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Para Foucault (1995) a estrutura social é atravessada por múltiplas relações de poder, que são imanentes ao corpo social, atingindo realidades concretas dos indivíduos, penetrando as práticas cotidianas, de modo que pensar uma sociedade sem relações de poder seria abstração.

Partindo desses pressupostos, o autor questiona algumas preposições sobre a teoria do poder e apresenta a idéia de microfísica do poder, que segundo Roberto Machado (1981),

[...] significa tanto um deslocamento do espaço da análise quanto do nível em que esta se efetua. Dois aspectos intimamente ligados, na medida em que a consideração do poder em suas externalidades, a atenção as suas formas locais, a seus últimos lineamentos tem como correlato a investigação dos procedimentos técnicos de poder que realizam um controle detalhado, minucioso do corpo – gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos. (MACHADO, 1981, p.12I).

Porém, o interesse de Foucault não estava voltado para a construção de um novo conceito, e sim para a análise do poder como prática social, historicamente constituída, e suas diferentes formas de aplicação na sociedade. Desse modo, mais do que responder “o que é o poder?”, para Foucault, o importante é indagar

[...] quais são, em seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relações, os diversos mecanismos de poder que se exercem a níveis diferentes da sociedade, em domínios e com extensões tão variados? [...] a análise do poder ou dos poderes pode ser, de uma maneira ou de outra, deduzida da economia. (FOUCAULT, 1999a, p.174).

Para Foucault (1999a) as concepções marxistas e jurídicas, representativas do pensamento liberal a respeito da teoria do poder tinham em comum uma forte ligação com a questão econômica, sendo que a teoria clássica jurídica considerava o poder

[...] como um direito de que se seria possuidor como de um bem e que se poderia, por conseguinte, transferir ou alienar, total ou parcialmente, por um ato jurídico ou um ato fundador de direito, que seria da ordem da cessão ou do contrato. (FOUCAULT, 1999a, p.174).

Sendo fundamentais para os questionamentos e o desenvolvimento das idéias de Foucault acerca da temática do poder, essas concepções fizeram com que ele buscasse outras visões, diversas daquelas fornecidas pelas análises econômicas do poder, das que tomam e daquelas que concebem como conquistas de guerra. Porém, segundo

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Gilles Deleuze (2005), foi a partir das reflexões sobre poder no nível econômico, repressivo e de guerra, que Foucault começou a delinear uma nova forma de pensar o poder, sendo necessário que ele abandonasse alguns postulados acerca da questão, a saber: o postulado da propriedade, o postulado da localização, o postulado da propriedade, o postulado da subordinação, o postulado do atributo, o postulado da modalidade, o postulado da legalidade.

No postulado da propriedade, o poder seria ‗propriedade‘ de uma classe que o teria conquistado. Para Foucault, o poder não é uma apropriação e sim, um conjunto de estratégias materializadas em práticas, técnicas e disciplinas diversas e dispersas.

O postulado da localização entende o Estado e a esfera pública como centro do poder. Ao contrário disso, Foucault, vê o poder microfisicamente disperso em múltiplas disciplinas e manobras táticas.

No postulado da subordinação, o poder, encarnado no aparelho de estado, estaria subordinado a um modo de produção ou, em última instância, a uma infra-estrutura econômica. Para Foucault, o poder é diretamente ‗produção‘, ele é imanente à produção social e não comporta nenhum tipo de unificação transcendente ou centralização globalizante.

O postulado do atributo, segundo o qual o poder teria uma essência e um atributo. Para Foucault, o poder não tem essência, é operatório; ele também não é um atributo, mas uma relação de forças que envolvem dominadores e dominados e perpassa todo o campo social.

O postulado da modalidade, no qual, o poder agiria ora por coerção, ora por consenso. Segundo Foucault, o poder produz a verdade antes de escondê-la na ideologia; o poder produz a realidade antes de forçar o seu enquadramento através da violência.

O postulado da legalidade, segundo o qual a lei é expressão contratual do poder. Para Foucault, a lei não é uma regra normativa para regulamentar a vida social em tempos de paz, mas a própria guerra das estratégias de uma determinada correlação de forças.

Segundo Deleuze (2005), ao abandonar esses postulados Foucault desenvolve uma concepção de poder baseada em três afirmações:

[...] o poder não é essencialmente repressivo (já que ele incita, suscita, produz); ele se exerce antes de se possuir (já que só se possui sob uma forma determinável –classe – e determinada – Estado); passa pelos dominados tanto quanto pelos

dominantes (já que passa por todas as forças em relação). (DELEUZE, 2005 p.79).

Desse modo, o poder para Foucault (1995) coloca em questão relações entre indivíduos, em que o exercício de poder se configura quando há ação sobre ações

Não devemos nos enganar: se falamos do poder das leis, das instituições ou das ideologias, se falamos de estruturas ou mecanismos de poder, é apenas na medida em que supomos que ‗alguns‘ exercem um poder sobre os outros. (FOUCAULT, 1995, p.40).

Nesse sentido, uma relação de poder é a ação que não age direta e imediatamente sobre os outros, mas sim, que age sobre sua própria ação, sendo que para Foucault, o exercício de poder

[...] pode perfeitamente suscitar tanta aceitação quanto se queira: pode acumular as mortes e abrigar-se sob todas as ameaças que ele possa imaginar. Ele não é em si mesmo uma violência que, às vezes, se esconderia, ou consentimento que, implicitamente, se reconduziria. Ele é um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo de possibilidades onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos; ele incita, induz, desvia, facilita, ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna mais ou menos provável; no limite, ele coage ou impede absolutamente, mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir. Uma ação sobre ações. (FOUCAULT, 1995, p.243).

Segundo Roberto Machado (1988) essa construção teórica acerca do poder foi o resultado das questões colocadas pela pesquisa que Foucault realizava sobre a história da penalidade, pois

[...] apareceu então para ele o problema de uma relação específica de poder sobre os indivíduos enclausurados que incidia sobre seus corpos e utilizava uma tecnologia própria de controle. E essa tecnologia não era exclusiva da prisão; encontrava-se também em outras instituições como o hospital, a caserna, a escola, a fábrica [...]. (MACHADO, 1988, p.194).

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A essa relação específica de poder, Foucault chamou poder disciplinar, poder este que caracterizaria determinada época, e uma forma específica de dominação, modificando gradativamente as técnicas relativas ao poder da soberania. O poder disciplinar substitui o poder que se exercia pela figura do rei e ao invés de destruir, produz e investe nas individualidades, classifica aqueles aos quais é aplicado. Para Foucault (1997) o poder disciplinar é garantido porque atua por meio de três instrumentos eficazes: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora, o exame.

Sobre a vigilância hierárquica, onde se podem enxergar tudo e todos são observados

[...] o bom adestramento (...) o exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam. (FOUCAULT, 1997, p. 153).

A sanção normalizadora visa a qualificar e reprimir todas as micro-penalidades: do tempo (atrasos e faltas); da atividade (desatenção e negligência); da maneira de ser (grosseria e desobediência); dos discursos (tagarelice e insolência), do corpo (atitudes incorretas e gestos não conformes), da sexualidade e ―toda uma série de processos sutis, que vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações‖ (Foucault, 1997, p. 159), ou seja, os mínimos atos desviantes do indivíduo são passíveis de penalização, via correção ou punição.

O exame seria uma combinação entre a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora.

[...] é um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento a verdade. (FOUCAULT, 1997: 165).

O exame permite o controle minucioso das operações do corpo, inaugurando uma anatomia política, circunscrevendo uma relação de sujeição, pois implica no domínio do corpo do outro.

Entretanto, a partir da segunda metade do século XVIII, o poder disciplinar, passa a ser complementado pelo biopoder, não se operando uma substituição de um pelo outro e sim uma adaptação, onde o biopoder incorpora-se ao poder disciplinar, integrando a si a disciplina.

[...] eu creio que se vê aparecer algo de novo, que é uma outra tecnologia de poder, não disciplinar dessa feita. Uma tecnologia de poder que não exclui a primeira, que não exclui a técnica disciplinar, mas que a embute, que a integra que a modifica parcialmente e que, sobretudo, vai utilizá-la implantando-se de certo modo nela, e incrustando-se efetivamente graças a essa técnica disciplinar prévia. Essa nova técnica não suprime a técnica disciplinar simplesmente porque é de outro nível, está noutra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por instrumentos totalmente diferentes. (FOUCAULT, 2005, p. 288-289).

Desse modo, ambos os poderes passam a ocupar o mesmo espaço, porém, ao passo que o poder disciplinar se faz sentir nos corpos dos indivíduos, o biopoder aplica-se em suas vidas. A disciplina promove a individualização dos homens, o biopoder sua massificação, uma vez que ele se dirige a ―uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida‖, ou seja, ―algo que já não é uma anátomo-política do corpo humano, mas (...) uma ‗biopolítica‘ da espécie humana (Foucault, 2005, p.289).