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2. ESTADO, TERRITÓRIO, AMBIENTE E POLÍTICAS PÚBLICAS: O ORDENAMENTO TERRITORIAL E SUA INTERFACE

2.2. Política e ordenamento territorial

Retomando as ideias da seção anterior, percebemos que existe uma ligação intrínseca do Estado com o território. Essa ligação pode ser vista por meio das políticas públicas e seus instrumentos. De todo modo, sem desconsiderar essa assertiva, podemos refletir sobre o territorial em si mesmo como uma dimensão do planejamento, o que nos conduz à discussão acerca

do ordenamento territorial, e como um objeto de política pública, o que nos conduz à discussão sobre política territorial.

Como vimos até aqui, a atuação estatal tem necessariamente uma

dimensão territorial, o que elucida o debate a respeito das políticas públicas12.

Tal dimensão pode ser encontrada já nas ideias de Ratzel. No entanto, o autor propõe ainda falar especificamente em política territorial. Costa (1992) destaca que para Ratzel,

os Estados podem formular e executar políticas gerais e políticas

territoriais.

No primeiro caso trata-se de políticas em que o território é tomado apenas como um a priori, uma base, um suporte sobre o qual elas se desenvolverão. No segundo, ao contrário, trata-se de apreensão do território como elemento fundamental. (COSTA, 1992, p. 35).

Como visto na seção anterior, uma dimensão territorial perpassa as reflexões de Ratzel a respeito da ação estatal sobre a sociedade por meio de políticas. Todavia, como é possível ver na citação anterior, para além de políticas gerais que apenas se realizariam no território, as políticas territoriais, na concepção de Ratzel, iriam além, ao tomar o território como “elemento fundamental”. Este é um primeiro ponto para se pensar uma definição de política territorial.

Corroborando tal entendimento do papel do Estado por meio de políticas territoriais, Antônio Carlos Robert Moraes (2005) considera que:

O grande agente da produção do espaço é o Estado, por meio de suas políticas territoriais. É ele o dotador dos grandes equipamentos e das infra-estruturas, o construtor dos grandes sistemas de engenharia, o guardião do patrimônio natural e o gestor dos fundos territoriais. Por estas atuações, o Estado é também o grande indutor da ocupação do território, um mediador essencial, no mundo moderno, das relações sociedade-espaço e sociedade-natureza. (MORAES 2005, p. 43).

Na sua reflexão acerca de política territorial, Joan-Eugeni Sanchez, citado por Aldomar Rückert, ressalta os enfoques estratégicos para essa noção, que comporta indiretamente o Estado:

A Política Territorial se configura pelo conjunto de enfoques estratégicos, a médio e longo prazo, assim como pelas correspondentes formulações de atuação, dirigidas a intervir sobre o

12Para um paralelo entre as noções de política territorial e ordenamento territorial, ver Freitas

território, a fim de que assuma as formas que sejam adequadas ao conjunto dos interesses que controlam o poder político. (SÁNCHEZ

apud RÜCKERT, 2010, p. 19).

Percebemos então que pensar em política territorial é pensar sobre o expressivo papel do Estado no território, seja na apreensão do território como elemento fundamental, em Ratzel (COSTA, 1992), no grande agente na produção do espaço, em Moraes (2005), ou no conjunto dos interesses que controlam o poder político e intervêm estrategicamente no território, em Sánchez (RÜCKERT, 2010).

Dialogando com esses recortes das idéias de Ratzel, Moraes e Sanchez, entendemos política territorial como “o conjunto das orientações gerais que guiam a ação estatal no seio da dinâmica territorial, prevendo ações continuadas a partir de uma visão estratégica que toma o território como elemento fundamental” (FREITAS, 2013, p. 144). Essa breve discussão sobre política territorial remete a outra também bastante ampla relacionada ao planejamento e às políticas públicas: o ordenamento territorial.

Moraes (2005) lembra que o debate acerca do ordenamento territorial remonta à geografia regional francesa, na década de 1960, sobretudo a escola do aménagement du territoire. De acordo com o autor, tal escola embasou o planejamento não somente na França, mas em outros países europeus e latino-americanos. Segundo o autor, o aménagement du territoire visava “utilizar o arsenal teórico e técnico desenvolvido para a análise regional em programas de planejamento e estímulo ao desenvolvimento, tendo como objetivo a articulação das diferentes políticas numa base territorial” (MORAES, 2005, p. 44).

Como destacam Leonor Ferreira Bertone e Neli Aparecida Mello (2006), de fato, há diferentes concepções de ordenamento territorial relacionadas às experiências desenvolvidas em vários países, sobretudo na América Latina e Europa, o que permite afirmar que essa noção tem um forte sentido contextual (FREITAS, 2013, p. 145).

Tomando como base uma revisão dos casos de experiências de ordenamento territorial na América Latina, Cabeza (2002) percebe uma polissemia na interpretação desta noção. Segundo o autor:

Quanto à natureza, destaca-se a compreensão como uma disciplina científica, como uma técnica administrativa, um estudo interdisciplinar, uma política ou um conjunto de políticas, um caminho, método ou pesquisa; um processo integral, uma estratégia de desenvolvimento, um conjunto de ações político-administrativas, entre outras. (CABEZA, 2002, tradução nossa).

Nesse sentido, Rückert (2005) afirma que as discussões em torno do tema chegariam a constituir “uma disciplina bastante nova e com conteúdos não muito bem definidos”. Na visão do autor, o ordenamento territorial “pode ser visto, primeiramente, como um ‘corte transversal’ que afeta a todas as atuações públicas com incidência territorial, dando a elas um tratamento integrado” (RÜCKERT, 2005, p. 34).

Concebendo tal entendimento de maneira ampla a partir do contexto brasileiro, Moraes considera que:

O ordenamento territorial diz respeito a uma visão macro do espaço, enfocando grandes conjuntos espaciais (biomas, macrorregiões, redes de cidades, etc) e espaços de interesse estratégico ou usos especiais (zona de fronteira, unidades de conservação, reservas indígenas, instalações militares, etc). Trata-se de uma escala de planejamento que aborda o território nacional em sua integridade, atentando para a densidade da ocupação, as redes instaladas e os sistemas de engenharia existentes (de transporte, comunicações, energia, etc) [...]. O ordenamento territorial busca, portanto, captar os grandes padrões de ocupação, as formas predominantes de valorização do espaço, os eixos de penetração do povoamento e das inovações técnicas e econômicas e a direção prioritária dos fluxos (demográficos e de produtos). Enfim, ele visa estabelecer um diagnóstico geográfico do território, indicando tendências e aferindo demandas e potencialidades, de modo a compor o quadro no qual devem operar de forma articulada as políticas públicas setoriais, com vistas a realizar os objetivos estratégicos do governo. (MORAES, 2005, p. 45).

Também analisando a partir do contexto brasileiro, mas com uma visão ampla, Costa (2005) destaca a prerrogativa do papel do Estado e a importância da escala nacional para o ordenamento territorial. Segundo ele: “O tema do ordenamento territorial inspira uma reflexão sobre a relevância, os limites e a eficácia das Políticas Públicas formuladas e operadas a partir de estratégias e objetivos especificamente nacionais.” (COSTA, 2005, p. 55).

Dialogando com esses autores, percebemos que falar em política territorial ou ordenamento territorial é falar também da ligação simbiótica do Estado com o território.

É possível inferir uma visão acerca do ordenamento territorial também em Gottmann (2012 [1975]), quando o autor discorre sobre a organização do território, o que, segundo aponta, tornou-se uma preocupação central do pensamento e da ação política. O autor entende o ordenamento territorial como “um ‘acordo justo’ para todas as partes do território nacional” (GOTTMANN, 2012 [1975], p. 536), o que se relaciona à ideia de Ratzel acerca da “coesão interna do território” (COSTA, 1992, p. 38).

Como apresenta Costa, segundo Ratzel:

[...] todos eles (os Estados, na sua estruturação territorial) procurarão articular internamente o seu espaço de domínio, segundo os riscos potenciais de cada uma das suas partes [...]. Ligado à questão anterior, o processo de diferenciação política do organismo estatal- territorial constitui-se num fator essencial nas políticas e na gestão do território. (COSTA, 1992, p. 41).

Além disso, Costa também ressalta que, para Ratzel “o que importa nas políticas territoriais dos Estados é formular e pôr em prática estratégias destinadas a manter a todo custo o que chama de ‘coesão interna’ [do território]” (COSTA, 1992, p. 41), que pode ser lida como a articulação entre as diversas demandas e potencialidades (como ambientais, regionais, sociais e econômicas) que se apresentam no território.

Algo que está implícita no ideário de Ratzel acerca da “coesão interna” do território são as relações de poder que conduzem o “processo de diferenciação política” (COSTA, 1992, p. 41) dos territórios. Sobre essas relações de poder, segundo as ideias de Costa propriamente, “ordenar o território é pensar e atuar no conjunto das forças que modelam atualmente o desenvolvimento do país.” (COSTA, 2005, p. 58).

Cabe agora comparar essas ideias de Costa (1992, 2005), Ratzel (COSTA, 1992), Gottmann (2012 [1975]), Moraes (2005), Rückert (2005), Cabeza (2002), Bertone e Mello (2006), acerca de ordenamento territorial; com as ideias de Sánchez (RÜCKERT, 2010), Moraes (2005), Ratzel (COSTA, 1992) relacionadas direta ou indiretamente a política territorial. Toda essa discussão tem como alicerce a reflexão acerca do papel do Estado no território nacional tomado em seu conjunto, o que, como já apontamos em outro momento

é chave não só para a noção de política territorial, entendida como a orientação geral que guia a ação estatal a partir de uma visão estratégica do território enquanto elemento fundamental, mas também para a noção de ordenamento territorial, que diz respeito à ação do Estado sobre a dinâmica territorial visando a um cenário desejável. (FREITAS, 2013, p. 159).

Com base nessas colocações, afirmamos agora que é possível se discutir tanto uma política territorial “strincto sensu” quanto o ordenamento territorial “lato sensu”, mas, como já destacamos em outro momento, ambas as noções são complementares (FREITAS, 2013).

Acerca da noção de ordenamento territorial, a ideia defendida por nós neste capítulo é que ordenar o território requer articular políticas públicas e manter a coesão interna do território, valendo-se de estratégias no sentido da mediação de conflitos que ocorrem no território, seja entre os atores diretamente, seja entre as instituições e esferas político-administrativas envolvidas.

Ademais, seria rica para essa discussão uma reflexão a partir do conceito de território usado (SANTOS, 2005 [1994]). Como já apresentamos anteriormente:

ela [a categoria território usado] pode contribuir para a coesão porque destaca a dinâmica do território. De mais a mais, pode contribuir com a articulação das políticas porque possibilita trabalhar com os usos que são objetos de cada política. Pode contribuir ainda para a negociação entre agentes-atores e a compatibilização de seus interesses quanto aos usos do território. Em síntese, o território usado viabiliza o diálogo a ser promovido pelo Estado Nacional. (FREITAS, 2013, p. 161).

Destarte, afirmamos agora que o ordenamento territorial teria como prerrogativa articular políticas públicas – assim como seus instrumentos – a partir de uma visão do território usado e manter a coesão interna em relação aos distintos usos do território.

Seja na senda da discussão sobre ordenamento territorial, seja na senda da discussão sobre política territorial, a dimensão territorial nos convida a pensar a respeito da sua relação com outra dimensão em termos de planejamento, a dimensão ambiental. É para ela que se volta a próxima seção (2.3).

2.3. Planejamento e política ambiental: as áreas protegidas