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As seriações a que tem obedecido a publicação póstuma dos contos de Eça viriam assim a revelar muito de arbitrário, a começar pela colectânea precisamente intitulada

de Contos que Luís de Magalhães, grande amigo de Queiroz, organizou e veio a dar à estampa em 1902.

Pronunciando-se sobre o mérito dessa primeira divulgação em volume após o passamento do Escritor, diz Luiz Fagundes Duarte na introdução da compilação de narrativas ecianas, também singelamente titulada de Contos, a que por sua vez meteu ombros em 1988:

"Os critérios adoptados por Luís de Magalhães para a organização deste volume não parecem claros: em primeiro lugar, porque reúne 12 contos publicados pelo autor dispersamente, mas não reúne todos os contos escritos por Eça de Queiroz; em segundo lugar, porque a ordenação dos textos não obedece nem a critérios cronológicos (de escrita ou de publicação) nem a critériostemáticos; em terceiro lugar, porque alguns dos textos não foram escritos pelo autor como contos, e, para os poder integrar numa colectânea de textos deste género literário, Luís de Magalhães teve ou de lhes alterar ou de proceder a arranjos de vária ordem […]. Porém, com todas as críticas que se lhe possa fazer, esta edição dos Contos passou a constar da bibliografia queirosiana, tendo servido de base, até ao momento, a mais de três dezenas de reedições".7

Afastando-se dos critérios da arrumação dos textos por que se terá norteado Luís de Magalhães – critérios que considera discutíveis -, afirma Luiz Fagundes Duarte que, na edição de que lhe coube incumbir-se, "decidiu-se reorganizar os contos de acordo com

um critério temático-cronológico: assim, a colectânea abre com os textos cuja temática tem a ver com personagens e situações contemporâneas do autor ("Singularidades de uma Rapariga Loira"), continuando em seguida com textos de temática medieval ("Tema para Versos", que pelos objectivos definidos pelo autor na primeira parte funciona como transição, "As Histórias, O Tesouro", "As Histórias. Frei Genebro) e "O Defunto"), bíblica ("Outro Amável Milagre", "Um Milagre" e "O Suave Milagre") e mitológica ("Adão e Eva no Paraíso" e "A Perfeição"); dentro de cada grupo, os textos estão organizados cronologicamente pela data da respectiva publicação.”.8 (it.n.)

Evidente é que a sistematização editorial avançada por Luiz Fagundes Duarte se revela muito mais avisada que a de Luís de Magalhães.

No que tange aos contos de cujo estudo comparativo nos iremos ocupar ao longo da presente Dissertação, a sequência da respectiva inserção obedece, como se esclarece, à ordem cronológica da primeira publicação dos mesmos.

O que – sendo racional, porque historicamente correcto (comprovadas que estão, as datas de primeira publicação dos textos queirozianos em causa não consentem quaisquer dúvidas) – não se nos afigura possa invalidar o que, mais adiante, iremos sustentar relativamente à ordem por que se processou, na mente de Eça, a ideação e planificação dos três 'Milagres'.

Como pertinente e recorrentemente assinala Maria Isabel Cadete Novais na sua tese de doutoramento em Estudos Portugueses (Jacob e o Anjo – a Construção do Texto

Dramático em José Régio), o processo criativo de um escritor ou artista é algo de muito

complexo: nasce a partir deste ou daquele ponto, muitas vezes de um quase-nada que a sensibilidade, a imaginação, a cultura e muitos outros factores transformam no íntimo do autor num quase-tudo; ora vai em frente, ora retrocede; estagna e hiberna; renasce e corre, enfim, como um rio, rumo ao grande oceano que o convoca.

"A criação artística" – escreve-se, a dado passo no aludido trabalho universitário – "é, pois, um processo de interacção contínua entre o criador e a sua obra, entre o mundo interior e o mundo experimental, e a ideia pode ser considerada o guia que orienta o trabalho criativo à medida que este vai sendo desenvolvido, de acordo com as especificações guardadas no seu íntimo […]. No vaso da produção literária, é frequente as experiências emotivas do escritor serem transpostas para as personagens das suas ficções. São muitas as obras literárias em que há marcas evidentes dessa projecção da memória emocional e sensorial do escritor.".9

Havemos, por conseguinte, e obviamente, de convir em que o tempo da publicação (o que releva da edição) é antecedido de um tempo da escrita, tempo, este último, que se terá seguido sempre a um maior ou menor tempo de ideação.

Como oportunamente iremos procurar demonstrar, UM, longe de ter constituído aquilo a que tradicionalmente se vem designando por versão intermédia (o que só pode fundamentar-se numa mera cronologia editorial, que não vale mais do que isso), terá sido a centelha primeira que terá desencadeado na rica personalidade de Eça – apurado observador e cônscio julgador – o propósito de enveredar pela senda dos 'Milagres': a UM, se seguiria OAM, com o demonstrativo "outro" a justificar-se com todo o artístico enriquecimento do protótipo da narrativa; e, a OAM, alcançada enfim a catártica satisfação, do prosador-artista, ao ver consumar-se o aparentemente "suave milagre da

escrita" (para empregarmos a expressão cara a Pedro Eiras) a versão que, porventura ainda descontente de impenitente perfeccionista que era, forçoso lhe foi dar por definitiva – OSM.

6. Nos contos que concebe sobre temática religiosa ("A Morte de Jesus", "Lendas de Santos"), Eça começa a debruçar-se sobre a magna questão do mérito ou demérito das posturas observadas pelos crentes em Cristo ao longo dos séculos – e tenderá a sustentar, através do comportamento e atitudes que atribui às personagens, que o empenhamento em prol dos outros e da realização da Justiça é o mais consentâneo com o que há de mais profundo e essencial nas palavras de Jesus.

Esse entendimento – privilegiando a concretização da solidariedade em detrimento da passividade da contemplação – quadra ao humanitarismo revolucionário do Autor, desde sempre sensível à tocante prática cristã do místico de Assis.

Terá sido nesse contexto de reflexão sobre os valores humanos do Cristianismo que Eça – sopesando as vertentes da imanência e da transcendência, cônscio da falência do positivismo e outras falácias, do crescente poder dos poderosos e da miséria que a revolução industrial não cessava de multiplicar (como, compungido, deixou registado em crónicas que escreveu de Londres e Paris)10 – que Eça, dizíamos, terá concebido o seu 'Milagre', os seus 'Milagres' – a começar (Como provavelmente terá acontecido, de acordo com a hipótese que aventamos) pelo 'núcleo duro' do mísero casebre onde, miraculosa, ocorre a aparição de Jesus.

Resulta, aliás, bem evidente que, com a dispersão temática e formal da contística eciana em geral, contrastam singularmente a constância de assunto e o apuro de fio narrativo dos três 'Milagres'.

Da pluralidade, Eça caminha para a unicidade.

Dir-se-ia que, depois de muito ter descrito e narrado, o Escritor se encontra, enfim, decididamente empenhado em dar corpo a, e levar por diante, aquela narrativa nunca contada – centrada fisicamente num "casebre desgarrado", mas excedendo-o no espaço e no tempo – que nos fala de uma revolução muito especial: a revolução do modo de entender, sentir e viver a Fé, a crença no poder transformador do Espírito.

Face aos muitos e variados caminhos que incessantemente se lhe deparavam, Eça tenderá a privilegiar aqueles que se lhe afiguram mais capazes de corresponder à sua sempre empenhada cruzada pelo Bem, assim como à sua requintada sensibilidade de artista.

O interesse que o Escritor devotou ao desenho do perfil biográfico de algumas grandes figuras de santos do mundo cristão, e bem assim o claro propósito de tocar o âmago do que entendia constituir a vera mensagem de Jesus de Galileia, e mediante a assimilação dessa mensagem lograr enfim aceder à empatia da graça que se manifesta no milagre, consubstanciarão, no universo da contística eciana, algumas das escolhas conscientes efectuadas pelo Autor.

Eça terá privilegiado antes de mais a demanda da santidade, entregando-se à evocação da vida e do exemplo de excelsos vultos da história do Cristianismo – vida e exemplo

que foca sempre de um modo muito próprio, em função inclusivamente das suas mais profundas convicções de carácter ideológico: um homem é tanto mais santo quanto mais solidário for com os seus semelhantes (No imaginário de Queiroz e da Geração de 70, não podem deixar de estar presentes os muitos sacrifícios que a conquista da Liberdade terá custado – da secular opressão do Antigo Regime11 às invasões francesas e ao domínio inglês; da morte ignominiosa de Gomes Freire à guerra civil que dividiu os Portugueses …); a acção em prol dos outros, a luta pelo bem comum, sobrepõe-se em valor – em valor objectivo, social – à mera contemplação e meditação, à vivência ainda que austera dos solitários, dos eremitas12

Depois, e até ao final dos seus dias, o preclaro Escritor ter-se-á empenhado de cada vez mais profundamente na demanda da essência mesma do verdadeiro milagre que Jesus terá intentado proporcionar a todos os homens – o milagre de cada um conseguir a união com Deus, com esse Deus (revelado por Jesus de Galileia) que, sobre ser santo, é misericordioso.

Visando identificar, de forma iniludível, esse mundo outro de que vinha falando, Jesus proclama para quem o quer ouvir que "O meu Reino não é deste mundo, mas do céu" e – mais – que "Só os corações rectos e humildes lá entrarão". E, logo satisfazendo a natural curiosidade de quem o escuta, o mesmo Jesus – esse doce Rabi "que dá sem nada pedir em paga que não seja o vosso amor" (como ele próprio se definira falando aos ricos habitantes de Hippos, a opulenta cidade da Decápole, a sudeste do mar de Galileia) – logo esclarece que a entrada no seu Reino se processa através de uma única senha: a do amor. " – explicita – "Quem pouco amar fica em baixo; quem até à hora da morte muito amar subirá ao cimo, bem junto da vida eterna.".

Dir-se-ia que, com os 'Milagres' – assim como com "A Cidade e as Serras" e alguns outros escritos –, se opera em Eça uma reaproximação dos valores humanos e sociais do Cristianismo13, reaproximação que, porque fruto da reflexão e da procura, não se nos afigura subsumível no redutor conceito de aburguesamento, que, a propósito, ocorre em não poucos críticos.

Ou seja: para Eça de Queiroz, os valores da solidariedade social e da justiça social não poderiam nunca deixar de estar presentes nessa espécie de idealismo místico para que, sobretudo quando se ocupa da vida de Santos ou idealiza os 'Milagres', o Escritor parece propender.

Combatente incansável pelas grandes causas do Homem, observador atento da realidade que o circunda, céptico relativamente aos dogmas religiosos definidos por Roma, leitor entusiasta de um Renan que lhe terá proporcionado a compreensão profunda da vertente humana do drama de Jesus14, Eça sabe, e visceralmente sente, que o eterno sol da Justiça jamais conhece ocaso – e luta com a sua pena, irmão que se reconhece de outros cultores dos mesmos ideais (Antero, Victor Hugo, Leon Tolstoi e tantos mais), para que esse sol ilumine mais e mais espíritos.

Capítulo III