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Poesias negritudinistas sobre a desvalorização da criança angolana

CAPÍTULO III: ANTÓNIO JACINTO: A POESIA COMO FORMA DE RESISTÊNCIA COLONIAL

3. Compreensão ideológico-literária das poesias negritudinistas jacintianas

3.4. Poesias negritudinistas sobre a desvalorização da criança angolana

Os poemas jacintianos que se centram na criança angolana também certificam a incomodidade do poeta perante o sistema colonial português. António Jacinto mostra-se preocupado não apenas com a condição social do contratado e dos maus-tratos da mulher negra, mas com o povo angolano no seu todo. A criança é o elo mais fraco em todas as sociedades, a nível mundial, e os seus direitos só foram muito recentemente reconhecidos, pela ONU, no pós-II Guerra Mundial. Na prática, a fragilidade da criança e o facto de não votar tornam-na vítimas de vários abusos. O colonialismo era uma realidade particular, adversa e dolorosa para as crianças africanas, nomeadamente as angolanas. Nestes poemas, assim como em outros, a linguagem humana não é utilizada unicamente com fins estéticos. Serve, portanto, para criticar e exprimir a realidade da criança do musseque e da sua gente, como é caraterística da Negritude. Destes poemas, cita-se “Pântano”, também denominado “Uma história do Musseque”, evidenciando a valorização das histórias tradicionais africanas, escrito em 1950341, e “Vadiagem”, datado de

1952342. Os títulos destes dois poemas encerram uma certa simbologia, apontando para os cosmos

da desgraça e do sofrimento. Assim sendo, ambos os poemas abordam os problemas vivenciados pela criança negra nos bairros de areia. O poema “Pântano” está dividido em duas partes. Na primeira, o “eu” lírico descreve os desejos amorosos da “Minina feiosa” como prenúncio de desgraça:

Estava cheia de desejos / e não fazia nada / ficava desgostosa / a pensar aí a imaginar beijos / e caricias no seu corpo de abandonada // Minina feiosa / cheia de desejos / não fazia nada // Nos olhos feios piquininos / havia sempre uma luz quente / e olhando os mininos da rua / ficava com ânsia ardente / de ser mãe deles – e olhava-se no espelho nua // Era desejo só desejo / a tortura a rasgar o seu corpo / porque não lhe davam beijo / em todo corpo feio mas não morto343.

Há nestes versos a descrição crua da realidade, traduzida no uso da fala do musseque, procurando valorizar as histórias populares. Por isso, este poema «quase sempre toma uma posição perante a realidade social. Vemo-lo revoltado, ansioso, rejubilante por contribuir para a construção de uma vida harmoniosa entre os homens»344.

Na segunda parte do poema, a «minina feiosa / que estava cheia de desejos / agora virou quitata»345, ou seja, tornou-se prostituta. Tendo em conta as condições dos bairros de chapa, o

“eu” lirico critica a forma como se processa a prostituição:

Na sua casa entra gente e mais gente / seu corpo é pegado por mãos e mais mãos / seus olhos já não têm brilho ardente / e os seus beijos / já não são desejos //

341Cf. Ibidem, p. 45. 342Cf. Ibidem.

343Cf. Ibidem, pp. 28-29.

344Cf. Agostinho Neto, “Introdução a um colóquio sobre poesia angolana”, in Mensagem, ano III, nº 5-6

(1959), apud Pires Laranjeira, Negritude Africana de Língua Portuguesa, Texto de Apoio (1947-1963), p. 51.

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O caminho é livre – não tem roteiro, / caminha quem quer e traz dinheiro / - No Musseque tem uma mulata / é coisa barata // A solidão, a solidão continua346.

Estes versos apontam pois para o duplo sofrimento das mulheres, que, obrigadas pela pobreza e pela distância de seus companheiros, se sujeitam à prostituição. Fenómeno sempre associada aos musseques.

Do mesmo modo, o “eu” lírico do poema “Vadiagem” satiriza a vida imoderada das crianças do musseque quando fossem ao asfalto, isto é, à ilha de Luanda, onde eram obrigadas a “outrar-se”, para usar a expressão de Salvato Trigo347, ou seja, tornar-se outra pessoa. Crianças

destinadas ao fracasso, cujas vidas se consubstanciam unicamente em música, dança, entre outros:

Naquela hora já noite / quando o vento nos traz mistérios a desvendar / musseque em fora fui passear às loucuras / com os rapazes das ilhas: // Uma viola a tocar / o Chico a cantar / (que bem que canta o Chico) / e a noite quebrada na luz das nossas vozes // Vieram também / vieram também / cheirando a flor do mato / - cheiro grávido de terra fértil - / as moças das ilhas / sangue moço aquecendo / a Bebiana, a Teresa, a Carminda, a Maria348.

Os versos são de um fim erotismo, mostrando as carências sentimentais e sexuais de adolescentes dos musseques e como começam tais carências na ilha de Luanda. Com base ainda nos elementos destes versos, trata-se de uma poesia autenticamente angolana e ao mesmo tempo universal, independente do cânone literário colonial português. Neste sentido, vejamos o que afirma Filinto Elísio de Menezes:

ora, uma literatura é independente se os motivos que a ocupam possuem caraterísticas próprias e se os temas das suas criações traduzem alguma coisa que se identifique com as realidades do povo que a detém. […] Para ser artista angolano, por exemplo, é necessário que a obra de arte criada contenha algo, de maneira que, ao apreciá-la, sintamos um pouco de ambiente angolano e da vida do seu povo349.

Na verdade, os versos da poesia jacintiana são a tradução e a interpretação da vida do povo angolano. Por exemplo, no excerto abaixo, o “eu” lírico por meio da figura feminina mostra a perdição da jovem que sai do musseque e vai até à ilha:

a Maria a dançar / (que bem que dança remexendo as ancas!) / E eu a querer, a querer a Maria / e ela sem se dar //… a Maria a bailar se aproximando / sangue a

346Cf. Ibidem, p. 30.

347Cf. Salvato Trigo, Ensaios de literatura comparada afro-luso-brasileira, p. 55. 348Cf. António Jacinto, Poemas, p. 31.

349Cf. Filinto Elísio de Menezes, “Apontamento sobre a poesia de Angola. Maurício Gomes e Viriato da Cruz –

precursores de uma poesia em formação”, in Separata de Cultura, Luanda, Sociedade Cultural de Angola, 1949, apud Pires Laranjeira, Negritude Africana de Língua Portuguesa, Texto de Apoio (1947-1963), p. 90.

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pulsar / mocidade correndo / a vida / peito com peito / beijos e beijos / as vozes cada vez mais bêbadas de liberdade // A Maria se chegando / A Maria se entregando / Uma viola a tocar / e a noite quebrada na luz do nosso amor…350.

De acordo com este excerto, verifica-se uma poesia vibrante, realista e constituída de versos livres. Segundo Fernanda Santos, «a liberdade dos versos propunha uma nova modernidade literária na escrita, na temática e na estética, tendo como um dos principais membros desta modernidade António Jacinto»351. É também a libertação sexual das raparigas

angolanas dos musseques que aqui se sugere, presente na reiteração de expressões como “peito com peito” e “beijo com beijo”, culminando na expressão “ noite quebrada na luz do nosso amor”.

Dos poemas até aqui analisados, com base na visão prismática de Salvato Trigo, a referência ao musseque é um dado dominante e não exclusivo. Todavia, apresenta três dimensões:

primeiro, como apêndice social colonial, onde se desenvolveu paulatinamente um proletariado que fecundou as sementes anticoloniais que a própria colonização gerava em si. Segundo, como cadinho do português que servia naturalmente de língua de comunicação, e que, usado por falantes de diferentes regiões etnolinguísticas, seria naturalmente sujeito a influências segmentais e suprassegmentais diversas que lhe moldaram a face caraterística da fala musséquica, ponto de partida para o discurso verbal das literaturas africanas de expressão portuguesa. Terceiro, como instituição cultural e socioeconómica, fonte de inspiração para textos poéticos ou narrativos denunciadores do regime colonial de que o musseque era uma exemplar vítima, enquanto lugar de exílio ou de desterro para gentes despaganizadas em processo de distanciação dramática das suas origens civilizacionais352.

Com certeza, nos poemas jacintianos o musseque é apresentado como o paradigma da assimetria social; é o ponto de partida para criticar a sociedade colonial portuguesa. Serve também de inspiração literária na recriação do sistema linguístico português: é o lugar em que a língua do colonizador se africaniza e se «processa no interior do instrumento comunicativo, num processo transformativo e nativizante»353.

350Cf. António Jacinto, Poemas, p. 32.

351Cf. Fernanda Santos, “Um arrojo na desmedida: a centralidade de Angola em António Jacinto e Ruy

Duarte de Carvalho”, in Ana Paula Tavares, Fábio Maria da Silva e Luís Pinheiro (org.), António Jacinto e a

sua época: A modernidade nas literaturas africanas de língua portuguesa, p. 160.

352 Cf. Salvato Trigo, Ensaios de literatura comparada afro-luso-brasileira, p. 56. 353Cf. Ana Mafalda Leite, Oralidade e Escritas nas Literaturas Africanas, p. 34.

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