1. QUEM TEM MEDO DA COMPETÊNCIA TÉCNICA?
1.5. Do Pomo da Discórdia Rumo à Concórdia
Retomando o enunciado da tese (“o sentido político da prática docente se realiza pela mediação da competência técnica e constitui condição neces sária, embora não suficiente, para a plena realização desse mesmo sentido político da prática docente para o professor”), não me parece possível, ainda que se discorde de seu conteúdo, deixar de reconhecer que se trata de uma formulação de clareza meridiana. Por que, então, o Paolo a considerou uma “tese bastante confusa”, citando em seguida a página 146: “vejo na capacitação profissional o ponto crítico a partir do qual imprimir um caráter político à prática docente para esse professor”?
Para captar o sentido do enunciado transcrito por Paolo, parece-me necessário recolocá-lo em seu contexto.
Após a análise das representações dos professores, ao redigir o capítulo VI, Guiomar tinha diante de si a situação concreta dos docentes de primeiro grau debatendo-se com o problema do fracasso escolar das crianças pobres e tentando encontrar alternativas para evitar esse fracasso. É aí, então, que o bom senso aponta para a exigência do saber-fazer, entendido como o
domínio do conteúdo do saber e dos métodos adequados para trans mitir esse conteúdo do saber escolar a crianças que não apresentam as precondições idealmente estabelecidas para sua aprendizagem [Mello, 1982, p. 145].
Mas, ao adquirir competência, o professor ganha também condições de perceber, dentro da escola, os obstáculos que se opõem à sua atuação compe tente. É assim que “a competência técnica inicia o processo de sua transfor mação em vontade política” (idem, ibidem). Por esse caminho, o professor vai desenvolvendo sua consciência real em direção à consciência possível e ganha condição de passar do sentido político em si para o sentido político para si de sua ação pedagógica: “A vontade política permite que aquele sentido político da prática docente se explicite ao professor e passe a ser, para ele também, uma forma de agir politicamente” (idem, ibidem). E Guiomar prossegue, apoiada em Gramsci:
Foi por esse caminho que consegui ler um tipo de movimento pos sível na prática docente, cuja direção vai do especialista ao dirigente
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histórica, sem a qual se permanece especialista e não se chega a dirigente (especialista mais político) [idem, ibidem].
Entretanto, trata-se aí de um limite de consciência possível, algo que se delineia no horizonte. Por isso salienta ela a seguir que o movimento descrito não configura “algo já instalado ou mesmo em processo adiantado de reali zação” (idem, ibidem).
Daí concluir ela que para estes professores nesta escola hoje existente, dentre as diferentes alternativas possíveis, aquela que ela acredita ser a me lhor, dada a sua “exequibilidade no espaço político hoje existente na sociedade brasileira (idem, p. 146), é a diminuição do fracasso escolar e da exclusão, por meio de estratégias técnicas adequadas para garantir o acesso ao maior número possível de crianças nesta escola, e sua permanência nela, pelo maior tempo possível” (idem, ibidem).
Esta é sua hipótese; mais do que isso, é sua aposta.
Agora, reconstituído o quadro em que se insere o enunciado citado por Paolo, é possível recuperá-lo no interior do discurso em que foi pro duzido:
Caso essa hipótese se sustentasse, e creio que se sustentaria pois é também minha aposta, vejo na capacitação profissional o ponto crítico a partir do qual imprimir um caráter político à prática docente para esse professor. Porque o saber-fazer constitui uma das necessidades imediatas para sua imagem de profissional, para uma percepção mais crítica e menos assistencialista do valor de seu trabalho [idem, ibidem].
Vê-se, pois, que aquilo que parecia uma tese confusa resulta nada mais que uma tentativa de ler a realidade da prática docente e indicar uma forma de traduzir, nessa mesma prática, o sentido político da educação escolar.
Para Guiomar, a indicação supra, além de ser apenas uma entre muitas alternativas possíveis, cautelosamente sequer pode ser admitida como uma certeza. Por isso ela prefere a palavra aposta. E assim termina o seu livro:
Uma aposta é mais que uma hipótese e muito menos que uma certeza. Gosto do termo porque expressa com exatidão o momento de minha subjetividade no processo de conhecimento da prática docente e justifica que este capítulo não seja a síntese mas uma das muitas sín teses possíveis. Como toda aposta envolve riscos, sou levada a indagar
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se a solidão do trabalho teórico não me fez, como ao poeta, ver com clareza coisas que não são verdadeiras. Creio entretanto que essa é mais uma incerteza a assumir e incorporar, porque não vejo como dar uma resposta satisfatória a tal indagação, no âmbito do próprio trabalho teórico [idem, pp. 146-147].
Esta conclusão está em perfeita consonância com a tese II de Marx sobre Feuerbach:
O problema da possibilidade de atribuir ao pensamento humano uma verdade objetiva não é um problema teórico, mas sim um problema prático. É na prática que o homem deve demonstrar a verdade, ou seja, a realidade e o poder do seu pensamento. A controvérsia em torno da realidade ou irrealidade do pensamento - isolado da prática - é um problema puramente escolástico [Marx, s/d., p. 10].
E é na prática que Guiomar está tentando responder àquela indagação. Não temos dúvida de que esta problemática está na raiz da difícil decisão que tomou ao aceitar assumir a Secretaria da Educação do Município de São Paulo. Terá ela êxito? Ganhará a aposta? Não sabemos. Mas que, ao demonstrar tal grau de coerência entre seu discurso e sua prática, ela estará avançando na resposta à indagação formulada, disto não temos dúvida.