. Daí perguntarmos: até que ponto a correspondência de Manuel Bandeira a Mário de Andrade descortina o seu pensamento poético revelado em seus poemas? Ou seja: até que ponto as cartas inscrevem criticamente a sua concepção de poesia, apontando para o seu projeto poético?

Fundamentam este trabalho, no que diz respeito à biografia do poeta e o contexto do qual fez parte, os estudos de Antonio Candido, João Luiz Lafetá, Alfredo Bosi, Luiz Costa Lima, entre outros. Valemo-nos de autores como Peter Gay, João Adolfo Hansen e Marcos Antonio de Moraes, para aprofundar a historiografia das cartas enquanto gênero de documentação e memória. Para a análise de elementos constitutivos do projeto poético bandeiriano, apoiamo-nos nas cartas trocadas entre Bandeira e Mário, na concepção de crítica genética Cecilia de Almeida Salles e Octavio Paz. Ainda sobre a musicalidade do início do século XX, principalmente as relações da música com o surgimento de novos sons e sua reverberação na poesia, apoiamo-nos em estudos de Bennett, Carpeaux, Chissel, Dourado, Med, Priolli, Schafer e Schoenberg. No entanto, é preciso esclarecer que o trabalho não parte das teorias para o estudo das cartas e dos poemas, mas em direção inversa, já que as cartas oferecem um material crítico revelador do processo de criação do poeta.

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10 Esta dissertação divide-se em três capítulos. O capítulo um, denominado "Bandeira: o homem, o poeta, o crítico‖, trata da biografia do poeta, demonstrando aspectos pessoais e sociais que se tornaram proeminentes na formação literária de Bandeira como família, infância, estudo, trabalho, viagens, descoberta da doença, publicações e morte do poeta. Também, apresenta Bandeira como estudioso das tradições folclóricas, de ritmicidade particular e, ao mesmo tempo, universal. Discute ainda o universo das correspondências desse poeta, as particularidades da base de sua poesia, as angústias, as alegrias e decepções não somente com a vida mas com a própria ideia de modernismo.

No capítulo dois, intitulado "Bandeira como poeta e crítico no contexto modernista", estudamos o contexto modernista, emoldurado pelas relações econômicas, políticas e socioculturais de um país cujas transformações refletiam no pensamento e nas produções literárias. Além disso, nessa conjuntura, observamos a maneira como Bandeira busca apreender essas mudanças e o que propõe para sua poesia. Em seguida, traçamos o percurso das cartas ao longo da história e a sua função como um documento de testemunho e memória nas diferentes áreas do saber e essencialmente na literatura.

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11 Capítulo 1. Bandeira: o homem, o poeta, o crítico

1. 1. Bandeira: vida e poesia

MINHA TERRA

Saí menino de minha terra. Passei trinta anos longe dela. De vez em quando me diziam:

Sua terra está completamente mudada, Tem avenidas, arranha-céus...

E hoje uma bonita cidade! Meu coração ficava pequenino. Revi afinal o meu Recife.

Está de fato completamente mudado. Tem avenidas, arranha-céus. É hoje uma bonita cidade.

Diabo leve quem pôs bonita a minha terra! (BB, p. 201)

O período é do segundo império no Brasil, antes mesmo da abolição dos escravos, momento em que o país passa pela incipiente transformação cultural e urbanística. Bandeira nasceu Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, em Recife, no ano de 1886, na rua Joaquim Nabuco, anteriormente chamada rua da Ventura, no bairro Capunga. O pai, o engenheiro Manuel Carneiro de Sousa Bandeira, homem culto, também interessado por literatura foi a pessoa com quem teve as primeiras conversas sobre leituras. Como comenta o poeta em Itinerário de Pasárgada, ouve do pai as narrativas dos contos de fadas além das cantigas de roda. Sua mãe, Francelina Ribeiro de Sousa Bandeira, anotara em caderno o seguinte trecho:

Nasceu meu filho Manuel Carneiro de Souza Bandeira filho, no dia 19 de abril de 1886, 40 minutos depois de meio-dia, numa segunda-feira santa. Foi batizado no dia 20 de maio, sendo seus padrinhos seu tio paterno Dr. Raimundo de Sousa Bandeira e sua mulher D. Helena V. Bandeira. (GUIMARÃES, 2008, p. 13)

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12 quem nutre sentimento e gratidão. Aos quatro anos de idade, transfere-se com os pais para o Rio de Janeiro e, a partir desse momento, as mudanças são constantes em sua vida. Mudam-se para Santos, São Paulo e retornam para o Rio, fazendo uma breve passagem por Petrópolis. Em Itinerário de Pasárgada registra:

Sou natural do Recife, mas na verdade nasci para a vida consciente em Petrópolis, pois de Petrópolis datam as minhas mais velhas reminiscências. Procurei fixá-las no poema "Infância": uma corrida de ciclistas, um bambual debruçado no rio (imagino que era o fundo do Palácio de Cristal), o pátio do antigo Hotel Orleans, hoje Palace Hotel... Devia ter eu então uns três anos. O que há de especial nessas reminiscências (e em outras dos anos seguintes, reminiscências do Rio e de São Paulo, até 1892, quando voltei a Pernambuco, onde fiquei até os dez anos) é que, não obstante serem tão vagas, encerram para mim um conteúdo inesgotável de emoção. (BANDEIRA, 2012, p. 25)

A infância servirá de material para sua lírica. Das lembranças desse período surgem poemas que revelam humanismo, deleite, graciosidade, com uma pitada de ironia. Em outros, cria cenas de uma infância perpassada pela inocência, como ocorre em "Porquinho-da-índia". Aliás, a fase de criança marca um Bandeira atento e observador do cotidiano, demonstrando nos versos teor descritivo. Também em Itinerário de Pasárgada, afirma:

Na casa de Laranjeiras, onde moramos os seis anos que cursei o Externato do Ginásio Nacional, hoje Pedro II, nunca faltava o pão, mas a luta era dura. E eu desde logo tomei parte nela, como intermediário entre minha mãe e os fornecedores – vendeiro, açougueiro, quitandeiro, padeiro. Nunca brinquei com os moleques da rua, mas impregnei-me a fundo do realismo da gente do povo. Jamais me esqueci das palavras com que certo caixeiro de venda português deu notícias de um companheiro que não era visto havia algum tempo: "O seu Alberto está com os pulmões podres". (BANDEIRA, 2012, p. 31)

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Camelôs

Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão: O que vende balõezinhos de cor

O macaquinho que trepa no coqueiro O cachorrinho que bate com o rabo Os homenzinhos que jogam Box

A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma. (...)

(Li, p. 127)

O olhar apreende os brinquedos e as brincadeiras de um tempo do ―tostão‖ que o vendedor camelô, sem hierarquizar importância, mostra: balõezinhos de cor, macaquinho, cachorrinho, homenzinhos, perereca, canetinhas-tinteiro, assim como suas ações e qualidades, num mundo quase encantado.

Ainda no Rio de Janeiro, a partir de 1896, cursa o Externato do Ginásio Nacional, antes chamado Colégio Pedro II, retomando em 1911 seu antigo nome, pois, em razão da proclamação da República, tentava-se apagar os vestígios do império. Nesse período, Bandeira destaca-se como aluno. Desse tempo são seus colegas Sousa da Silveira1 e Antenor Nascentes, que se tornaram filólogos e são

citados em muitas passagens das cartas e também em Itinerário de Pasárgada. Teve como professores os críticos João Ribeiro2, José Veríssimo e o filólogo Said Ali. Como registra Guimarães (2008, p. 15), essa fase é marcada por leituras de François Coppée, Leconte de Lisle, Baudelaire, Heredia, Antônio Nobre.

Em 1903, em São Paulo, matricula-se na Escola Politécnica, tentando seguir a carreira de arquiteto. Trabalha nos escritórios da Estrada de Ferro Sorocabana, e cursa desenho de ornato, no período noturno, no Liceu de Artes e Ofícios. Em virtude da tuberculose, abandona os estudos no final do ano letivo. Em carta de 27 de dezembro de 1924, Bandeira explica a Mário o efeito da tísica em sua própria vida e formação humanista. A morte é, sobretudo, a vida em curso, nunca para ele um fim em si mesma. Demonstra, simultaneamente, dois Bandeiras ou duas naturezas distintas: um antes e outro depois da doença:

A tuberculose em Manuel foi uma data histórica. Justíssimo. Eu próprio não sei dizer qual é o verdadeiro Manuel: o manso ou o outro. Antes da doença fui dinâmico como um futurista italiano, verdadeiro

1 Álvaro Ferdinando Sousa da Silveira (1883-1967) 2

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azougue, sarcástico, remedador (grande talento comediante), agressivo, sem maldade de coração mas com muita maldade intelectual. A tísica pôs água nessa fervura toda. (MORAES, p. 166) (MB 61, p. 165)

Em carta enviada a Mário, em 3 de julho de 1922, Bandeira (MORAES, 2001, p. 66) escreve, comentando a passagem por São Paulo: "Já vivi em São Paulo onde cursei o 1° ano da Escola Politécnica (ia estudar arquitetura) e posso dizer: São Paulo é alguma coisa e o Rio é uma mistura de coisas onde também a coisa paulista entra".

O rompimento de seus estudos marcou-o profundamente. Esse fato representou um momento de reflexão e revitalização do impulso à escrita. Em busca de um lugar mais tranquilo, com o objetivo de recuperar a saúde debilitada, realiza constantes mudanças de cidades. Em Lira do cinquent'anos, poetiza um desses momentos que traz o menino, o homem e a vida:

Criou-me desde eu menino, Para arquiteto meu pai. Foi-se-me um dia a saúde... Fiz-me arquiteto? Não pude! Sou poeta menor, perdoai! (LC, p. 182)

Um poema publicado na primeira página do Correio da Manhã foi comentado por Machado ao pai de Bandeira, que trabalhava na mesma repartição que Machado de Assis, elogiando os versos incipientes do poeta. A primeira estrofe desse poema (soneto) compõe-se de versos que revelam oposição, entre divino carnal:

Nasceste para o beijo e os êxtases divinos Do amor, e és para o amor a heroína ideal. Trazes disso estampado o vívido sinal Na rubra timidez dos lábios purpurinos.

(BANDEIRA, apud. GUIMARÃES, 2008, p. 17)

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15 Beethoven, Schubert, Schumann, Debussy, Chopin, Gluck, Mussorgsky, Liszt, Weber, Satie, e o brasileiro, Villa-Lobos.

A gravidade da doença leva-o para a Europa e, em 1913, interna-se no sanatório de Clavadel, na Suíça. Aproveita os momentos para se dedicar aos estudos, principalmente retomar o alemão. A passagem por esse sanatório permite-lhe conhecer o poeta francês, Paul Éluard, pseudônimo de Paul Eugène Grindel. Em cartas, comenta esse período. Com a iminência da guerra de 1914, retorna ao Brasil, residindo no Rio de Janeiro.

Mais tarde, uma sucessão de acontecimentos marca radicalmente sua vida. A perda da mãe (1916), da irmã (1918), que lhe servia como enfermeira, e do pai (1920) cravam de vez o desalento na alma do poeta. O sentimento da morte, desde a trágica revelação de sua própria enfermidade, torna-se angústia, inconformismo e alento para se lançar com ímpeto na produção poética. Publica seu primeiro livro, A cinza das horas, em 1917, impresso nas oficinas do Jornal do Comércio, com uma edição de duzentos exemplares, custeada por ele mesmo. Dois anos mais tarde, publica Carnaval (1919), livro que se torna foco de admiração e atenção do grupo modernista paulista. Em 1920, publica Ritmo dissoluto, Libertinagem e Crônicas da Província do Brasil e poemas de Estrela da manhã.

Na casa de Ronald de Carvalho, no Rio de Janeiro, em 1921, acontece o primeiro encontro entre Bandeira e Mário, quando este estava de passagem pela cidade para divulgar o poema "Cenas de crianças" e os versos de Paulicéia desvairada. Além disso, o escritor paulista tinha como objetivo reunir adeptos modernistas entre os cariocas. Guilherme de Almeida já havia apresentado a Mário os poemas de Carnaval, que despertou no escritor paulista a vontade de conhecer pessoalmente o autor da obra. A troca de cartas entre os dois começaria somente em 25 de maio de 1922, por iniciativa de Bandeira. Moraes (2001, p. 14) sintetiza a importância dessa correspondência:

A partir daí as páginas dessas cartas testemunham a história da amizade entre duas figuras de proa do modernismo brasileiro.

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16 Em sua ida a São Paulo, trava conhecimento com personalidades do cenário cultural, como Couto de Barros, Tácito de Almeida, Paulo Prado, Menotti del Picchia, além de criar um círculo de amigos sempre referidos nas cartas, como Jaime Ovalle, Dante Milano, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Morais (neto). Junta-se a eles para debates em torno do modernismo brasileiro e da poesia que viria a se denominar poesia modernista. Data de 1924 a publicação do volume de poesias, incluindo Cinza das horas, Carnaval e O ritmo dissoluto. Anota Candido (apud BANDEIRA, 1993, p. 6):

Em Cinza das horas e Carnaval, e mesmo em grande parte de Ritmo dissoluto, os ambientes e as coisas correspondem mais ou menos ao que deles espera a sensibilidade média, alimentada de poesia tradicional. Em lugares adequados à tonalidade confidencial e plangente da moda crepuscular, o poeta confunde de certo modo as coisas com os sentimentos, unificando-os por um fluido intercomunicável que suprime as fronteiras e, ao mesmo tempo, descaracteriza os objetos.

A vida de Bandeira torna-se cheia de atividades. Colabora com a coluna Mês Modernista, do jornal A noite e produz crítica musical para a revista A ideia Ilustrada (CANDIDO, apud. BANDEIRA, 1993, p. 22). Viaja a diversos estados e cidades brasileiras (Belém, Salvador, Recife, Paraíba, Fortaleza, São Luís). Participa como fiscal, em Recife, de bancas examinadoras de preparatórios (1928/29). Alavanca sua carreira ao escrever crônicas semanalmente para o Diário Nacional de São Paulo (1928/30) e A província, de Recife (1930/31). Produz crítica de cinema para o Diário da Noite, do Rio (1930).

Em 1930, publica Libertinagem, custeado por ele próprio. Em 1935, o ministro Capanema o nomeia inspetor de ensino secundário. Em seu cinquentenário, em 1936, é homenageado, com a edição de 201 exemplares do livro Homenagem a Manuel Bandeira. Esse livro, do qual participam "[...] trinta e três entre os mais importantes escritores modernos do Brasil" (BANDEIRA, 1993, p. 22), é composto de comentários, estudos, poemas e impressões sobre Bandeira.

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17 nomeação do ministro Gustavo Capanema. Sua Antologia de poetas brasileiros da fase parnasiana e o Guia de Ouro Preto são publicados pelo Ministério da Educação.

As epístolas revelam um Bandeira antenado à cotidianidade não somente paulistana como também carioca. As constantes conversas e contatos com protagonistas tanto da área literária quanto das artes plásticas e da música permitiram-lhe conhecer os posicionamentos de representantes de cada campo do conhecimento. Em decorrência, tece comentários às vezes polidos e muitas vezes ácidos sobre determinados aspectos da estética modernista.

Bandeira sente especial admiração pela música, pintura, por assuntos de linguagem, pelas festas populares e pela diversidade rítmica brasileira. Embora estivesse limitado pela doença, percorre regiões do país, incluindo cidades do Rio de Janeiro e Minas Gerais. O poeta caminha atento pelas ruas, praças e avenidas, dedicando atenção às culturas, folclores, modos de falar do povo, cuja oralidade revela peculiaridades como diferentes ritmos e sonoridades. Esses aspectos são as bases para a formação de um Bandeira próximo do cotidiano brasileiro. No campo da música, especialmente, entra em contato com Villa-Lobos, com quem convive e discute pontos de vista acerca da cultura. Em muitos instantes, critica-o, como confessa a Mário de Andrade.

Se Recife foi seu berço, o Brasil foi sua casa. Soube como poucos captar a beleza natural dos interiores e exteriores das casas, ruas, praças, as andanças desconcertadas dos transeuntes, materializando-os em poemas. O que é possível reconhecer em:

COMENTÁRIO MUSICAL

O meu quarto de dormir a cavaleiro da entrada da barra. Entram por ele dentro

Os ares oceânicos, Maresias atlânticas:

São Paulo de Luanda, Figueira da Foz, praias gaélicas da Irlanda... O comentário musical da paisagem só podia ser o sussurro sinfônico

[da vida civil. No entanto o que ouço neste momento é um silvo agudo de sagüim: Minha vizinha de baixo comprou um sagüim.

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18 Há uma estreita relação entre intimidade do quarto, natureza e vida civil. De igual modo, o poeta coloca em mesmo verso dois espaços distintos: nacional e universal - São Paulo e Irlanda. Além da ambientação, a sonoridade está constantemente presente em seus versos, trazida, aqui, por sons e cheiros – ―comentário musical da paisagem‖ – transformada no ―sussurro sinfônico da vida civil‖. Todavia, em contraste com o exterior e interior, ―o que ouço neste momento é um silvo agudo de sagüim‖. O silvo do sagüim – espécie pequena de primata de cauda longa – é o que ouve o sujeito lírico na harmonia sonora deste momento interior. Na força da cotidiana e simples vida: ―minha vizinha de baico comprou um sagüim‖. Também em ―última canção do beco‖, o cenário urbano é descrito:

ÚLTIMA CANÇÃO DO BECO

Beco que cantei num dístico Cheio de elipses mentais, Beco das minhas tristezas, Das minhas perplexidades (Mas também dos meus amores, Dos meus beijos, dos meus sonhos), Adeus para nunca mais!

Vão demolir esta casa. Mas meu quarto vai ficar, Não como forma imperfeita Neste mundo de aparências: Vai ficar na eternidade,

Com seus livros, com seus quadros, Intacto, suspenso no ar!

(...)

(LC, p. 179)

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19 o nosso primeiro universo. Por esse motivo ela humaniza o ser que nela vive. É um verdadeiro cosmos. [...] a casa e o quarto são marcados por uma intimidade inolvidável. Registra Bandeira, desse modo, sua sensibilidade em reação à transformação que as coisas sofrem na passagem do tempo.

Em Bandeira, as fronteiras parecem desmanchar tanto nos versos quanto em muitas passagens das cartas, por causa da mescla da linguagem trivial quase infantil, própria das relações familiares, e da formalidade do universo adulto, denotadas na seriedade poética com que o poeta trata os assuntos.

Ora sério, ora brincalhão, cômico, sarcástico, o tom modalizado dos discursos proferidos a Mário revela o que Bandeira é em vida e em verso. A prosa poética perceptível nas correspondências ecoa na poética prosaica construída em seus poemas. Passeia livremente da linguagem infantil ao formalismo adulto. Nesse sentido, reconstrói o jogo do duplo entre um eu e um outro, entre o autor e o leitor.

Essa alteridade sempre presente em Bandeira é constituída no jogo de elementos como: ironia/graciosidade, leveza/peso, provincianismo/cosmopolitismo, linguagem formal/informal, tradição/modernidade, sublime/grotesco, local/universal, realidade/fantasia, vida/morte. O poeta torna a leitura dos versos mais agradável, alivia também pelo humor3 como trata da sua tragédia pessoal:

PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico: — Diga trinta e três.

— Trinta e três... trinta e três... trinta e três... — Respire.

...

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão [direito infiltrado. — Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino. (Li, p. 128)

3 Em ―O humor na moderna poesia brasileira‖, texto integrante de Estudos Literários (in.

BANDEIRA, 1997, p. 522), o poeta anota: ―O humour, ou seja, a disposição para rir, ou pelo menos

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20 Nesse poema, a voz lírica zomba de sua própria situação por meio do jogo de palavras instaurado entre termos do campo semântico da doença contrastados com os da dança. Esse jogo é criado pela habilidade com que o poeta lida humoristicamente com a questão, não como uma forma de anulação, mas sobretudo de enfrentamento da vida. A leveza da leitura é criada pela relação desse jogo entre vida e morte.

As constantes mudanças de cenário e de clima permitem-lhe a experiência que somente a vida poderia lhe presentear, consagrando-o pela sua capacidade perceptiva. Essa experiência propicia-lhe uma visão detalhada das variedades cultural, geográfica e linguística do Brasil. Assim, começa a fazer crítica de artes plásticas n'Amanhã (1941), torna-se professor de literatura hispano-americana na Faculdade Nacional de Filosofia (1943). Em seguida, escreve o Panorama de la poesía brasileña para a Editora Fondo de Cultura Económica, do Mexico. Dois anos mais tarde, recebe o prêmio de Poesia do Ibec e publica Apresentação da poesia brasileira e Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos. No ano de 1954, sai Itinerário de Pasárgada, reeditado pela São José em 1957, com acréscimo de ―De poetas e de poesia. É livro sobre crítica literária e de poesia.

Como tradutor, em 1956, verte para o português Maria Stuart, do poeta alemão Schiller, MacBeth, de Shakespeare, a tragédia La Machine infernale, de Jean Cocteau. Em 1957, somam-se as peças June and the Paycock, de Sean O'Casey, e The rainmaker, de N. Richard Nash. Neste mesmo ano, publica, pela Editora Alvorada, o livro de crônicas Flauta de papel. Faz viagens para a Holanda, Londres e Paris. Traduz, em 1958, o Auto do divino Narciso, de Juana Inés de la Cruz, a peça em verso Colóquio-sinfonieta, de Jean Tardieu. Na sequência, em 1959, The Matchmaker (A casamenteira), de Thornton Wilder; em 1960, o drama D. Juan Tenório, de Zorrilla. Ainda nesse ano a Editora Dinamene, da Bahia, publica Estrela da tarde.

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21 o que é), de John Ford, Os verdes campos do Éden, de Antonio gala, A fogueira feliz, de J. N. Descalzo, e Edith Stein na câmara de gás, de Frei Gabriel Cacho.

Após uma série de trabalhos: produções poéticas, crônicas, artigos sobre crítica e recebimento de um número representativo de cartas e de homenagens de amigos e críticos, Bandeira começa a apresentar sérios problemas de saúde. Falece em 13 de outubro de 1968, aos 82 anos, no Hospital Samaritano, em Botafogo. É sepultado no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no Cemitério S. João Batista. Ironicamente, a vida pregara-lhe uma peça. Em virtude de sua doença, vivera cada dia como se fosse o último.

1. 2. Bandeira: cartas e crítica

CARTAS DE MEU AVÔ

A tarde cai, por demais Erma, úmida e silente... A chuva, em gotas glaciais, Chora monotonamente. E enquanto anoitece, vou Lendo, sossegado e só, As cartas que meu avô Escrevia a minha avó. Enternecido sorrio

Do fervor desses carinhos: É que os conheci velhinhos, Quando o fogo era já frio. Cartas de antes do noivado... Cartas de amor que começa, Inquieto, maravilhado, E sem saber o que peça. (...)

(ACH, p. 52)

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22 portuguesa: terá devotos fervorosos e apenas ela permitirá uma vista completa da sua obra e do seu espírito"4.

Essa afirmação de Candido a Mário vale também para Bandeira. Isso se levarmos em conta o acervo de sua correspondência – legado de documentos autênticos - e as informações aí veiculadas, referentes ao projeto de Bandeira. Tais documentos propiciam a abertura de novas possibilidades de leitura tanto da matriz de pensamento desse poeta quanto da ampliação de horizontes para o projeto modernista. A afirmação de Candido corrobora as expectativas referentes aos ideais modernistas brasileiros. Especialmente em Bandeira, que não somente abraçou a causa de uma poética autenticamente brasileira, como também imprimiu sua marca no cenário intelectual do Brasil.

Assim como Mário de Andrade, Manuel Bandeira pode ser apresentado como um dos fecundos correspondentes de seu tempo. Mesmo diante da doença, a tuberculose, Bandeira soube encarar a vida com a máscara humanizadoramente humilde da ironia: "Eu gosto de você – mas muito, – quando exprime o seu alto e puro lirismo na cortante ironia da linguagem terra-a-terra." (MORAES, 2001, p. 70). Talvez, como forma de velar o sentimento de fraqueza perante o desconhecido, desdobra esse olhar tanto na produção poética como nas correspondências. Por exemplo, trata a morte, muitas vezes, com humor como demonstra nas conversas informais e em tom de brincadeira com os amigos. Em 17 de janeiro de 1935, registra: ―Até quando vão as suas férias? Não dá as caras por aqui neste verão? Tenho um projeto de passar o mês de março em Cambuquira para ver se conserto de vez o fígado (o Ribeiro Couto caçoou que eu ‗me mudei agora para o fígado.‘)‖. (MORAES, 2001, p. 609)

Assim como muitas missivas, alguns poemas do autor fazem referência à morte, que se dissimula pela delicadeza na maneira de expressar, pela forma lúdica que imprime leveza aos versos como em "Profundamente", apresentado na carta de

22 de agosto de 1927:

PROFUNDAMENTE

"Quando ontem adormeci (...)

―Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo

4 Conforme Moraes, em nota 1, p. 9, esse trecho pertence a CANDIDO, Antonio. Mário de Andrade.

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Minha avó Meu avô

Totônio Rodrigues Tomásia, Rosa

Onde estão todos eles?

"Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo

Profundamente. 5

(MORAES, 2001, pp. 348-349)

Nesse poema, o poeta retoma o passado por meio da memória. No entanto, o uso do verbo ―Dormindo‖, seguido do advérbio ―Profundamente‖, instaura nos versos o eufemismo, amenizando e até humanizando a ―morte‖. A angústia da pergunta ―Onde estão todos eles?‖ é apaziguada na estrofe seguinte pela afirmativa: ―Estão todos dormindo / Estão todos deitados / Dormindo / Profundamente‖. Em artigo intitulado "A expressão da ironia em ‗Libertinagem‘", Giovanni Pontiero (1980, p. 267) comenta a nova fase do poeta quanto à sua recusa "[...] em conformar-se com formas tradicionais". Para Pontiero, o autor de "Meninos carvoeiros" demonstra a agudez da expressividade, as variedades de recursos como ambiguidade, evocações subjetivas e a inquietude. Ainda desenvolve um fio de raciocínio pelo qual os paradoxos são o resultado do reajustamento do poeta com o mundo dos sãos.

Entrar nessas cartas é uma maneira de observar as pistas do projeto poético, as quais se revelam como fragmentos de uma matriz de pensamento, auxiliando no desvendamento de sua poesia. Apreender os fundamentos poéticos é transpor a intimidade acolhedora de Bandeira. Além disso, essa imersão possibilita trazer à luz o cotidiano bandeiriano, do qual emana uma multiplicidade temática, rítmica e musical.

Tais cartas, tendo em vista a determinação de Mário, só vieram a conhecimento do público 50 anos após o seu falecimento. Esse pedido foi cumprido rigorosamente pela família e pelos amigos, como registra Moraes (2001, p. 9). As missivas guardadas por Mário passaram a figurar o acervo do IEB, na Universidade de São Paulo, graças ao empenho dos professores Antonio Candido e José

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24 Aderaldo Castello, este último, então, diretor do mesmo instituto. Foram organizadas em livro conforme as "normas internacionais e metodologia de pesquisa especialmente desenvolvida", segundo Moraes (2001, p. 9). Mário e Bandeira tinham consciência da importância dessas correspondências como valor documental. Preservaram-nas, registrando esclarecimentos de situações, identificação de correspondentes e datas.

A Coleção do IEB inclui as notas de pesquisa do organizador Marcos Antonio de Moraes. A confiabilidade dos textos exigiu a participação também de outras editoras que estabeleceram "[...] um corpus epistolográfico fidedigno, fixado segundo metodologia científica interessada na uniformidade textual e na atualização ortográfica" (MORAES, 2001, p. 11). O conjunto dessas cartas permite uma espécie de composição do diálogo entre os dois interlocutores seja pelo tom pessoal da amizade, do qual brotam as experiências cotidianas, seja pelo confidencial, cujo teor de elaboração evidencia tanto a liberdade da escrita como a elaboração do discurso. Aparece, ainda, o tom crítico, dadas as aprovações dos estilos ou tratamentos das obras produzidas, bem como as reprovações dos aspectos, a cujo projeto modernista parecesse incompreensão. Mário e Bandeira estavam atentos ao tratamento de uma literatura modernista. Essa consciência permitiu-lhes elaborar, mesmo que intuitivamente, um projeto para os trabalhos realizados por longos anos. Os procedimentos empregados ecoam como pistas fidedignas nas páginas de cada missiva. Do universo desse discurso epistolar emana:

[...] o entendimento de situações individuais e histórico-artísticas que as cartas apenas nuançam. Multiplicam o diálogo em questão, paralelamente, vozes de outros interlocutores – cartas, artigos, entrevistas, muitos documentos, enfim –, acrescentando dados e fazendo fluir as relações da vida como o mundo da arte. (MORAES, 2001, p.11)

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25 pela linguagem prosaica e pelas imagens, talvez seja o espaço no qual se devolve ao homem sua humanidade, isto é, valoriza-se aquilo que constrói, no dia a dia, a sua própria narrativa de vida.

Para esses interlocutores, a importância dessa correspondência centrava-se no debate de projetos de literatura. Era o gênero que, pela sua especificidade, tornava possível os diálogos em torno de um projeto de vida, não mais apenas como expressão de sentimentos amorosos ou meio de comunicação pessoal. Moraes (2001, p. 12) declara:

[...] o próprio Mário havia grifado a importância do modernismo na consolidação do gênero epistolar no Brasil, tornando-o "uma forma espiritual de vida em nossa literatura". Forma o conjunto mais representativo da epistolografia brasileira do século XX, no que tange a discussão de projetos estéticos e aos arquivos da criação que desnudam o artefazer de poetas, ficcionistas, artistas plásticos e músicos.

Assim como o autor de Paulicéia desvairada, Bandeira tinha consciência de que o gênero epistolar no Brasil constitui por si mesmo uma arena, na qual os projetos estéticos podem ser discutidos.

Logo após a Semana de Arte Moderna, Mário envia carta a Bandeira, em 06 de junho de 1922, dizendo que tê-lo conhecido foi uma alegria. Nela, esboça admiração pelo poema "Os sapos", incluído em Carnaval, obra que lhe foi presenteada pelo autor:

Há no livro uma página que considero das maiores de nossa poesia: "Os sapos". Já o sabias. (Quando estive no Rio, o ano passado um desejo eu tinha: conversar com o autor dos "Sapos". Realizei meu desejo. Voltei contente). Os teus trechos de verdadeiro verso livre são magníficos. (MORAES, 2001, p. 62)

Evidencia-se, nesse trecho, a abertura de discussões que se alongariam nos discursos das cartas a respeito de música, poesia e outros temas. Há, igualmente, registros sobre a produção literária, exposições de artes plásticas, música, cultura, assuntos sobre Língua e Linguagem, arquitetura, indicando a preocupação do homem de letras. Afirma Moraes (2001, p. 14):

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troca de opinião, nas sugestões contestadas ou aceitas. O "outro", no diálogo epistolar, concorre muitas vezes para a realização artística, funcionando como termômetro da criação. A carta é "laboratório" onde se acompanha o engendramento do texto literário em filigranas, desvendando-se elementos de constituição técnica da poesia e seus problemas específicos. Propicia a análise (gênese e busca do sentido) e torna manifesto as motivações externas que "precisam a circunstância" da criação. A escrita epistolográfica também proporciona a experimentação lingüística e o desvendamento confessional. Enquanto expressão do momento, nascida ao correr da pena, os paradoxos e contradições se tornam presentes. Como em um romance, nela também as paixões se entrelaçam e os desejos afloram.

Observa-se uma fluida fronteira entre os gêneros carta e texto literário. Rompem-se as barreiras interpostas entre o universo do relato e o da poesia, entre a prosa e o verso. A poesia rompe o discurso epistolar assim como Bandeira, em muitos versos, rompe o poema pelo discurso jornalístico. Exemplos disso são os poemas:

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da [Babilônia num barracão sem número. Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu Cantou Dançou

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado. (Li, p. 136)

IRENE NO CÉU

Irene preta Irene boa

Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu: — Licença, meu branco! E São Pedro bonachão:

— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença. (Li, p. 142)

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27 paradigmas do universo literário e coloca o cotidiano na categoria do poético. Sem falar que a ironia se presentifica nesses versos envoltos no humor, por meio das acumulações de verbo: ―chegou – bebeu cantou dançou – se atirou e morreu‖. Em caminho inverso, aproxima a poesia da realidade humana, fazendo-a descer do "olimpo", onde a tradição clássica a colocou. Com isso, devolve ao homem o direito de comungar o poético. Em ―Irene no céu‖, a proximidade dos dois elementos dá-se de maneira tenra, pois é essa intimidade que propicia o uso da linguagem informal.

Nesses dois poemas, o prosaico imprime à narrativa rapidez e leveza, por aproximar o verso da prosa. Referindo-se a esse rompimento de fronteiras, Moraes (2001, p. 14) argumenta:

A instigante aproximação da carta ao texto ficcional traz à tona a problemática da escrita epistolar, gênero fluído em seus limites e prenhe de possibilidades literárias e pragmáticas. Enquanto gênero, talvez o aspecto mais contundente da correspondência de Mário de Andrade e Manuel Bandeira esteja na configuração da personalidade do autor de Paulicéia desvairada, tornado "personagem" desse "romance". Em 1926, Bandeira constatava a fratura na personalidade do amigo que se expande sem embaraço na escrita epistolar, mas encolhe-se no trato pessoal: "Há uma diferença grande entre o você da vida e o você das cartas. Parece que os dois vocês estão trocados: o das cartas é que é o da vida e o da vida é que é o das cartas".

A amizade entre Bandeira e Mário, demonstrada nas cartas, é o pêndulo pelo qual as constantes tensões definem maior ou menor aproximação. Evidencia, mesmo nos instantes mais críticos, o respeito como o amortecedor de prováveis intrigas mais sérias. As cartas revelam também as posições ideológicas de Bandeira em contraste com o pensamento de Mário. Essas posições norteiam este estudo, pois são índices necessários ao levantamento dos critérios adotados com os quais Bandeira elabora sua produção poética. Distinguir esse sistema de ideias significa remontar o projeto poético de Bandeira e apreendê-lo em seus versos. Há a necessidade de verificar nos poemas os traços ressaltados nas cartas e depreender até que ponto essas relações se sustentam. Não se pretende com isso dispor em segundo plano o discurso epistolar, dada a sua importância documental.

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28 1943, MB comenta a Alphonsus de Guimarães Filho: ‗Não tenho escrito a ninguém. A minha correspondência com Mário de Andrade, antigamente constante e minuciosa, praticamente desapareceu‖. Na carta 31 de março de 1944, escreve:

há que anos eu não tinha o prazer de receber de você uma carta como esta de 19 – comprida, com versos, diz-que-diz-que etcetera. A vida tornou-se para nós tão cheia de trabalhos que a correspondência vai sempre ficando para um momento de pausa, que nunca chega! Eu estou literalmente afogado em mil coisinhas. (MORAES, 2001, p. 674)

Ainda assim, Bandeira deixou uma produção de epístolas cujo teor forma uma memória residual e fragmentada de seu pensamento. As correspondências duram até a proximidade da morte de Mário. A última carta, datada de 30 de outubro de 1944, é enviada por Bandeira, do Rio de Janeiro, cujas últimas palavras do poeta e amigo pernambucano mais uma vez se voltam ao seu cotidiano:

Você precisa vir conhecer o meu novo apartamento no Edifício S. Miguel (onde morou Portinari). Av. Beira Mar 210, ap. 409. Tenho aqui mais graça. E estou armado de uma geladeira elétrica e de uma rádio-vitrola. Falar nisto, se houver gravada em disco alguma canção do Guarnieri com versos meus, quero tê-la. (MORAES, 2001, p. 678)

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29 Capítulo 2. Bandeira como poeta e crítico no contexto modernista.

NOVA POÉTICA

Vou lançar a teoria do poeta sórdido. Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida. Vai um sujeito.

Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem engomada, e [na primeira esquina passa um caminhão, salpica-lhe

[o paletó ou a calça de uma nódoa de lama: É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim: Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero. Sei que a poesia é também orvalho.

Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem por cento e [as amadas que envelheceram sem maldade.

(BB, p. 205)

2. 1. O contexto modernista

Para compreender as propostas de Bandeira em relação ao seu projeto poético e pensamento critico, é salutar refletir sobre o conceito de Modernismo, em sua poética que parece desdobrar em tradição e modernidade. De acordo com Lafetá (2000, p.22), devido à sensibilidade do país à modernização dos quadros culturais, o Modernismo destruiu as barreiras da linguagem oficializada, "[...] acrescentando-lhe a força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular. Assim, as componentes recalcadas de nossa personalidade vêm à tona, rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial (...)". Os autores, então, passam a experimentar a linguagem "[...] com suas exigências de novo léxico, novos torneios sintáticos, imagens surpreendentes, temas diferentes, que permite ― e obriga ― essa ruptura".

O grupo dos literatos, principalmente do eixo Rio-São Paulo, do qual Bandeira era participante, entra em contato com leituras dos textos dos futuristas italianos, dos dadaístas e dos surrealistas franceses. A música de Debussy, o teatro de Pirandello, o cinema de Chaplin6, o cubismo de Picasso, o expressionismo plástico

6

Em ―O heroísmo de Carlitos‖, uma das Crônicas da Província do Brasil, Bandeira (in Seleta de

Prosa, 1997, pp. 123), escreve: ―Aqui é que começa a genialidade de Chaplin. Descendo até o público, não só não se vulgarizou, mas ao contrário ganhou maior força de emoção e de poesia. A sua originalidade extremou-se. Ele soube isolar em seus dados pessoais, em sua inteligência e em

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30 alemão, a psicanálise de Freud, o relativismo de Einstein e o intucionismo de Bergson constituem-se elementos da base do pensamento modernista brasileiro. Embora essas correntes de pensamento sejam referenciais aos grupos modernistas, nem todos concordavam com essas posições, demonstrando diversidade de ideais e projetos.

Os ecos do Iluminismo e das teorias lançadas pelo Romantismo na Europa, tanto na literatura quanto na música, ainda faziam-se ouvir no território brasileiro. Em Bandeira, tais manifestações são demonstradas nas as cartas enviadas por ele a Mário:

Fizeste bem em nada corrigir na Paulicéia. Beethoven dizia que toda a correção parcial feita mais tarde em uma obra de arte lhe quebra a unidade. E compreende-se: o artista não está mais na [storming] do momento de criação. Salvo quando esse momento de criação é a eternidade de um Fausto. (MORAES, 2001, p. 74)

Esses dois interlocutores, apesar dos anseios por uma brasilidade literária autêntica, deixam transparecer certa identificação com a literatura e a música universal europeia. Segundo Sebastião Uchoa Leite (1966, p. 22), ―O poeta revivificava as tradições. Seu romantismo inato não o abandonou nas futuras metamorfoses e concorreu no início para evitar que o poeta fosse confundido com os ‗grandes‘ parnasianos da época pré-modernista‖. A busca por uma identidade ocorria em toda a América Latina. Tentava-se criar uma fronteira entre o Eu e o Outro. Essa alteridade alterna-se no jogo do duplo: o aqui e o lá, o presente e o passado, impulsionando, conquanto de maneira lenta, a consciência da relação tradição versus modernidade, mais tarde retomada, incisivamente, por T. S. Eliot (s/d) e Octavio Paz (1984), por exemplo.

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31 Com as incipientes transformações no sistema de produção, alterava-se a percepção do tempo, devido às "Mudanças no panorama técnico-industrial" (VELLOSO, 2010, p. 40). Como consequência, gerava-se certo "Estranhamento e mal estar". A velocidade cada vez mais acentuada nos processos e experiências de mundo levava à chamada perda de referências.

Stuart Hall (2006, p. 10) entende esses fenômenos como fragmentação da identidade. Segundo ele, diferentemente do sujeito iluminista, cujo centro era fixo e no qual permanecia, o sujeito moderno, ou sociológico, começa a sair desse núcleo. Ele desliza por outros centros e não consegue retornar ao anterior. Em relação a essa crise, Bosi, no capítulo ―Era dos extremos‖, amplia esse conceito e nos auxilia na compreensão desse fenômeno:

A crise de identidade do sujeito que escreve, que a prática desconstrucionista tende a exasperar, é, no limite, a morte do autor auspiciada, a certa altura por Barthes. Sujeito da escrita e autor seriam, em última instância, encenadores móveis de mensagens pelas quais não passaria uma consciência estruturante estável nem uma personalidade criadora de um estilo próprio. A escrita seria, portanto, um produto de aglutinação de subdiscursos que caberia à Retórica ou à História das mentalidades classificar. (BOSI, 2002, p. 253.)

Para essa recuperar sua história, o poeta moderno precisa forjar um instrumental, e assim, a linguagem alegórica e fragmentada é o modo que encontra para dialogar com a tradição. A tensão causada pelo mal estar, dada a perda da capacidade da fruição do homem, provoca, como postula Stuart Hall (2006, p. 10), a crise de identidade. Isso porque "A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o 'interior' e o 'exterior' - entre o mundo pessoal e o mundo público".

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32 com o texto permite-lhe sua acessibilidade ao universo poético, propiciando-lhe, recuperar essa identidade enquanto um sujeito no mundo.

Para entendermos a importância de Bandeira enquanto um escritor preocupado com o seu tempo e com a própria literatura, apoiamo-nos na ideia de Edward Said (2007), que questiona o papel dos intelectuais e, também, a verdadeira função da literatura para humanidade. Um dos pontos centrais de seu pensamento pauta-se no papel do intelectual como mediador na conjugação de humanismo e cidadania, dada a importância das diversidades, e da relação entre as artes e a realidade do homem. De forma um pouco parecida, Bandeira, ao se preocupar com essa inserção do leitor, opta pela linguagem prosaica, como uma espécie de democratização da leitura, mais liberta das formalidades. É nesse sentido que se entende o humanismo na poesia de Bandeira. Embora não tenha sido uma pessoa engajada politicamente, por sua vida reclusa à escrita, Bandeira produz uma poesia que promove a reflexão do leitor.

As mudanças sociais e econômicas ocorridas nesse período contribuíram, de certa maneira, para a transformação do sujeito. A esse respeito, Lafetá (2000, p. 23) escreve:

Outro fator que permite essa convergência é a transformação sócio-econômica que ocorre então no país. O surto industrial dos anos de guerra, a imigração e o conseqüente processo de urbanização por que passamos nessa época, começam a configurar um Brasil novo. A atividade de industrialização já permite comparar uma cidade como São Paulo, no seu cosmopolitismo, aos grandes centros europeus.

Esse fato é relevante, pois "[...] a literatura moderna está em relação com a sociedade industrial tanto na temática quanto nos procedimentos (a simultaneidade, a rapidez, as técnicas de montagem, a economia e a racionalização da síntese)‖ (LAFETÁ, 2000, p. 23). Na poética bandeiriana há a construção da síntese emotiva, sobre a qual o autor discute em carta enviada de Petrópolis, em 6 de janeiro de 1923:

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33 Esse trecho já aponta a identificação do autor com uma escrita poética do amigo composta da síntese emotiva e da busca por termos remotos. De certa maneira, essa fala contradiz em alguns momentos ao que o próprio Bandeira escreve em seus poemas. Exemplo disso é a sua ―Poética‖: Estou farto do lirismo que

pára e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo.”.

No início do século XX, a imaginação literária é permeada pela urbanidade, demonstrando as transformações tanto do espaço físico quanto da própria cultura. Ambos os aspectos re-encenam o espaço literário, as temáticas e a própria linguagem. A esse respeito, Luiz Costa Lima (1995, pp. 18-19) afirma:

Partindo do pressuposto de ser a linguagem uma rede de significações verbalmente estabelecida, através da qual o homem não apenas se assegura do que já soubesse, mas a partir de que estabelece o novo que desconhecera, partindo-se, em segundo lugar, do suposto de que a linguagem é elemento da cultura, modificado e propulsionado por esta, chegamos ao terceiro lugar, ao pressuposto fundamental: a linguagem se modifica por responder e se propor como ponta de lança na sociedade que muda. Entre linguagem e sociedade corre um vínculo estreito, não determinista, que faz com que a sombra desta se projete no semblante dessemelhante daquela.

Nessa esteira do pensamento moderno brasileiro, a literatura passa a revelar "novas subjetividades em jogo" (VELLOSO, 2010, p. 40). Recria, por meio da palavra, o sentimento de ambivalência interposto no constante jogo de duas temporalidades: tradição e modernidade. Para exemplificar esse jogo, Velloso recupera a voz de Machado de Assis: "A Antiguidade cerca-me por todos os lados. E não me dou mal com isso. Há nela um aroma que, ainda aplicado a coisas modernas, como que lhe troca a natureza [...]".

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34 definir a nacionalidade através da elaboração de uma crítica literária". Continua Velloso (2010, p. 42):

Pela primeira vez, constatava-se o caráter mestiço da cultura. Mas ainda predominava a visão pessimista da nacionalidade, vista como resultado do atraso cultural. Lia-se a brasilidade através da cartilha do darwinismo social, distinguindo-se civilizações superiores e inferiores em função das etnias. Imaginava-se que a nacionalidade brasileira fosse um elo fraco na corrente mundial.

Segundo ainda Velloso (2010, p. 40), na América Latina, intelectuais da geração de 1898, na tentativa de se criar os ideais heroicos americanos, acreditavam que o instrumental científico poderia auxiliar no progresso e na marcha evolutiva. Apoiavam-se nas teorias evolucionistas de Hippolyte Taine (Histoire de la literature anglaise, 1863), cuja base é o pensamento determinista. Além disso, o positivismo de August Comte (1789-1854) era um ideal que se somava para estabelecer no país o ideal autoritário que tendia ao progresso. Esse pensamento permeava o ideário nacional de 1870 a 1914. Sobre essa marcha, Alfredo Bosi (2002, p. 9) escreve:

[...] há sempre a "marcha das civilizações, a curva da história", a decadência dos ideais feudais, a centralização monárquica, a irrupção do espírito crítico..., em suma, o grande quadro evolutivo estabelecido a partir das Luzes e mantido e até mesmo enrijecido pelo dogma do progresso linear dos evolucionistas do século XIX.

Para Bosi, há uma estreita relação da literatura e da história. A literatura funciona, nessa conjuntura, como componente de um sistema "[...] que a condiciona, a atravessa e a transcende. E a história literária tende, teoricamente, a perder a sua especificidade e a tornar-se inseparável da evolução daqueles fatores, verdadeiras causas que concorreram para determiná-la‖ (BOSI, 2002, p. 9).

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35 europeu e no mestiço". Velloso completa: "Mesmo de forma precária e contraditória reconhecia-se a perspectiva de multiplicidade".

Vários estudos acerca da complexa mestiçagem brasileira começavam a despontar e a revelar um Brasil múltiplo. Silvio Romero desenvolve em Os cantos populares do Brasil (1883) e Contos populares do Brasil (1885) um estudo das tradições populares. Tem como pilar os critérios etnográfico e geográfico, estudos esses, elogiado por Câmara Cascudo. Três anos depois, em Etnografia brasileira (1888) observa os elementos da cultura negra presentes nas casas brasileiras. Em Os ciganos do Brasil, Mello Moraes (apud. VELLOSO, 2010, p. 43) ressalta a significativa representação desse grupo como contribuição à expressividade de "natureza crédula, fantasiosa e visionária", que culminava na agregação de traços de integração nacional e na associação das distintas narrativas formadoras do ideário brasileiro.

A esses dois intelectuais, junta-se Euclides da Cunha (1902) com Os Sertões. Nessa obra, elege o sertanejo como símbolo nacional. Em uma das passagens, o autor descreve esse sertanejo como o Hércules-Quasímodo, nome atribuído à também duplicidade do caráter de homem forte e desajeitado. Destaca-se aí um duplo universo, deDestaca-sencadeado na tensão criada pelo jogo entre os elementos antagônicos: passado/presente, serão/litoral, Norte/Sul, mestiço/branco. Euclides desvela os conflitos entre o Estado e o sertanejo. Sob a lente de sua escrita "Ficava claro o isolamento em que vivia parte expressiva da população brasileira", fazendo observar uma outra realidade "fora da escrita, da história e da civilização" (VELLOSO, 2010, p. 43).

Além desses autores, Bosi (1995, p. 359) registra a importância de Lima Barreto por revelar o "[...] ridículo e o patético do nacionalismo tomado como Bandeira isolada e fanatizante". Afirma ainda, "[...] no Major Policarpo Quaresma afloram tanto as revoltas do brasileiro marginalizado em uma sociedade onde o capital já não tem pátria, quanto a própria consciência do romancista de que o caminho meufanista é veleitário e impotente".

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[...] pode-se perceber, no entanto, dois pontos em comum: a questão de temporalidade histórica e o entendimento do campo literário. Compreender como o passado se articulava ao presente e as formas através das quais a literatura vinculava-se à vida moderna é uma questão estratégica. (VELLOSO, 2010, p. 44)

A partir desse momento, surge a querela entre Machado de Assis e Silvio Romero. O primeiro defendia a ideia de uma modernidade em contínuo diálogo com a tradição, já que era cético em relação ao papel dos letrados. Já Romero, adotando o critério evolucionista geográfico, defende o papel dos intelectuais como uma espécie de "função redentora" (VELLOSO, 2010, p. 45). Essa polêmica possibilitou o amadurecimento intelectual para se pensar a literatura como uma prática escritural, processo por meio do qual se podia depreender a base dos elementos moduladores da produção textual.

Se, para Romero, o regionalismo significava o atraso passadista, para Machado e José Veríssimo era uma outra voz em diálogo com a modernidade. Em 1930, toda essa efusão de pensamento culmina em uma nova leitura do moderno. Assim fez diluir as fronteiras entre categorias como provincianismo, regionalidade, tradicionalismo, compreendidas até então como antagônicas ao cosmopolitismo, universal e moderno. Essa tese foi corroborada pelo pensamento de Mário de Andrade em relação à desgeografização (cf. VELLOSO, 2010, p. 46) e também desfez a separação entre passado e presente: tradição/modernidade.

Essa diluição de fronteiras é outro aspecto observado na poética de Bandeira. Em seus versos, a fluidez fronteiriça é recriada pela linguagem prosaica, pelo diálogo entre tradição e modernidade. Cria, destarte, uma maneira de aproximação dos espaços distintos. Segundo Said, o humanismo proposto pela literatura permite uma nova maneira de se olhar para a tensão existente no espaço da realidade e no da poesia. Essa tensão é imposta pela força de embate das distintas visões de mundo. Destarte, esse pensamento projeta uma fluida fronteira espaço-temporal na sociedade. Bandeira7 constrói em muitos versos uma espécie de tensão. Entretanto, muitas vezes ela aparece velada, como um pano de fundo. É o caso, por exemplo,

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37 de ―Meninos carvoeiros‖, em que a leveza do poema contrasta com a realidade dos meninos raquíticos:

Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado, Encarapitados nas alimárias,

Apostando corrida,

Dançando, bamboleando nas cangalhas como espantalhos [desamparados! (RD, p. 116)

Bandeira torna-se protagonista nessa arena em que fervilham novas ideias em torno da renovação da literatura, especialmente da poesia. Identifica-se com o grupo paulista, principalmente pela amizade revelada a Mário de Andrade nas cartas. Em 23 de novembro de 1923, ciente dessas transformações, escreve: ―Creio que a poesia modernista é propícia aos grandes poemas. O classicismo e o romantismo foram. O parnasianismo não. Era pau. O simbolismo não. Era débil, monocórdio.‖. Bandeira expressa a vontade de se criar uma ciclo de escritores modernos: ―Eu tinha ganas de fazer um Malazarte! Faze tu! Já disse ao Graça que nós brasileiros podemos criar um ciclo, o ciclo de Malazarte.‖ (MORAES, 2001, p.107)

A Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 22 de fevereiro de 1922, pode ser considerada, como ressalta Alfredo Bosi (1995, p. 341), um divisor de águas. Isso em virtude das novas ideias proclamadas pela estética em relação às anteriores como o Parnasianismo e o Simbolismo. No entanto, o espírito de mudança explodira bem antes. Sob os auspícios das batalhas travadas pelos ideais iluministas, o foco era o rompimento com a tradição em todos os setores da sociedade. A Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII, marcara profundamente os meios de produção e definiram as divisões do trabalho em etapas. Essa ideologia transpôs as linhas limítrofes das fábricas e impôs à sociedade um novo conceito nas relações sociais.

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38 Situando-se no eixo São Paulo-Rio, Lafetá analisa o Modernismo brasileiro em duas linhas, distinguindo: ―o projeto estético do Modernismo (renovação dos meios, ruptura da linguagem tradicional) do seu projeto ideológico (consciência do país, desejo e busca de uma expressão artística nacional, caráter de classe de suas atitudes e produções)‖ (LAFETÁ, 2000, pp. 19-21).

A revolução estética propunha uma ―radical mudança na concepção de obra de arte‖, abandonando os preceitos da mimese platônica em prol ―de uma qualidade diversa e relativa autonomia‖. No momento em que subverte os ―princípios da expressão literária‖, insere-se ―dentro de um processo de conhecimento e interpretação da realidade nacional.‖. Dentre os aspectos presentes na literatura nacional, Lafetá afirma: ―convergência entre projeto estético e ideológico‖, rompimento da ―linguagem bacharelesca, artificial e idealizante‖, bem como a ―força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular‖ (LAFETÁ, 2000, p. 21). Ainda completa:

[...] as ‗componentes recalcadas‘ de nossa personalidade vêm à tona, rompendo o bloqueio imposto pela ideologia oficial; curiosamente, é a experimentação da linguagem, com suas exigências de novo léxico, novos torneios sintáticos, imagens surpreendentes, temas diferentes, que permite – e obriga – essa ruptura. (LAFETÁ, 2000, p. 22).

De acordo com Lafetá, o modernismo brasileiro nasce sob as influências das vanguardas europeias. Absorve delas a concepção de arte e as bases de sua linguagem. Quanto à da arte e da linguagem, reafirma a deformação do natural como fator característico: "o popular e o grotesco como contrapeso ao falso refinamento academicista, a cotidianidade como recusa à idealização do real e o fluxo da consciência como processo desmascarador da linguagem tradicional". Conforme o crítico, com o intuito de realizar esses princípios, ―os vanguardistas europeus foram buscar inspiração [...] nos procedimentos técnicos da arte primitiva (...)‖ (LAFETÁ, 2000, p. 22).

Referências

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