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Poder-se-ia dizer que por trás das páginas de A Morte de Jesus, Outro Amável

Milagre e O Suave Milagre, entre outras, mora, e se demora, emocionada, a memória

da leitura primeira que Eça fez da Vie de Jésus, de Ernest Renan.

Publicada em 1863 – estudava Queiroz ainda em Coimbra –, esta Vie de Jésus – que, a despeito das pretensões de historiador positivista do seu autor, se afigura hoje como um mero esboço, aliás nitidamente romanceado e poético, da biografia do fundador da religião cristã – dava início a uma longa Histoire des Origines du Christianisme que, em sete volumes, se editaria até 1881.

Defensor do dogmatismo científico, devotado a estudos orientais, Renan (1823-1892) propusera-se partir em demanda do Jesus histórico, para no-lo revelar na sua humanidade e no seu sonho de justiça, liberto da ganga dos muitos mitos tecidos pela ignorância e a credulidade ingénua.

Semelhante desiderato não poderia deixar de calar fundo no coração e na mentalidade de autores como Eça e seus companheiros de geração e luta.

O Jesus homem, que convive com os seus semelhantes homens e mulheres, que lhes conhece as carências e as dores – esse Jesus que Renan trouxera à nossa presença –, é o que também inspira, entre outros (nomeadamente, crónicas jornalísticas), os trabalhos literários de Eça a que acima nos referíamos.

Integrado nos pressupostos da corrente historicista, Ernest Renan intenta na sua Vie de

Jésus e outros escritos apresentar-nos um Jesus na dimensão humana – ainda que

excepcional – que, em seu entender, não terá deixado de se manifestar no "doce Rabi" de Galileia a que Eça, nos seus 'Milagres', recorrentemente se reporta.

Fácil é de ver que esta perspectivação humana do fundador da nova e revolucionária religião – perspectivação levada a cabo ao longo de páginas, nimbadas de poesia e eloquência, a que um aturado peregrinar de arqueólogo conferia, por outro lado, foros de aparentemente indiscutível fidedignidade – era de molde a suscitar o maior entusiasmo numa geração como aquela a que Eça pertenceu, uma geração a quem pais, avós e a imprensa coeva constantemente recordavam o peso que o fanatismo religioso tinha atingido no Antigo Regime, conferindo nomeadamente a Lisboa, assumida capital de um Estado imperial e católico, laivos de uma nova Jerusalém.

A recuperação de Jesus como homem irmão do homem e com ele solidário, a que Renan metera ombros, incentivará Queiroz a não poupar críticas ao farisaísmo, hipocrisia e tacanhez patentemente presentes em muitas das instituições tradicionais (clericais e outras): assim se compreenderá muita da ironia presente em tantas páginas de O Crime

do Padre Amaro, A Relíquia e outras obras.

Mas – estamos em crê-lo – a profunda humanização de Jesus empreendida por Renan determinará ainda outros efeitos no Autor objecto do presente estudo.

Terá contribuído inclusivamente para que, em escritos como Lendas de Santos, Eça, humanista que nunca deixou de ser, passasse a olhar, do lado intrinsecamente humano – do lado em que o santo é, ainda, irmão do homem –, alguns dos mais notáveis vultos do hagiológio cristão, como Santo Estêvão ou S. Cristóvão.

A Vie de Jésus de Renan terá operado, assim, no jovem Eça, leitor inteligente e sensível, o mágico encanto de um suposto encontro, a nível humano, com o doce iniciador da mais sublime religião monoteísta.

Renan, devotado historicista, poderá até – como pretenderão alguns dos seus críticos – não ter logrado significativos progressos de pesquisa histórica, a despeito da sua apaixonada digressão por terras da Palestina em demanda de quem terá sido efectivamente Jesus. A fragilidade do seu pretenso levantamento histórico é, aliás, como que denunciada recorrentemente pelo emprego de expressões como "parece que…", "dizem", "julga-se", "um certo…".

Não obstante, e porventura prevalecendo-se das convicções que se lhe foram arraigando enquanto estudante de Teologia – quando já se dava conta das contradições que emergem dos evangelhos canónicos –, Renan terá conseguido, graças à pujante veia retórica da sua narrativa, desenvencilhar Jesus da carga obscurecedora de alusões, conceitos e inferências que pouco ou nada têm a ver com o espírito que animou o fundador do Cristianismo primevo.

É esse Jesus redivivo que toca Eça – antes e depois da iniciática viagem de 1869. É desse mesmo Jesus, de que Renan narra, ou intenta narrar, a vida, que Queiroz – comprazendo-se nas antinomias tão ao gosto de certa retórica de vertente dialéctica do século XIX – pensou um dia narrar a morte (em, precisamente, A Morte de Jesus). Vida e morte, pois, de um homem – mas de um homem em quem os que o conheceram e amaram e foram tocados pelo seu arroubo místico viam a encarnação do próprio Deus, como aliás Renan e Eça, a despeito de alguns confessos posicionamentos ideológicos, não deixam de registar e propendem a aceitar.

Poder-se-á assim dizer que, sob muitas páginas dos últimos escritos de Eça, nomeadamente as dos 'Milagres', se pressente aquele Jesus terno e próximo dos humanos que, determinado e arrostando com as limitações de muitos do seu tempo, Renan conseguira recuperar da montureira da história das religiões, crenças e cultos. Esse Jesus – tão obstinadamente crente e apostado em comunicar a boa nova de que o Reino dos céus é uma realidade e está ao alcance de qualquer um que o queira e mereça – não se poupa a esforços para, em contacto com as pessoas (por vezes, depois de delas se afastar para, em recolhida oração – inclusivamente no deserto, que o será de flora e de fauna, que não do Espírito –, buscar novas energias), constantemente se dar a separar o trigo do joio, os odres velhos dos odres novos, a preparar a terra do espírito para a sementeira do Reino de Deus (Verbum est semen Dei1 – ler-se-á nos Evangelhos).

O Jesus por quem Eça se sente inspirado não é um pregador autoritário de uma qualquer doutrina, apostado em destronar pela força credos antigos. Pelo contrário: é o meigo anunciador de um outro Reino, sempre pronto a ouvir, e a dar a mão, a quem, ainda que por outros caminhos, procura atingir esse mesmo Reino da Verdade e da Justiça – e, antes de mais, de Amor. É essa abertura de Jesus que explica a boa vontade e compreensão com que terá ouvido falar de práticas que, anteriores ou coevas da Boa Nova, lhe não repugnavam.

Renan reporta-se-lhes na sua Vie de Jésus, falando deles como uma seita que se devotava ao que era natural e puro, se preocupava com o bem-estar dos outros, e acrescentando que se ignora se o assumir de idênticos objectivos por Jesus de Galileia não denotará a propagação que o ideal dos ditos Essénios estaria a conhecer por terras da Palestina, onde, mais numas (como as que confinam com o Lago de Tiberíade) do que noutras (Nazaré, Jerusalém), não deixava de haver, sobretudo entre os simples, gente predisposta à consideração de novos pontos de vista de ordem ética e moral. Eça foi sensível à diáfana postura daquela seita religiosa judaica, a qual, constituída no séc. II A.C., se dava a viver em pequenas comunidades, preparando-se os seus membros – que faziam votos de obediência, pobreza e celibato – para o fim do mundo, que tinham por iminente.

E é assim, com essa extrema sensibilidade ética (que a leitura de Renan e a digressão pelo Oriente mais terão vincado), que Queiroz não deixará, enquanto narrador da demanda de Jesus pelos soldados de Septimus, de focar, com aparente autenticidade, um pontual encontro daqueles mesmos soldados com um velho Essénio, que surpreendem no seu labor de terapeuta e a quem perguntam pelo Rabi de Galileia, (Cfr. Capítulo IV, 2 da presente Dissertação).

2. Contam-se por três as versões que Eça nos deixou, por ele revistas e publicadas, do