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2 CAIXA DE FERRAMENTAS: INSTRUMENTALTEÓRICO-METODOLÓGICO

2.4 POLÍTICAS PÚBLICAS E EDUCAÇÃO

O estudo da política, num sentido ampliado, não se restringe à análise das estruturas, normatizações e ações diretamente relacionadas ao Estado. A política é o campo de manifestação do exercício do poder, onde as estratégias convertem-se em práticas de governamento. Não se trata, portanto, de analisar operações de submissão dos sujeitos, uma vez que os atores políticos – a população em geral – são sujeitos ativos. A política, compreendida como governamento, abrange os ―modos de ação mais ou menos refletidos e calculados, porém todos destinados a agir sobre as possibilidades de ação dos outros indivíduos‖ (FOUCAULT, 1995, p. 244).

Esta noção de política é indissociável das manifestações de resistência dos atores. Por isso, é imprescindível conhecer os dispositivos de poder que atuam na sociedade, que agem sobre a ação da população. De acordo com Foucault (2011a, p. 149-150), ―nada mudará na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, quotidiano, não forem modificados‖. Estes mecanismos de poder tomam a forma dos dispositivos que atuam estrategicamente instaurando discursos e capturando desejos de mudança dos atores.

Pensar a política em termos de governamento torna a análise mais ampla e complexa. Esta premissa, portanto, refuta a classificação dos discursos como manifestações ideológicas de um poder central, uma vez que o discurso é um compartilhamento de enunciados que permite o exercício do poder. A crítica que se faz à política, nesta perspectiva, não diz respeito aos conteúdos ideológicos e à busca de uma ideologia justa. Por isso, a crítica às relações existentes está relacionada à possibilidade de mudança da política de produção de verdade, como afirma Foucault (2011a, p. 14):

25No original: ―Criticism is a matter of flushing out that thought and trying to change it: to show that things are

not as self-evident as one believed, to see that what is accepted as self-evident will no longer be accepted as such. Practicing criticism is a matter of making facile gestures difficult‖.

O problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da verdade. O problema não é mudar a "consciência" das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade.

Neste aspecto, seria possível pensar numa aproximação entre a concepção foucaultiana de resistência e as linhas de pensamento que defendem a radicalização da participação política da sociedade nos processos de regulação social. Esta aproximação supõe identificar o mercado como instância de circulação de regras de verdade e reconhecer sua capacidade de regulação social, isto é, seus efeitos de poder. A preocupação expressa por David Harvey (2001, p. 112) sobre a necessidade de apreender os ―processos político- econômicos‖ do capitalismo global não é um aspecto ausente no conjunto das interpretações pós-estruturalistas, como afirma o autor. Existem diversas tendências teóricas que compõem o pós-estruturalismo, mas certamente a análise do discurso foucaultiana não pode ser acusada de ignorar as relações que ocorrem na dimensão macro. Entretanto, a intensidade e o alcance dos efeitos destes processos sobre a população não justificam a preponderância de um discurso alternativo, seja ele de matiz revolucionário, reformista ou conservador.

A análise do discurso pode e deve investigar o discurso das determinações estruturais, inclusive a constituição da Economia como instância privilegiada de legitimação de certas práticas de governamento. A diferença está na perspectiva em que os ―processos político-econômicos‖ são interpretados. Eles são compreendidos como práticas discursivas e não como determinações sociais. A análise do discurso, ao estudar as relações de poder, não visa instituir um projeto alternativo para acabar com tais relações, o que é considerado impossível – tanto numa democracia avançada como numa ditadura, as práticas de governamento produzem composições diferentes de relações de poder. Por outro lado, as estratégias de governo centradas na economia global são acompanhadas de práticas de resistências, que estão diretamente ligadas aos efeitos da globalização.

A dominação econômica no contexto da globalização econômica é um aspecto que tem sido muito enfatizado por certas correntes das ciências políticas, mas em termos da análise do discurso foucaultiana não faz sentido pensar num processo unilateral. Isto porque os aspectos político-econômicos correspondem aos efeitos das práticas discursivas, sendo estes efeitos produzidos a partir da rede de relações de poder. Invés de pensar numa sobredeterminação econômica da política, compreende-se que a economia, enquanto instância

de ordenamento e de circulação de determinados enunciados, participa do processo de dispersão discursiva. Deste modo, a governação neoliberal26 é identificada a partir dos seus efeitos sobre a população, e somente assim, adquire materialidade. O gerencialismo, como estratégia de governamento, é objeto da análise do discurso na medida em que age sobre a ação da população.

O neoliberalismo, por conseguinte, não existe sem a ação dos atores, que compartilham um regime de verdade. Todavia, o neoliberalismo não é o único discurso, assim como o gerencialismo não é a única matriz estratégica existente. A impressão de um consenso global que torna o gerencialismo uma opção de governo viável e justificável é apenas um dos efeitos produzidos em meio ao regime de verdade instaurado – e compartilhado – na atualidade.

Tendo isto em vista, retoma-se o problema da reconceptualização. A apropriação de certos termos e sua reconversão aos valores da agenda política modernizadora constitui-se como estratégia de sustentação dos programas de reforma do Estado na medida em que fazem parte das narrativas de legitimação da mudança necessária, conforme mencionado por Newman e Clarke (2012, p. 357).

O fato de um enunciado conter ambiguidades é um aspecto reconhecido por diversas correntes teóricas críticas e pode, inclusive, ser demonstrado por meio do esforço que muitos cientistas empenham na clarificação dos conceitos utilizados. Existe, então, uma preocupação em eliminar, senão totalmente, ao menos minimizar estas ambiguidades. Este ato de definir o que é dito, de explicitar tanto quanto possível um conceito e que não é exclusivo ao campo científico, mas pode dar-se em qualquer ato de enunciação, comporta necessariamente uma valoração. Isto significa que a definição não é a busca da essência, ou da verdade de um enunciado, mas sim uma estratégia para inscrevê-lo na ordem das relações de poder, produzindo, assim, os vestígios do que Foucault (1972, p. 185) irá denominar ―campo de não-contradição lógica‖. Alguns enunciadores – cientistas, para especificar o campo desta discussão – parecem negligenciar e até menosprezar o exercício da conceituação. O que ocorre nestes casos, longe de ser um descaso para com as relações de poder, é o fato de considerarem os conceitos como obviedades no campo científico. Quanto maior a dispersão de um discurso – sua disseminação na sociedade – maior é a tendência da relação enunciados/significante ser tratada como óbvia.

De qualquer modo, o conflito em torno das definições é um conflito da ordem dos significantes. O que se vê, por parte dos grupos em oposição, neste enfrentamento entre definições, é a luta pela legitimidade dos discursos, por meio da potencialização dos enunciados. Neste sentido, cada grupo adota certas estratégias que visam legitimar a dispersão do discurso e promover sua materialização no/sobre o corpo social.

Para analisar este conflito, Foucault (2004, p. 51) propõe deixar de lado a ―soberania do significante‖ e considerar a diversidade de aspectos que tornaram possível a irrupção do discurso. Isto significa que um discurso compreende tudo aquilo que foi colocado de lado, que foi silenciado ou deixado às margens do discurso tornado legítimo. Assim, quando a ―qualidade‖ aparece na mídia, certos valores são colocados em discussão e outros, colocados de lado. Quando a qualidade da educação é abordada, são acionados certos valores e estratégias. Portanto, se os resultados de um programa de avaliação externa são considerados indicadores legítimos de qualidade (ou da falta de qualidade), isto não resulta de um processo ―natural‖, mas sim de um conjunto de estratégias discursivas que indicam o que é qualidade naquele contexto. Em termos discursivos, então, a busca de significados que se mantém acima da realidade não faz sentido. O discurso é a sua materialidade. Este é o pressuposto que Foucault (2004, p. 70) utiliza em sua análise, conforme afirma:

a análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade de um sentido; ela mostra à luz do dia o jogo da rarefação imposta, com um poder fundamental de afirmação. Rarefação e afirmação, rarefação, enfim, da afirmação e não generosidade contínua do sentido, e não monarquia do significante.

A intervenção na ordem social não pode ser vista apenas como participação consentida, permitida e normativamente estabelecida a propósito da democracia representativa. Em certas situações, o que se denomina ―participação política‖ é uma forma de tornar menos política a manifestação pública, pois torna legítimos apenas certos discursos, enquanto outros são banidos, descartados a priori. Justifica-se, deste modo, a valorização da participação democrática, mesmo onde os governos tendem a centralizar as decisões. A questão que se coloca é se esta participação regulada não tem sido valorizada também como estratégia de dominação. Isto é cada vez mais evidente nos casos em que o contrato social é convertido numa espécie de procuração de amplos poderes, vindo a constranger, quando não restringir, proibir, incriminar e eliminar qualquer tipo de manifestação que ameace a ordem – democrática – instituída. Se existe um governo ao qual foi dada a prerrogativa de regular

determinados aspectos da vida social, isto significa que esta é a forma tornada legítima da regulação. Os governos não são da ordem natural, mas construções humanas.