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3.3 Tecnologias de poder sobre o corpo das pessoas com lepra

3.3.1 O poder pastoral

Até o século XVI, existiam tratados que definiam princípios que deveriam nortear a conduta dos soberanos para que pudessem exercer o poder e ter a aceitação e respeito de seus súditos como, “conselhos para amar e obedecer a Deus, introduzir na cidade dos homens a lei de Deus, etc”, portanto, era nítido o papel de proteção paterna desempenhado pelo soberano que deveria “ajudar seus súditos a se salvar no outro mundo” (FOUCAULT 2007, p. 277; FOUCAULT, 2008, p.7).

Nesse período, o Estado Medieval era fortemente influenciado por uma racionalidade governamental teocrática, tendo em vista a forte influência do clero cristão que era regido por princípios e regras exteriores, fato que conferia uma autonomia relativa, logo, o governante deveria: “respeitar as leis divinas, morais, naturais, leis que não são homogêneas nem intrínsecas ao próprio Estado” (FOUCAULT, 2008, p. 7).

Nessa conjuntura, a intervenção sobre os corpos dos leprosos no período que antecede o século XVII vale-se de um modelo de exclusão binário para explicar a forma de controle da lepra utilizada pelo Estado Medieval: separar os doentes dos sãos, – leprosos e não leprosos – e, dessa forma, colocar em prática uma medicina que visava à purificação da cidade. Essa estratégia defensiva da sociedade frente ao problema da lepra tinha como objetivo retirar de circulação os leprosos cuja representatividade enquanto doentes era de mortos em vida (FOUCAULT, 2001; FOUCAULT, 2004).

Essa técnica denominada de “Fechamento” tratava de um tipo de poder de controle espacial que foi utilizado tanto para a lepra, como para a peste que

assolava as cidades medievais no século XVI e ainda no século XVII, embora com objetivos diferentes. No caso dos leprosos, dentro de uma prática da rejeição, do exílio-cerca (poder soberano) e da peste na perspectiva do exercício do poder disciplinar (FOUCAULT, 2004).

Nessa linha de pensamento, o direito de vida e de morte era um de seus atributos fundamentais na teoria clássica da soberania e que “a vida e a morte dos súditos só se tornam direitos pelo efeito da vontade soberana”. O soberano ao exercer o poder de “fazer morrer e deixar viver”, exerce um “poder negativo,” que tem centralidade na morte. Trata-se de um tipo de poder expropriador, que “utiliza mecanismos de apropriar-se de coisas, de tempo, de corpos, de vida, culminando com o poder de suprimir a própria vida” (FOUCAULT, 2005, p. 286).

No caso da lepra não se trata da condenação à morte pelo sacrifício da morte biológica a que eram submetidos os delinquentes, infratores e outros que infringiam o rigoroso código moral do período medieval. A morte do leproso era simbólica, representada na exclusão para além dos muros das cidades medievais, em total desprovimento de condições de sobrevivência onde ficavam em bandos perambulando à mercê da sorte. Era uma morte social pela ausência da proteção do Estado soberano.

[...] longe da ideia de um sacrifício do cidadão para o bem da polis, a pastoral cristã introduziu um estranho jogo de relação de si para consigo mesmo que envolve a vida, a obediência, a identidade, a verdade e a morte. Em suas palavras, todas essas técnicas cristãs do exame, da confissão, da direção da consciência e da obediência tem um objetivo: levar o indivíduo a trabalhar a sua própria ‘mortificação’ neste mundo. A mortificação não é a morte, obviamente, mas uma enunciação a si mesmo neste mundo: uma espécie de morte cotidiana. (FOUCAULT, 2006 vol.4, p. 134)

O ordenamento das medidas de controle estabelecidas pelo poder soberano era sacramentado pelo discurso religioso do mundo cristão em que o portador de lepra, ao ser considerado impuro, não poderia participar dos rituais religiosos (FOUCAULT, 2004).

A compreensão para estes mecanismos de poder exercidos sobre os leprosos em que se destacam os poderes soberano e religioso podem ser explicados na análise de Deleuze (2009), influenciado pela visão espinozista, quando destaca que há necessidade para o exercício do poder produzir paixões tristes e ressalta, partindo do princípio do “laço profundo que une o déspota e o sacerdote”, que este

ao produzir tristeza em seus sujeitos provoca a diminuição da potência de agir dos mesmos.

Foucault (2008) destaca que para o pastorado cristão a obediência encontra sua razão de ser no próprio ato de obediência que identificou como “instância da obediência pura”. Nesse sentido, o fato de ser cristão é não ter vontade própria, é aceitar o que determina a vontade dos representantes divinos.

Assim, pode-se inferir que a conduta de submissão/aceitação do portador de lepra no passado, frente às medidas desumanas de controle impostas ao seu corpo por um Estado teocrático, pode estar relacionada à captura da subjetividade desses doentes; a retórica do discurso religioso cristão produzia sentimento de culpa uma vez que era dito terem sido essas pessoas escolhidas para expiar em vida os seus pecados. Muito marcante é a reprodução desse discurso de punição por doentes em pleno século XXI, conforme narrativa coletada em pesquisa realizada em um Centro de Referência para tratamento de portadores de hanseníase (FONTES, 2002, p.107): “não entendo porque fui ter essa doença, a minha vida sempre foi muito certa, jamais fiz alguma coisa para prejudicar os outros. Não sei por que esse sofrimento, sempre fui temente a Deus” (E 15).

Para Foucault (2007) as múltiplas relações de poder que atravessam e são constitutivas do corpo social, necessitam produzir e fazer circular os seus discursos de verdade para se estabelecer e funcionar. Nesse sentido, existe sempre uma intencionalidade na produção dos discursos sendo relevante destacar, de forma específica, que os discursos depreciativos sobre os leprosos que foram produzidos pelo poder religioso na antiguidade têm conseguido se perpetuar nos rituais da igreja católica, contribuindo para a sedimentação do estigma que envolve esta doença.

No século XIII pode-se estimar a magnitude da lepra na Europa pela quantidade de quase 20.000 leprosários, ou lazaretos, que eram locais destinadas ao isolamento dos doentes leprosos que obedeciam à organização de uma estrutura hospitalar, que funcionava dentro de um sistema disciplinar, e que, por outro lado, permaneciam ainda ancorados na ideologia do poder soberano, na medida em que não cumpriam a sua função de cura e consequente reabilitação/reintegração dos seus internos naquele continente (MAURANO9, 1939 apud OPROMOLLA, 2011, p. 197).

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MAURANO, F. Tratado de leprologia. – História da lepra no Brasil e sua distribuição geográfica - Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Lepra, V. 1, 1944.

Estes doentes quando não eram isolados sofriam severas sanções. Por sua vez, as primeiras organizações hospitalares deste período tinham pouca diferença dos lazaretos, cujo objetivo era instituir a assistência aos pobres e em segundo lugar, promover a transformação espiritual seguindo a perspectiva de separação e exclusão. Essas estruturas, nessa época, eram na verdade um lugar para o doente morrer e/ou conseguir a sua salvação (GUEDES, 1930; FOUCAULT, 2007).

Até o século XVII, a lepra esteve sob a regulação do poder soberano em que a autoridade monárquica e/ou religiosa estabelecia as prescrições de isolamento para os leprosos e suas famílias. Prevalecia o paradigma do estado de exceção, em que o soberano cria e possibilita de validade a norma soberana enquanto autoridade estatal. A impressão que emerge dessa análise é que para esses doentes a vida tornou-se desprovida de valor. O sentimento de merecimento, entendido aqui como resultante da sua falta de potência, reforça para essas pessoas uma vida desqualificada.

As vítimas desse tipo de poder, apesar de não estarem categorizadas como prisioneiras e nem sob a égide de acusadas por algum delito, eram detidas pelo exercício da autoridade do poder soberano e, em consequência desse ato de pura soberania de fato, eram usurpadas em seu direito de cidadania. (AGAMBEN, 2007; ARÁN; PEIXOTO JR., 2007)

3.3.2 Poder disciplinar sobre o corpo portador de lepra: corpos dóceis, uma