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CAPÍTULO III. A FORMA CONFESSIONAL NOS DIÁRIOS

3.6. Poética do fragmento

O trabalho cuidadoso de construção do fragmento chama particularmente a atenção no Diário. Sabemos que a poesia, a micronarrativa ficcional, o ensaio são formas importantes na economia geral da obra, pelo alto poder de expressividade que alcançam; o fragmento curto, no entanto, no mais das vezes, é a forma discursiva padrão dos diários pessoais, comparecendo em larga medida no texto torguiano.

No Diário, o tratamento do fragmento diarístico vai de par com um questionamento presente na primeira fase do romantismo alemão. Schlegel, num de seus aforismos mais conhecidos, lembra-nos de que: “Muitas obras dos antigos se tornaram fragmentos. Muitas obras dos modernos já o são ao surgir”58. O aforismo aponta para dois momentos distintos da

escritura fragmentária. No primeiro deles, temos a ideia de fragmento como pedaço de algo,

57 DII, p. 244. “Leiria, 23 de Abril de 1943 – Deus preserve uma terra de caber num livro! Nunca mais ninguém

a pode arrancar dali, espalmada em prosa, em cenas e em melancolia. Esta deixou-se retratar inteira em O crime

do Padre Amaro”.

que vem da Antiguidade e guarda relação com a etimologia da palavra, fragmen (pedaço de, em latim)59. Essa primeira noção remete diretamente à questão da materialidade, liga-se à ideia de ruínas, de algo que foi destruído pelo tempo e de cujos despojos conhecemos apenas extratos ou pequenas partes, como é o caso dos escritos dos filósofos pré-socráticos.

Posteriormente, no Renascimento, o conceito de fragmento vai se ligar propriamente à arte, referindo-se especificamente à parte de uma obra artística. Nesse momento soma-se à primeira definição, arqueológica, a ideia de fragmento como obra inacabada, seja por falta de tempo, seja por desinteresse de seu criador em terminá-la60.

O Romantismo alemão elegeria o fragmento como a forma privilegiada de escrita. Como aventa Torres Filho, “produto, talvez, de uma erosão e conflagração no próprio pensamento?”61. Como resistência ao modelo narrativo-extensivo cultivado no Classicismo,

os românticos propunham um novo paradigma fragmentário-intensivo de escritura62. A recusa ao discursivo, enfatizando a brevidade e a intensidade do texto, favorece o desenvolvimento de uma forma mais concentrada e expressiva, que se aproximaria progressivamente da linguagem poética. Nesse momento, o fragmento adquire seu sentido moderno, ao qual Schlegel se referia.

A contextualização teórica acima pode nos auxiliar na compreensão de como prosa e poesia se imbricam no Diário.Vejamos nas passagens:

Vila Nova, 14 de Julho de 1936 – Às vezes ponho-me a pensar se a aceitação calma da morte no homem da terra não será o resultado desta íntima comunhão com o ritmo da natureza. No inverno, árvores despidas; na primavera, folhas e flores; no verão, frutos. No inverno seguinte, árvores despidas, na primavera, folhas e flores; no verão, frutos. No inverno a seguir... Eu bem sei que o homem da cidade tem por sua vez mil maneiras de notar este eterno retorno da vida e da morte. Parece-me é que ali a coisa não tem esta nitidez, esta evidência, esta fatalidade63.

59 Segundo Alain de Montandon “les mots latins de fragmen, de fragmentum viennent de frango: briser, rompre,

fracasser, mettre en pièces, en poudre, en miettes, anéantir. En grec, c’est le klasma, l’apoklasma, l’apospasma, le morceau détache par fracture, l’extrait, quelque chose d’arraché, de tire violemment. Les spasmos vient de là: convulsion, ataque nerveuse, qui disloque”. In: Forme brèves. Paris: La Hachette, 1992, p. 77. Em tradução livre: as palavras latinas de fragmen, de fragmentum vêm de frango: quebrar, romper, fracassar, pôr em pedaços, em pó, em migalhas, aniquilar. Em grego, é o klasma, o apoklasma, o apospasma, o pedaço separado pela fratura, o extrato, qualquer coisa arrancada, retirada violentamente. Os spasmis vêm daí: convulsão, ataque nervoso, que desloca.

60 Id., ibid., p. 78.

61 TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. “Novalis: o romantismo estudioso”. In: NOVALIS. Pólen. São Paulo:

Iluminuras, 2009, p. 11.

62 BARRENTO, João. O género intranquilo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010, p. 62. 63 DI, p. 41.

São Martinho de Anta, 25 de Dezembro de 1938 – O dia foram as camélias e as trepadeiras que plantei com meu Pai. Poucas vezes, nestes trinta anos, me senti tão uno, tão certo, como junto daqueles setenta a plantar flores. Porque meu Pai, assim magro e assim debruçado sobre a terra, enche de paz e confiança a inquietação mais desvairada64.

A musicalidade intensa e as imagens metafóricas da natureza são incorporadas, nos fragmentos acima, para expressar sentimentos complexos e distintos. No primeiro, a inquietação filosófica sobre a essência do tempo; no segundo, o amor pelo pai e pela terra que parece de alguma forma fundir-se. O hibridismo de gêneros, tão assimilável pela forma do Diário, absorve essas duas formas de dicção, tornando o fragmento narrativo e a poesia uma só coisa, como fora para os primeiros românticos, como é para Miguel Torga.

Além da poesia, o Diário também absorverá outras formas que têm no fragmentário um princípio constitutivo, como cartas, ensaios, comentários, entrevista etc. Por tal natureza compósita, Barrento vê no fragmento romântico uma tendência à anulação das fronteiras entre os gêneros, que está presente, quer na relação entre os fragmentos, quer na sua qualidade de “género anfitrião de todos os outros da poesia à narrativa, da filosofia à crítica, da música à ciência”65. Tal “sociabilidade” no Diário, de Miguel Torga, processa-se pela presença dessas duas dimensões herdadas da Escola de Iena: o relevo na construção de cada fragmento e a fusão harmônica de diversos gêneros sejam eles de matriz popular (a anedota, os provérbios) ou erudita (o ensaio, a poesia, o chiste). Por causa dessa dupla inclinação, o texto torguiano revela uma ambiguidade. De um lado a atração pelas formas fragmentárias e inacabadas que está presente em toda arte moderna; de outro, um esforço contínuo de submeter o texto a diversos níveis de escritura e reescritura em busca de uma perfeição orgânica que parece desmentir a premissa anterior.

João Barrento parece perceber esse desacordo já nos postulados dos primeiros românticos, que concebiam o fragmento como uma unidade fechada em si mesmo, uma espécie de microcosmo à parte. Segundo, o crítico português:

Nunca o fragmento pôde prescindir da articulação com uma qualquer forma de totalidade. (...) Não se confirma, assim, a conhecida analogia do fragmento com o ouriço (Schlegel) que se fecha sobre si mesmo para constituir um microcosmo autônomo. Não há autonomia do fragmento, que não é uma forma-em-si, nem nos românticos, nem nos modernos – embora nestes seja, não resto ou ruína de uma

64 DI, p. 77.

totalidade perdida, mas o resultado de uma vontade do fragmentário presente em toda a arte moderna66.

Esta possível abertura do fragmento para uma totalidade maior que o abrange é o que nos permite considerar, como fez Marcello Mathias, o Diário torguiano uma espécie de obra acabada. O esforço de aperfeiçoar, ao longo dos anos, a tessitura do fragmento tem sentido na medida em que o autor pensa em cada nota como parte de um conjunto maior. Os volumes dos Diários foram escritos sucessivamente e publicados em anos distintos, mas de alguma maneira permanecem unidos por um liame integrador. Nesse sentido, a versão integral da obra, organizada pelo autor pouco antes de sua morte e editada pela Dom Quixote, veio confirmar a natureza, ao mesmo tempo, amalgamada e harmônica desses escritos.