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AS POLÍTICAS DE RECURSOS HÍDRICOS NO INÍCIO DO GOVERNO CARDOSO: IMPASSES NO SETOR DE SANEAMENTO BÁSICO E

RECURSOS HÍDRICOS

6. AS POLÍTICAS DE RECURSOS HÍDRICOS NO INÍCIO DO GOVERNO CARDOSO: IMPASSES NO SETOR DE SANEAMENTO BÁSICO E

ELÉTRICO.

Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, as políticas públicas voltadas para a gestão da água sofreram os impactos dos ajustes pró-mercado através das mudanças dos papéis das instituições governamentais e das novas leis criadas, que como já pontuamos, favoreceram e estimularam um modelo de gerenciamento que ao mesmo tempo em que considerou a água como um bem público, associou a mesma a condição de um bem que possui valor econômico.

Marcado por um contexto que Chesnais (1996, p 25) caracterizou como Mundialização do Capital, que teve como parâmetros a serem seguidos a liberalização e a desregulamentação, o governo Cardoso mostrava-se consonante com as políticas de ajustes estruturais, num período onde as empresas passaram a ter total liberdade de movimentos, e todos os campos da vida social foram submetidos à valorização do mercado.

Dessa forma, ao analisar as políticas de recursos hídricos do governo Cardoso e suas ações objetivas para o setor, bem como os debates que se travaram no avanço sobre a nova lei de águas, há de se levar em consideração, conforme destaca Medeiros e Santos (2009, p 86), a complexa relação permanente que existe entre regulação das águas e crise ambiental num contexto de globalização financeira, e mais que isso, as complexidades entre os princípios que consideram a água como um bem público a partir de outra complicada relação que existe entre os interesses do mercado e o controle das águas. A complexidade das relações descritas são conclusões quase inerentes a qualquer análise mais profunda da crise ambiental contemporânea.

108 Maiores detalhes sobre a ANA e sua atuação na implantação da cobrança pelo uso da água estaremos

158 Tendo por base a complexidade que envolve as políticas voltadas para questões socioambientais, destacar-se-á neste momento a mudança na estrutura do Estado levada a cabo por Cardoso, demonstrando através de alguns aspectos específicos, como seu governo afetou logo nos primeiros meses de sua administração, diversas determinações generalizadas da estrutura predominante de gestão das águas que vinham sendo realizadas desde os anos 1970.

Antes da aprovação da Política Nacional de Recursos Hídricos, o governo Cardoso realizou algumas ações diretas que contribuíram para que já no primeiro ano de sua administração, alterações significativas para que a gestão da água e todos os serviços dela resultantes pudessem ser modificados, favorecendo assim, as práticas recomendados pelo Banco Mundial e designadas nos acordos com o FMI. Conforme destaca Vargas e Gouvello (2010), para ter acesso aos créditos destinados ao setor, e com juros reduzidos, países como o Brasil tiveram que promover mudanças nas suas políticas institucionais, que favorecessem a transferência da gestão de serviços urbanos de abastecimento de água potável e saneamento para companhias privadas transnacionais, preferencialmente através de contratos de concessão.

Esta situação apresentada por Vargas e Gouvello (2010) é também indicada por Shiva (2006), porém com uma abordagem mais crítica ao modelo defendido pelo Banco Mundial. Shiva (2006), entre outros exemplos, destaca que o Banco Mundial e o FMI exigem a desregulamentação de serviços relacionados a água como condição para conceder empréstimos, principalmente quando os países necessitados financeiramente estão sobrecarregados de grandes débitos. Na África, Shiva (2006) relata que os governos cada vez mais estão sendo obrigados a privatizar os recursos hídricos para conseguirem empréstimos, fato que tem levado as populações desses países a gastarem grande parte do que ganham na compra de água.

Esta lógica tomou conta de grande parte dos países, principalmente dos que aderiram ao Consenso de Washington. Na América Latina, antes mesmo do Brasil, vários países como Argentina, Chile e Bolívia desregulamentaram a gestão das águas conforme recomendações de órgãos financeiros multilaterais. A conseqüência da adoção de um modelo de gestão caracterizada pelo Banco Mundial como “inovadora, moderna e racional” foi a privatização dos serviços de abastecimento e mesmo da água em si, como um produto , conforme ocorreu na Bolívia. Exemplos de privatização dos serviços de águas passaram a ser algo comum pelo

159 mundo afora, mesmo que em alguns casos isolados não tenham de certa forma acabado bem para as empresas concessionárias que assumiram o serviço.

Em algumas situações, corporações transnacionais acabaram perdendo as concessões devido a pressão e manifestações populares contra o encarecimento dos serviços e até mesmo a falta e má qualidade dos mesmos. Este é o caso da Bolívia, onde a população de Cochabamba conseguiu se organizar e expulsar a Bechtel de sua cidade109. A situação ocorrida na Bolívia com certeza não é a regra, mas sim um caso isolado igual ocorreu também na Argentina e até mesmo na França, berço das principais corporações transnacionais do setor de águas110.

A exemplo do que vinha acontecendo em grande parte do mundo a partir da globalização financeira, modificações nas políticas institucionais começaram a ocorrer mais incisivamente no Brasil logo no primeiro mês do governo Cardoso. A atitude inicial mais significativa no que se refere ao controle dos recursos hídricos foi com certeza à desvinculação do gerenciamento das águas do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, que seria extinto durante seu governo no âmbito da Reforma do Estado.

A criação da Secretária de Recursos Hídricos logo no primeiro mês que Cardoso assumiu a presidência parecia demonstrar que o setor de águas teria atenção especial. Além da sua intenção clara em atender aos interesses de recomendações de órgãos multilaterais como o Banco Mundial e cumprir acordos com o FMI, o então presidente tucano via por outro lado também a necessidade de dar respostas à sociedade brasileira que necessitava cada vez mais de melhorias no sistema de abastecimento de água e principalmente esgotamento sanitário.

109 Depois que o governo de Cochabamba na Bolívia privatizou o sistema público de água da cidade para a

corporação Bechtel, a população organizou ampla resistência, chamada de La Coordiadora de Defesa de Agua y

la vida, liderada por Oscar Olivera. Segundo os relatos de Barlow e Clarke (2003, p 222): “[...]Organizada como

um movimento de base ampla formado por trabalhadores, camponeses, agricultores e outros cidadãos preocupados, as principais metas da La Coordiadora eram “desprivatizar” o sistema de água local e defender os direitos da comunidade a água e a vida. Quando a privatização dos sistema de água de Cochabamba, assumida pela Bechtel, aumentou rapidamente as tarifas de água, e o governo foi proibido de usar dinheiro do empréstimo do Banco Mundial para subsidiar os séricos de água para os pobres, milhares de bolivianos marcharam até Cochabamba. Eles provocaram uma greve geral e bloquearam o sistema de transporte, o que paralisou a cidade. Até que o governo declarasse lei marcial no início de abril de 2000, a polícia reagiu aos protestos em massa com violência, os ativistas eram reunidos e presos à noite, e programas de rádio e TV eram interrompidos durantes as transmissões.[...] Essa resistência em massa, liderada pela La Coordiadora, teve êxito, obrigando a subsidiaria da Bechtel a deixar o país e convencendo o governo boliviano a desistir da privatização. No dia 10 de abril de 2000, os diretores da subsidiária da Bechtel, as Aguas Del Tunari, fizeram as malas e deixaram a Bolívia. Sob intensa pressão popular, o governo boliviano rescindiu sua detestada legislação de privatização de água. Contudo, não havia ninguém para administrar a empresa de água local, a Servicio Municipal Del Agua Potable y Alcantarillado (SEMAPO); assim, o governo boliviano deu o controle dos serviços de água de Cochabamba para os funcionários da SEMAPO e para a própria comunidade.”

160 O Brasil, embora tenha uma situação que no geral pode ser definida como privilegiada geograficamente quanto a possuir em seu território recursos hídricos de água doce, adentrava a década de 1990 com alguns desafios a serem resolvidos. Ao final de 1989, o Brasil apresentava, segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (2000), um número pequeno de municípios sem qualquer serviço de abastecimento de água, no caso, cerca de 4% das cidades brasileiras não possuíam o serviço, conforme pode ser verificado nos dados das tabelas abaixo:

Tabela 9 - Municípios, total e com serviços de abastecimento de água segundo as grandes regiões

Tabela 10 - Municípios sem serviço de abastecimento de água e respectiva distribuição percentual, segundo as grandes regiões

161 A pesquisa, no entanto, deixava bem claro que não levava em consideração a eficiência do sistema de abastecimento e a quantidade de domicílios ligados a rede, se atentando apenas ao fato do município possuir uma rede de abastecimento. Por outro lado se consideramos pequena a margem de 4% do país sem serviços de abastecimento, só podemos fazê-lo ao destacarmos apenas a extensão de sua territorialidade sem maiores observações de caráter regional ou mesmo social, o que, no entanto, não isenta de apontarmos a necessidade de expansão da abrangência dos serviços necessários que se faziam evidentes naquela época, principalmente em regiões mais pobres como o norte e o nordeste.

Embora o número de municípios brasileiros com abastecimento de água no começo dos anos 1990 pudesse ser considerado relativamente satisfatório ao olharmos os números de forma simples, uma análise um pouco mais detalhada da pesquisa do IBGE demonstra outros problemas mais relevantes que refletem a disparidade econômica e política que difere as regiões do Brasil. Ou seja, dos 180 municípios isentos de serviço de abastecimento de água no ano de 1989, cerca de 70% eram localizados nas regiões norte e nordeste, com grande predominância no nordeste, que de acordo com o IBGE (2000) possuía 90 municípios carentes de serviços de água.

Se considerarmos questões mais específicas que envolvem a esfera dos serviços de abastecimento de água, percebemos que algumas necessidades ainda precisavam de solução, dado que até o mesmo ano de 1989, 3,9% do abastecimento que atendia os domicílios brasileiros que dispunham do serviço não possuíam nenhum tipo de tratamento necessário, principalmente em cidades com menos de 100 mil habitantes (IBGE, 2000).

Gráfico 2 - Proporção de água distribuída sem tratamento, em relação ao total distribuído, segundo as grandes regiões – 1989/2000.

162 Contudo, o problema mais grave que envolve o setor de águas certamente é a questão do esgotamento sanitário. Se mais de 90% dos municípios brasileiros entravam a década de 1990 possuindo algum tipo de serviço de abastecimento, o mesmo não se podia dizer do esgotamento sanitário. De acordo com os dados da pesquisa nacional de saneamento básico do IBGE, mais da metade dos municípios brasileiros no final de 1989 não possuíam nenhum tipo de serviço de esgotamento sanitário. Esta situação praticamente se manteve durante toda a década de 1990, sendo que no ano 2000, o número de municípios com o serviço havia aumentado muito pouco conforme podemos conferir nos dados abaixo.

Tabela 11 - Proporção de municípios com serviço de esgotamento sanitário, por esfera administrativa das entidades segundo as Grandes Regiões – 2000.

Basicamente, este era o contexto que tomava conta do setor de saneamento básico no Brasil no começo da década de 1990 e se estenderia ao início do governo Cardoso. Os avanços e estagnações que tomaram conta do setor até então foram alcançados devido a políticas públicas orientadas pela centralização das decisões e do gerenciamento na esfera do poder público federal, caracterizada por uma regulação das águas definida como setorializada e verticalizada, característica que predominou na administração dos recursos hídricos até pelo menos o início dos anos 1990 (SANTOS; MEDEIROS, 2009; VARGAS, 2005).

Diante deste cenário descrito, duas ações logo nos primeiros meses do governo Cardoso já começavam a impactar o setor de águas, principalmente no que se refere aos serviços de abastecimento e esgotamento sanitário. A primeira delas, conforme já citamos, foi a criação da Secretária de Recursos Hídricos no âmbito da extinção do DNAEE. Porém a criação da lei de concessões de fevereiro de 1995 abriu caminho para que o setor de serviços pudesse ter a participação da iniciativa privada de forma mais clara. A lei de concessões fazia

163 parte do Plano Nacional de Desestatização que a partir daquele momento começava a focar a área de infraestrutura.

Com a aprovação da lei de concessões e conseqüente queda de investimento por parte do Estado brasileiro devido sua nova concepção de gerenciamento do setor público, começou a ocorrer na área de abastecimento de água e esgotamento sanitário o que Vargas (2005) aponta como uma tendência a privatização do setor. Vargas (2005) justifica sua afirmação demonstrando que a partir da lei de concessões, cerca de 60 municípios brasileiros assinaram contratos de concessão com empresas privadas, sendo que algumas delas eram associadas ou controladas pelo capital estrangeiro. Vargas (2005) destaca que esse número é ainda pequeno dado o elevado potencial de investimento que o setor de saneamento apresentava naquela época.

A região sudeste foi a que mais despertou o interesse do setor privado logo no primeiro momento de abertura do setor. O Estado de São Paulo e principalmente o Rio de Janeiro concentraram a maioria das concessões, principalmente em cidades de grande poder econômico como Limeira e Ribeirão Preto no interior paulista, as primeiras a privatizarem os serviços no Brasil. A partir daquele momento, o setor de abastecimento de água e esgotamento sanitário começou a buscar cada vez mais os investimentos do setor privado, principalmente pelo fato do controle dos recursos hídricos terem sido sempre concentrados em sua maioria no governo federal, necessitar de ampliação, e representar um mercado que poderia fornecer uma fonte de lucros considerável para empresas nacionais e estrangeiras.

De fato, considerando o tamanho e a concentração da população brasileira nas áreas urbanas, a magnitude do déficit nos serviços, a escassez de investimentos públicos e a abertura recente do mercado, o Brasil representa um imenso mercado para as companhias transnacionais da área de saneamento e serviços urbanos. Aliás, transnacionais francesas, norte americanas e da Península Ibérica já estão prestando serviços de saneamento no país, geralmente associadas a empresas nacionais. (VARGAS, 2005, p 67-68).

A participação de empresas privadas nacionais e estrangeiras nos serviços que principalmente nas décadas de 1960/70/80 foram controlados pelo poder público, representou uma das principais marcas dos novos direcionamentos das políticas que passaram a tomar conta do país a partir da reforma do estado realizada pelo Governo Cardoso. Vargas e Gouvello destacam uma lista das principais cidades brasileiras que a partir da lei de concessões de 1995 terceirizaram seus serviços. Segue a tabela:

164 Tabela 12 - Principais contratos de concessão dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário à iniciativa privada firmados no Brasil, a partir dos anos 1990, por ordem cronológica:

Empresa

Concessionária Região Geográfica (*) População envolvida (**)

Operador Internacional inicial

Início da

Concessão Duração do contrato (anos) Águas de

Limeira Município de Limeira (SP) 249 mil Suez-Lyonnaise (Ondeo) Junho/1995 30 Águas da

Paraíba Município de Campos (RJ) 407 mil - Setembro/1996 30 Águas de Paranaguá Município de Paranaguá (PR) 125 mil - Março/1997 28 Petrópolis Município de

Petrópolis (RJ) 286 mil - Setembro/1997 30 Águas de

Niterói Município de Niterói (RJ) 460 mil - Outubro/1997 30 Águas de

Jurtunaíba 3 municípios da Região dos Lagos (RJ)

150 mil - Dezembro/1997 25

Prolagos 5 municípios da região dos lagos (RJ)

250 mil Águas de Portugal

Abril/1998 25 Foz de

Cachoeiro Município de Cachoeiro do Itapemirim (ES)

175 mil - Julho/1998 37,5

CAENF Município de Nova Friburgo (RJ)

175 mil Earth Tech (EUA)

Junho/1999 25 SANEATINS Município de Palmas

(TO) 125 mil - Novembro/1999 30

Águas do

Amazonas Município de Manaus (AM) 1,4 milhão Suez-Lyonnaise Julho/2000 30 Águas da

Guariroba Município de Campo Grande (MS) 664 mil Águas Barcelona de Outubro/2000 30 Águas de Itu Município de Itu

(SP) 135 mil - Abril/2007 30 Águas de Agulhas Negras Município de Resende (RJ) 110 mil - Novembro/2007 30

(*) Com exceção de Niterói, os contratos envolvem apenas a área urbana dos respectivos municípios.

(**) População total sob responsabilidade do operador privado, dotada ou não de acesso aos serviços via redes públicas de água e esgotos.

Fonte: Vargas e Gouvello (2010)

Ao mesmo tempo em que os serviços de saneamento e abastecimento de água já começavam a serem repassados para o setor privado em várias cidades brasileiras, a discussão sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos continuava no Congresso Nacional sem que nenhuma regulação específica fosse colocada em prática. Nesta primeira metade do primeiro governo Cardoso, o debate sobre um novo sistema de gerenciamento de recursos hídricos envolvia aspectos relacionados não apenas a questão da universalização do acesso e o controle dos serviços daí resultantes, mas também, inquietações relacionadas à geração de energia elétrica e principalmente as preocupações com o uso sustentável das águas.

165 Conforme já discutimos, além das pressões políticas de ordem econômica exercidas pelo FMI e pelo Banco Mundial no que diz respeito às recomendações estabelecidas em Washington, que de certa forma foram adaptadas ao Estado brasileiro, havia uma forte pressão de movimentos ambientalistas naquele momento. É bom destacar que Cardoso assumia três anos após uma das principais Conferências da ONU sobre Meio Ambiente ter sido realizada no Brasil, e havia naquele momento uma necessidade muito grande do Estado, redemocratizado, dar respostas nessa direção. Nesse sentido, o setor de águas era um dos que mais causavam preocupações.

No entanto, um fator que certamente influenciou a tomada de decisões no que tange as discussões sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos e que ocorreu ainda no primeiro ano do governo Cardoso foi o decreto 9.074111 de julho de 1995, que estabeleceu normas e prorrogações de concessões e permissões de serviços públicos numa clara atenção ao setor elétrico que logo seria privatizado. Nas disposições iniciais do decreto, o artigo 1º, inciso V, já demonstrava que “a exploração de obras ou serviços federais de barragens, contenções,

eclusas, diques e irrigações, precedidas ou não da execução de obras públicas”, estariam sujeitos a concessão ou permissão por parte do poder público. Neste primeiro momento, a questão do direito sobre as águas não possuía um esclarecimento maior no que se referia ao seu uso, limitando-se a dizer que o aproveitamento energético dos cursos de águas seria regulado nos termos deste decreto e da lei de concessões criada em janeiro de 1995.

Privatizado ou nas mãos do Estado, era evidente que o setor elétrico seria extremamente afetado caso mudanças significativas ocorressem no controle das águas. A geração de energia hidroelétrica, predominante no Brasil, depende de uma oferta abundante de recursos hídricos para que possa atender as demandas. Além do mais, conflitos entre usuários domésticos, agricultores e o setor elétrico sempre foram constantes na história do país, haja vista os impactos socioambientais causados pelas construções das usinas de Itaipu e Tucurui nos anos 1970. Um dos objetivos que se esperava da nova lei de águas é que a mesma possuísse instrumentos que dessem conta de resolver de forma menos abrupta para ambos os lados as questões provenientes desses conflitos, que normalmente acabava prejudicando o mais fraco, no caso, o usuário doméstico e as populações ribeirinhas.

A desvinculação da gestão das águas do setor elétrico logo no primeiro mês do governo Cardoso, aparentemente dava a impressão que os problemas dessa relação poderiam

111 O referido decreto regulamentou o artigo 175 da Constituição Federal. De acordo com o Artigo 175:

“Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.”

166 ser melhores equacionados, porém, o que se observou foi que o setor elétrico, embora não tivesse mais a incumbência de controlar e administrar os recursos hídricos continuou favorecido nas suas ações quanto ao uso das águas. Em nenhum momento do governo Cardoso observou-se qualquer restrição socioambiental de forma mais significativa sobre o setor hidroelétrico. Aliás, a alteração da forma de gestão do setor e a falta de investimentos por parte do Estado que creditou tudo ao setor privado, levou o país a uma de suas piores crises energéticas dos últimos anos112.

Um dos problemas destacados inerentes ao setor elétrico foi a falta de um controle da situação por parte do Estado de forma mais ativa. Leme (2002) ressalta que o processo de reestruturação do setor elétrico passou a ocorrer sem que o Estado tivesse criado os