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Poema: posse secreta, autoria de muitos

Fabre destaca, com base em pesquisa etnográfica de Hermínio Lafoz, que qualquer pesquisa sobre magia, nas sociedades atuais dos Pirineus, esbarra no livro e em seus poderes (Fabre, 2001, p. 207). O livro de magia, nesse contexto social, assim como no final do século XIX, é uma forma de ingresso no mundo das

metamorfoses, portanto, decifrar sua leitura é ter acesso ao universo do interdito, do transcendente, que se opõe à leitura escolar:

O livro de magias proibido parece, portanto, estar situado nos antípodas do livro cujo uso a escola e os grandes leitores consagram. Mas a oposição resolve-se se considerarmos que as condições de acesso à leitura, tais como podemos reconstituí-las para os últimos anos do século XIX, interpõem-se entre o saber e o aprendizado distâncias que, às vezes, equivalem a um interdito. Com efeito, a escola jamais é acessível a todos. (FABRE, 2001, p. 210)

Fabre ressalta também que, nos anos finais do século XIX, nem todos os que liam escreviam. Os leitores das vigílias, por exemplo, provavelmente escrevessem sua correspondência comercial, mas os leitores de livros mágicos talvez não o fizessem. O privilégio da escrita, entre os leitores de livros mágicos, era também ele um ritual mítico. Aquele que possuísse a escrita mágica adquiria o privilégio de possuir a própria magia. A escrita mágica se converte, assim, no dizer do autor, em talismã, muitas vezes atado ao corpo, como as orações envoltas em breves-amuletos. A escrita mágica converte-se em escrita guardada, proibida, mas poderosa:

O privilégio que protege seu possuidor é, em princípio, manuscrito de próprio punho ou pelo “adivinho” que consulta, mas, nesse caso, não deve abrir o saquinho que o contém e, ainda menos, decifrar a oração. É por isso que as mulheres costuram “em segredo” esses talismãs escritos na dobras das roupas quando um homem ia “tirar a sorte”, partia em viagem ou ia para a guerra. O texto age porque foi copiado, mas a leitura furtiva corre o risco de fazê-lo voltar-se contra seu beneficiário, salvo se o recopiar por sua vez. Não se prestou atenção suficiente a essas regras, que, no entanto, somente elas, permitem compreender a presença, ao lado dos livros malditos de magia, dos “cadernos secretos” que recolhem receitas, invocações, conjurações em partes idênticas. Porém, escritos pela mão do “adivinho” ou do “curandeiro”, esses textos, longe de possuí- lo, tornam-se os instrumentos dóceis de sua magia. Portanto, é pela escrita que nos apossamos da força do escrito. “Domar” o livro é copiá-lo, esta prescrição é apenas a consagração de uma prática que, em determinada época, foi generalizada” (FABRE, 2001, p. 217).

Ainda segundo Fabre (2001), para inculcar a escrita, a escola utilizava a técnica da cópia. Os que serviam o exército costumavam fazer “cadernos de canções”. Se o recruta não dominasse bastante a escrita, apelava a um “escrivão”

e depois assinava no final. A sintaxe desses cadernos era a oral. Diz o autor: “A cópia, como vimos, neutraliza os riscos envolvidos pela leitura de certos livros, assegurando, ao mesmo tempo, a incorporação totalmente dominada da coisa escrita que, de agora em diante, qualifica seu copista” (Fabre, 2001, p. 220).

Para o grupo de pré-adolescentes estudado, copiar também representa possuir e essa posse está circunscrita ao espaço “mágico” do privado, lugar dos segredos, dos amores, das buscas e das transgressões da juventude, das mudanças de pensamento. Nesse sentido, a concepção de autoria, tal como a entendemos nos dias de hoje, pouco é evidenciada: o texto é copiado pelo que representa do universo jovem, seja ele criado de próprio punho, por algum colega, familiar, ou ouvido/lido por aquele que escreve, e ler significa a posse “mágica” dos sentimentos contidos no texto. Sobre o ato de ler, Aguiar (2004) destaca que:

Quando lemos, o que há de concreto diante de nós é o texto escrito, a mensagem do poeta. Ao nos adentrarmos em suas palavras, nos apossamos do sentimento que elas contêm e o que era invisível e comum na vida cotidiana assume nova dimensão e nos provoca, isto é, passamos a ver o mundo com outros olhos e a compreendê-lo mais atentamente (AGUIAR, 2004, p. 19).

Dos quatorze alunos que responderam às questões, doze deles não sabiam dizer a autoria dos poemas que registraram no questionário (pergunta 6 do Apêndice C), embora os tenham considerado textos importantes. Para eles, é o registro escrito do texto que lhe confere a autoria e legitima a posse do que está escrito. Ele passa a ser de quem o registra, ou seja, dos próprios pré- adolescentes. Como os recrutas em seus cadernos de canções (Fabre, 1996), esses pré-adolescentes registram “seus” poemas com uma escrita que se aproxima do oral: “O rosa por que choras teu amor foi perdido o foi abandonadas. O rosa porque chora” (J., 12 anos).

Dessa forma, um mesmo poema é de um indivíduo através da escrita, depois de ser de muitos através da fala. Por transitarem entre a recepção individual e a coletiva, não é de se estranhar que os poemas registrados, quer

ouvidos, quer lidos, quer “criados” pelas crianças, sejam, em sua maioria, de tradição popular (quadras, trava-línguas e ditos populares) que, de certa forma, mesmo sem estarem associados diretamente a uma melodia (como o estão as cantigas), aproximam-se do que Spina (1982) classifica como poesia primitiva.

O referido autor identifica como poesia primitiva não só a dos povos pré- letrados, mas a que está ligada ao canto e que é indiferenciada, anônima e coletiva. Essa caracterização que Spina fez de poesia primitiva nos é muito interessante, pois permite aproximar a lírica medieval, matriz de várias cantigas folclóricas conhecidas das crianças, a quaisquer textos de vinculação com o canto. Para Spina, “a poesia primitiva é uma poesia de caráter coletivo, porque representa os anseios da coletividade e está intimamente ligada ao modus vivendi dessas comunidades(...)” (Spina, 1982, p.2). Ressaltamos que esse caráter coletivo aparece também nos “poemas” (quadras, trava-línguas, ditos populares) registrados pelas crianças. Algumas das quadras transcritas, inclusive por mais de uma criança, foram:

Napoleão com sua espada Conquistou uma nação. Você com seu jeitinho Conquistou meu coração. (A ., 12 anos e C., 11 anos) Voa, voa, andorinha, Nesse mundo sem fim, Vá dizer a _________ Que não se esqueça de mim. (K., 12 anos)

A rosa é linda, Você é mais ainda; A rosa é bela, Você é mais que ela. (T., 11 anos)

Spina (1982) faz ainda um levantamento dos traços próprios da poesia primitiva, dos elementos formais que presidem ao nascimento inicial da poesia, no dizer do autor. São eles: a repetição, o refrão, o paralelismo, a aliteração, a assonância, a rima e a anacruse. Observamos esses elementos nas brincadeiras

infantis em forma de poemas e em poemas de tradição popular, tais como os registrados pelo grupo que respondeu ao questionário.

Por assumir um caráter oral, o conceito de poesia, para os pré-adolescentes estudados, não passa graficamente pela disposição do poema em versos e estrofes, como é visível nos trechos a seguir, duas versões da já citada quadra popular “Napoleão com sua espada”:

(A.,12 anos)

Ao definirem poesia (questão 1), os participantes da oficina destacam a rima como condição essencial do texto poético. Ao escreverem poemas que lhes vinham de memória (ou de autoria), na questão 6, muitos deles não dispuseram seus textos em forma de verso. Ao registrarem a presença da rima em seus textos, mas não os escreverem em versos e estrofes, os pré-adolescentes estudados evidenciaram ter noção oral do que seja um verso, noção essa traduzida pelo seu limite sonoro: a rima.

Os registros de poemas feitos por eles seguem as características de formas poéticas populares, o que também evidencia uma noção oral de poema. Foram escritos trava-línguas, em quadras populares (“Me chamaram de esquecida,/ Me mandaram te esquecer,/ Mas como sou esquecida,/ Me esqueci de te esquecer” - R., 12 anos) e provérbios (“Mais vale uma pomba na mão do que duas voando” – F. e L., 10 anos; “Se o homem fosse dinheiro, o mundo estaria cheio de notas falsas” – I., 11 anos: A nossa amizade nunca vai ter um ponto final e sim muitas vírgulas” – G., 12 anos).

Poesia, para os pré-adolescentes estudados, é também o espaço mágico, secreto, das vivências humanas, trazido por textos coletivos, como os de tradição oral. É para eles, portanto, posse secreta, escritos de agendas, canções de memória, código comum copiado de mão em mão. Conhecer as várias concepções que os pré-adolescentes têm acerca do que é poesia e poema é importante para que se desenvolvam atividades de mediação de leitura e produção de textos poéticos. No caso do grupo que respondeu às questões, poesia é um texto que representa sentimentos universais -por isso a grande incidência de registros de formas de domínio coletivo- através de combinações melódicas. Há freqüentemente nessa conceituação um caráter oral.

Por terem marca de oralidade, os poemas de folclore puro trazem uma dupla vinculação com o corporal: através da voz (quer falada, quer cantada) e do

corpo propriamente dito (em função de lhes estar implícita uma performance, como no caso das cantigas de roda, por exemplo). Assim, atividades relacionadas à voz e ao corpo apresentaram-se como um bom começo para a iniciação de criança de dez a doze anos na leitura e na produção de poesia. Um caminho inicial foi identificar que procedimentos metodológicos poderiam recuperar a voz perdida dos poemas para mediação da leitura e da produção desses entre crianças de dez a doze anos de idade.

4 UMA VIAGEM ATRAVÉS DA POESIA: O POEMA NA SALA DE AULA

Meu poema é porto, perto de onde corre o vento... pedaço.

Meu poema, pátria em partes, se despedaça em ilhas- -mares.

Meu poema: vela desfiada aos pares!