• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.2 IDEOLOGIA E PODER

2.2.1 O Poder: relações de causa e efeito entre dominantes e dominados

2.2.1.4 O poder no discurso

As questões de poder são de extrema relevância para a Análise de Discurso Crítica (ADC). Como ela é a base teórica deste trabalho, essencial se faz buscar o entendimento de uma das principais autoridades em ADC, Norman Fairclough, acerca do poder no discurso. Fairclough (1989), explica a relação entre língua e poder, afirmando que a língua é essencialmente envolvida com o poder, e que a luta pela língua pode manifestar-se ela própria como uma luta entre tipos de discurso ideologicamente diversos. Segundo Fairclough, "O que está em questão é o estabelecimento ou manutenção de um tipo de discurso como dominante em um dado domínio social e, conseqüentemente, o estabelecimento ou manutenção de determinadas pressuposições ideológicas como consensuais." (ibid., p.90, tradução minha)

Um aspecto sobre o poder, salientado por Fairclough (1989, p.48), e que será importante para a nossa análise no presente trabalho, diz respeito à falsa concepção de dominação baseada em impressões exteriores. Como exemplo, Fairclough menciona o gênero discursivo da entrevista, no qual os entrevistadores geralmente partem do pressuposto de que os entrevistados estão familiarizados com as formas dominantes de condução de entrevistas. Dessa forma, as contribuições dos entrevistados são, também, interpretadas no pressuposto de que eles – os entrevistados – são capazes de entender e de responder à questão, em conformidade com as convenções dominantes. Assim, se um(a) entrevistado(a) responde a uma questão de forma considerada pobre, fraca ou irrelevante, concluir-se-á que ele(a) não possui os conhecimentos ou experiência requeridos, ou que não quer cooperar e assim por diante. Fairclough complementa o raciocínio lembrando que um(a) entrevistado(a) poderá ser recusado em empregos ou ter outros benefícios e direitos negados em decorrência de falsas impressões exteriores baseadas na insensibilidade e na supremacia cultural.

Ainda ao discorrer sobre as relações de dominação entre tipos de discurso, Fairclough faz alusão à expressão antilinguagem, cunhada pelo lingüista Michael Halliday, que se refere a um tipo de discurso que se contrapõe ao da língua-padrão. Segundo Fairclough as antilinguagens são construídas e utilizadas como alternativas conscientes aos tipos de discurso estabelecidos ou dominantes. Como exemplos, Fairclough cita a linguagem própria do submundo do crime ou os dialetos de minorias (étnicas ou sociais) que não seguem a língua-padrão ou os que são praticados por comunidades de classes trabalhadoras em grandes cidades, entre outras formas de linguagem.

Até aqui, os exemplos dados de poder e dominação no discurso referem-se a relações discursivas face a face, mas é de suma importância que abordemos também a questão do poder no discurso mediato, isto é , naquele que não tem relação direta com seus destinatários – a mídia (televisão, rádio, jornais, revistas etc.). Ao enfocar os meios de comunicação de massa – mass-media - , Fairclough (1989, p.49) argumenta que as relações de poder envolvidas no discurso da mídia não aparecem muito claramente e envolvem o que ele chama de hidden relations of power, ou seja, relações de poder escondidas. Diferentemente dos discursos face a face, cuja interação dos participantes é alternada entre produtores e intérpretes dos textos, os discursos da mídia são desenhados

para audiências massivas (leitores, ouvintes, telespectadores), completamente desconhecidas; em outras palavras, o discurso que a mídia produz é endereçado a um "destinatário ideal", seja ele leitor, ouvinte ou telespectador. Ainda segundo Fairclough, no que concerne às relações de poder, pode-se dizer que "os produtores dos discursos na mídia exercem poder sobre os consumidores na medida em que aqueles têm direitos individuais sobre a produção e, portanto, podem determinar o que deve ser incluído ou excluído, como um evento deve ser representado e até mesmo as posições dos sujeitos de suas audiências". (ibid., p.50, tradução minha)

O poder no discurso se manifesta expressa ou tacitamente de diversas formas, as quais poderíamos continuar exemplificando à exaustão. Contudo, os exemplos dados parecem-nos suficientemente significativos para o entendimento de que o poder é exercido e praticado claramente no discurso, mas que também existem relações de poder não evidentes, por trás do discurso. Em ambos os casos, o poder não é um atributo permanente de qualquer pessoa ou grupo social. Ao contrário, aqueles que detêm o poder em um determinado momento precisam constantemente reafirmá-lo ou o perderão para aqueles que não detêm o poder, mas que estão sempre tentando conquistá-lo; ou seja, o poder é conquistado, mantido e perdido no curso das lutas sociais.

2.2.2 Ideologia

A palavra ideologia foi criada no começo do século XIX para designar uma "teoria geral das idéias". Segundo Althusser (1980), foi Karl Marx quem começou a fazer uso político dela quando escreveu um livro junto com Friedrich Engels intitulado A ideologia alemã.

A divisão social do trabalho, iniciada na família, prossegue na sociedade e, à medida que esta se torna mais complexa, leva a uma divisão ente dois tipos fundamentais de trabalho: o trabalho material de produção de coisas e o trabalho intelectual de produção de idéias. No início, essa segunda forma e trabalho social é privilégio dos sacerdotes; depois, torna-se função de professores e escritores, artistas e cientistas, pensadores e filósofos.

Para Marx, citado por Althusser (ibid., 73), a ideologia é uma construção imaginária. Ela é constituída por “resíduos diurnos da única realidade pela e positiva, a

da história concreta dos indivíduos concretos, materiais, produzindo materialmente a sua existência”.

A ideologia surge, então, como crença na autonomia das idéias e na capacidade de as idéias criarem a realidade.

Bobbio (1993, p. 585), cita várias espécies de ideologia: a da burguesia, da comunidade de trabalho, para todos, a totalitária, a tutelar etc. Ao discorrer sobre as diversas acepções da ideologia, o referido cientista político apresenta um conceito importante para esta pesquisa, segundo o qual a ideologia é uma forma discursiva de ocultação, orientada para a legitimação de uma prática que não pode ser explicitamente assumida pelo grupo social ou pela facção que nele detém o poder, sem a quebra de seus vínculos de pertencimento e poder.

Fairclough (2001, p.117) conceitua ideologia como:

significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção e reprodução ou a transformação das relações de dominação.

Pensamento semelhante é encontrado em Thompson (citado por Fairclough, 2001) de que determinados usos da linguagem e de outras 'formas simbólicas'1 são ideológicos, ou seja, servem em circunstâncias específicas para estabelecer ou manter relações de dominação. De acordo com a concepção proposta por Thompson (2002), a análise da ideologia se interessa primeiramente pelas maneiras como formas simbólicas se entrecruzam com relações de poder. Estudar ideologia é, pois, estudar as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação. (ibid., p.76).

Para Thompson, a posição das pessoas dentro de contextos socialmente estruturados confere a elas diferentes quantidades e diferentes níveis de acesso a recursos disponíveis:

A localização social das pessoas e as qualificações associadas a essas posições, num campo social ou numa instituição, fornecem a esses indivíduos diferentes graus de 'poder', entendido neste nível como uma capacidade conferida a eles socialmente ou institucionalmente, que dá poder a alguns indivíduos para tomar decisões, conseguir seus objetivos e realizar seus interesses." (ibid., p.80)

1

Thompson define "formas simbólicas" como um amplo espectro de ações e falas, imagens e textos, que são produzidos por sujeitos e reconhecidos por eles e outros como construtos significativos.

Segundo Thompson, a dominação ocorre quando as relações estabelecidas de poder são "sistematicamente assimétricas''. O autor distingue cinco modos de operação gerais da ideologia e indica algumas das maneiras como eles podem estar ligados, em circunstâncias particulares, a estratégias de construção simbólica, que servem para estabelecer e sustentar relações sistematicamente assimétricas de poder: 1) a legitimação (racionalização, universalização e narrativização); 2) a dissimulação (deslocamento, eufemização, tropo); 3) a unificação (estandardização e simbolização da unidade); 4) a fragmentação (diferenciação e expurgo); e 5) a reificação (eternalização, naturalização e nominalização).

Considerando o objeto da presente pesquisa, destacam-se, dentre os cinco modos gerais de operação da ideologia citados por Thompson: a fragmentação, na qual relações de dominação podem ser sustentadas por meio da segmentação simbólica de indivíduos e grupos. Uma das estratégias de construção simbólica da fragmentação é a diferenciação, cujo objetivo é enfatizar as diferenças e divisões entre pessoas e grupos. Outro modo de operação considerado relevante é o da legitimação, mormente quanto à estratégia de racionalização, por intermédio da qual é construída uma cadeia de raciocínio, que objetiva defender ou justificar relações e instituições sociais e angariar apoio; e quanto à estratégia da universalização, em que acordos institucionais do interesse de alguns são apresentados como se servissem aos interesses de todos. Finalmente, cabe destacar a reificação, por meio da qual as relações de dominação são estabelecidas e sustentadas permanentemente como se fossem naturais; a estratégia típica de construção simbólica da reificação, que interessa a este estudo, é a naturalização.

2.2.2.1 Representação imaginária das relações entre pessoas: o pensamento de Althusser

Para abordar a tese central sobre a estrutura e o funcionamento da ideologia, Althusser (op. cit.) propõe duas teses. Na primeira delas, " a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência"(ibid., p.77). Segundo essa tese, o que é representado na ideologia não é o sistema das relações reais que governam a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária destes indivíduos com as relações reais em que vivem.

A outra tese proposta por Althusser (ibid., p.83) diz que "a ideologia tem uma existência material". Uma ideologia existe sempre num aparelho, e na sua prática ou suas práticas. Esta existência é material.

Um exemplo prático de ideologia enquanto relação imaginária com relações reais e sua existência material é o da Fé: alguém que crê em Deus, é cristão, age como tal, vai à Igreja, ajoelha-se, reza, confessa...

Althusser (ibid., 86) ressalta que a representação ideológica da ideologia é obrigada a reconhecer que todo o 'sujeito' dotado de uma 'consciência' e crendo nas 'idéias'1 que a sua 'consciência' lhe inspira e as quais aceita livremente, deve 'agir segundo as suas idéias'; deve inscrever nos atos de sua prática material (práticas) as suas próprias idéias de sujeito livre.