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De fato, nos últimos vinte anos, com a criação do Programa Nacional de Fortalecimento à Agricultura Familiar (PRONAF), que se institui como uma série de políticas públicas para esta categoria de produtores, o conceito de agricultura familiar se materializa na legislação, nas ciências sociais, o que permite o seu reconhecimento social e o legitima politicamente na sociedade.

Pela primeira vez na história das políticas públicas de âmbito nacional foram destinados recursos públicos específicos do sistema nacional de crédito rural para a categoria de agricultores familiares, os quais, tradicionalmente, foram excluídos do sistema público de financiamento das suas atividades, embora constituam mais de 80% dos estabelecimentos agropecuários do país. (MATTEI, 2014).

Sem desconhecer os intensos embates teóricos atuais sobre a sua pertinência, heterogeneidade de tipologia de agricultores, adota-se neste texto o conceito expresso nos seguintes marcos legais que instituem a categoria agricultores familiares:

a) Decreto nº 1.946, de 28 de junho de 1996, que cria o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF (BRASIL, DECRETO, Nº 1.946, 1996);

b) A Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006 que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais (BRASIL, LEI Nº 11.326).

c) Decreto nº 9.064, de 31 de maio de 2017 que dispõe sobre a Unidade Familiar de Produção Agrária, institui o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar e regulamenta a Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006, que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e empreendimentos familiares rurais (BRASIL, DECRETO Nº 9.064, 2017):

Art. 1º As políticas públicas direcionadas à agricultura familiar e aos empreendimentos familiares rurais deverão considerar a Unidade Familiar de Produção Agrária - UFPA, os empreendimentos familiares rurais e o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar - CAF.

Art. 2º Para os fins deste Decreto, considera-se:

I - Unidade Familiar de Produção Agrária - UFPA - conjunto de indivíduos composto por família que explore uma combinação de fatores de produção, com a finalidade de atender à própria subsistência e à demanda da sociedade por alimentos e por outros bens e serviços, e que resida no estabelecimento ou em local próximo a ele;

II - família - unidade nuclear composta por um ou mais indivíduos, eventualmente ampliada por outros que contribuam para o rendimento ou que tenham suas despesas atendidas pela UFPA13.

III - estabelecimento - unidade territorial, contígua ou não, à disposição da UFPA, sob as formas de domínio ou posse admitidas em lei;

IV - módulo fiscal - unidade de medida agrária para classificação fundiária do imóvel, expressa em hectares, a qual poderá variar conforme o Município, calculada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA; V - imóvel agrário - área contínua, qualquer que seja a sua localização, destinada à atividade agrária;

VI - empreendimento familiar rural - forma associativa ou individual da agricultura familiar instituída por pessoa jurídica, admitidos os seguintes arranjos: a) empresa familiar rural - aquela constituída com a finalidade de beneficiamento, processamento ou comercialização de produtos agropecuários, ou ainda para prestação de serviços de turismo rural, desde que formada exclusivamente por um ou mais agricultores familiares com inscrição ativa no CAF;

b) cooperativa singular da agricultura familiar - aquela que comprove que, no mínimo, sessenta por cento de seus cooperados são agricultores familiares com inscrição ativa no CAF;

c) cooperativa central da agricultura familiar - aquela constituída exclusivamente por cooperativas singulares da agricultura familiar com inscrição ativa no CAF; e d) associação da agricultura familiar - aquela que comprove a totalidade dos associados com personalidade jurídica e com inscrição ativa no CAF e que possua o mínimo de sessenta por cento das pessoas físicas associadas com inscrição ativa no CAF ou demonstre ambas as situações no caso de composição mista.

Art. 3º A UFPA e o empreendimento familiar rural deverão atender aos seguintes requisitos:

I - possuir, a qualquer título, área de até quatro módulos fiscais;

II - utilizar, no mínimo, metade da força de trabalho familiar no processo produtivo e de geração de renda;

III - auferir, no mínimo, metade da renda familiar de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento; e

13 Dando abertura para interpretar que estariam incluídas nesta interpretação igualmente as famílias

IV - ser a gestão do estabelecimento ou do empreendimento estritamente familiar. § 1º O disposto no inciso I do caput não se aplica à UFPA e ao empreendimento familiar rural compostos por extrativistas, pescadores, povos indígenas, integrantes de comunidades remanescentes de quilombos e demais comunidades tradicionais. § 2º Na hipótese de pescadores artesanais, de aquicultores, de maricultores e de extrativistas que desenvolvam tais atividades não combinadas com produção agropecuária, para fins do cumprimento do inciso I do caput, a área do estabelecimento será considerada igual a zero.

§ 3º Ato da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário disporá sobre a composição da renda familiar para fins do disposto no inciso III do caput.

Art. 4º Fica instituído o Cadastro Nacional da Agricultura Familiar - CAF, destinado à identificação e à qualificação da UFPA e do empreendimento familiar rural.

[...]

Art. 6º O CAF substituirá a Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - Pronaf para fins de acesso às ações e às políticas públicas destinadas à UFPA e aos empreendimentos familiares rurais. Parágrafo único. Até que se conclua a implementação do CAF, a Declaração de Aptidão ao Pronaf permanece como instrumento de identificação e de qualificação da UFPA e dos empreendimentos familiares rurais (BRASIL, 2017c)

Embora muito recentes na história da agricultura brasileira, é relevante destacar que estes determinantes legais são construídos e implementados em governos com diferentes matizes ideológicas, passando por Itamar Franco (1992- 1994), Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), Dilma Rousseff (2011-2016) e Michel Temer (2016-). A sua longevidade chega mesmo a indicar uma política de estado mais duradoura e, portanto, com maior potencial de impactar a estrutura produtiva, social e econômica da agricultura brasileira. Ainda que a lei, por si, não constitua uma política pública efetiva, sua existência evidencia que tensões no ordenamento da estrutura agrícola e agrária no país, atualmente, não puderam ser silenciadas ou ocultadas. O próprio fato de co- existirem duas instituições administrativas concorrentes no Governo Federal ocupadas com as questões agrícolas, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e o antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário, hoje, Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário é um sintoma da interpenetração conflituosa entre a política e as classes dos produtores no Brasil. O primeiro é responsável pelas questões relacionadas à agricultura patronal, ou o que se tem chamado de agronegócio, e a segunda, voltada para a agricultura familiar.

Sobre a atuação do atual governo, com demonstrações escancaradas de desmonte de políticas públicas, ainda se mantém uma incógnita como poderá orientar de fato a posição do estado em relação às políticas destinadas aos agricultores familiares. Na publicação oficial

do Plano Agrícola e Pecuário (PAP) e do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) para o ano agrícola 2017/18, há o anuncio de que devem ser disponibilizados 200 bilhões e 30 bilhões de reais para estas categorias de agricultores, respectivamente (BRASIL, 2017a; 2017b), valores um pouco superiores aos praticados nas últimas safras.

O crédito rural tem forte impacto na agricultura, demonstrado pelos volumes de recursos aplicados e público atendido. Na categoria familiar, atualmente, em torno de 4.350.000 agricultores familiares têm Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP) e mais de 5.400 associações e cooperativas que congregam estes agricultores têm DAP Pessoa Jurídica (BRASIL, 2017b).

Analisando o documento acima transcrito, percebe-se uma delimitação mais restritiva para a categoria dos agricultores familiares e pode-se afirmar que há retrocesso na legislação aprovada, equiparando-a à primeira tentativa de tratamento legal do assunto no Brasil, para uma realidade rural de mais de 50 anos atrás. O inciso III do Artigo 3º do documento condiciona a qualificação de agricultor familiar àquele que:

auferir, no mínimo, metade da renda familiar de atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento”. (BRASIL, 2017c).

Compare-se com o inciso II do Artigo 4 do Estatuto da Terra (LEI Nº 4.504, DE 30 DE NOVEMBRO DE 1964).

‘Propriedade Familiar’, o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros. Se se considerar que a pluriatividade14 das famílias de agricultores brasileiros, amplamente difundidas no país é estratégia constante de enfrentamento das dificuldades econômicas, bem como a diversidade das próprias famílias, exclui-se da categoria de agricultor familiar, por exemplo, o migrante sazonal que obtenha renda com este trabalho

14 Pluriatividade é a ocupação dos agricultores em trabalhos não-agrícolas no meio rural ou urbano

(GRAZIANO DA SILVA, 2002). Famílias de agricultores com ocupação em atividades tradicionalmente agrícolas podem desenvolver outras atividades como estratégia de complementação de renda por meio da venda da força de trabalho familiar, da prestação de serviços, ou de iniciativas internas a propriedade como o turismo rural, o artesanato, diversificação na produção e beneficiamentos de seus produtos. Essas estratégias representam características intrínsecas dos agricultores familiares e é uma característica histórica da agricultura brasileira (MACHADO, CAUME, 2008).

maior que o obtido em sua propriedade de subsistência na sua região de origem, casos comuns entre os trabalhadores temporários do café. Igualmente, são excluídos aqueles pequenos agricultores cujos membros familiares pluriativos obtenham renda em mesma proporção em outras ocupações exercidas como estratégia de segurança econômica diante das incertezas da renda agrícola, casos comuns dos pequenos e médios agricultores do café.

No entendimento de Navarro (2010), em que pese a enorme heterogeneidade das suas formas no território brasileiro e sua relevância social, a categorização da agricultura familiar na legislação deveria se ater apenas a sua principal e mais determinante característica que é a gestão do negócio por membro da própria família. Este é o critério prevalecente em outras partes do mundo, como na Europa e Estados Unidos. Todos os outros condicionantes soam desnecessários e arbitrários, servindo apenas para restringir o universo dos beneficiários das políticas públicas ao alcance da lei.

CAPÍTULO 2

SOBRE O PAPEL DO ESTADO NA CONSTITUIÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DO CAMPO

Se o Estado é forte ele nos massacra, se ele é fraco, nós perecemos15. (VALERY,1938, p. 24). Tradução nossa. A igualdade requerida na esfera pública é politicamente construída, já que na natureza humana o que encontramos é a diferença. (ARENDT, 2007, p. 227).

O Estado brasileiro constituiu-se, desde as suas origens, sob forte influência das classes dominantes rurais e foi instado a intervir no campo de diferentes formas e intensidade ao longo do tempo, por isso, contribui para a compreensão das feições contemporâneas do campo no Brasil o desvelamento mais acurado destas relações. No país, o mundo rural sempre foi palco de forças conflituosas nas formas de posse e uso do vasto território, na predominância da produção destinada aos mercados externos em detrimento do consumo interno, na diversidade e desigualdade social e econômica das diferentes regiões e nas conflituosas forças políticas geradas, sob estas condições.

O Estado e a sociedade brasileira se fundaram e cresceram sob a égide de uma economia essencialmente agrícola e exportadora. Muito tardiamente essa economia se torna diversa e complexa, sem que a agropecuária, contudo, deixe de delinear densamente as feições econômicas, sociais e culturais do país. Se se ativer, a indicadores econômicos apenas, constata-se que, em 2016, o campo no Brasil participou com 14% do PIB total, levando-se em conta a produção agropecuária. Se somados à participação da agroindústria de transformação e máquinas, esta participação representou 23,1%, 48% das exportações totais e 38% dos empregos gerados no país estão ligados e este setor (IBGE, 2017, PNAD, 2016).