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Por entre jardins e suas imagens e deles para outros percursos

No documento Jardins de mistura : imagens e memorias (páginas 37-80)

Jardins de nomes

[...] Em São Paulo, no quintal da casa de minha mãe, tem alguns pés de maniva, que aqui é mandioca, mas lá nós chamamos a maniva de maniva, e a mandioca de mandioca..., as pessoas também falam pedacinho de pau, mas na minha terra chamávamos de maniva. [...] “Dá pro senhor me vender umas manivinha?” “O que é isso?” “É da mandioca, aqueles pau que sai da mandioca [...].” (Nalzira)

Depois de uma ou duas conversas com as mulheres dos jardins de mistura – peço licença para chamá-las assim – e ao transcrever nossos diálogos, senti determinado incômodo: em certos momentos, as falas convertiam-se em sucessão de nomes. Lembrava-me, ainda, e vivamente, de caminhar atrás de Nalzira, enquanto ela indicava, uns após outros, nomes e propriedades das plantas. Nomes. Pareciam pedras, num sentido inerte. Aos poucos, de tanto mantê-los presentes em mim, ganharam pele.

Nos primeiros tempos, apenas relacionei os nomes à quase ausência de indagações a respeito de afetos e sentimentos despertados pelo olhar para o jardim, pelo estar no jardim. “O que você sente...?” não foi pergunta fácil de apresentar durante encontros tão episódicos.

Porém, os nomes revelaram-se pedras de pisar, caminhos de alguma segurança. Nomes, caminhos para dentro e para fora de nós mesmos, caminhos entre seres humanos... O humano é palavra, existe enquanto palavra1. E os nomes são palavras.

Nos jardins de mistura, onde as imagens se entrelaçam, os nomes das plantas e as memórias pessoais a elas associadas têm o poder de destacá-las, distingui-las individualmente. Nesses jardins, as plantas não ficam “invisíveis”, não perdem suas singularidades, as mulheres reconhecem todas as plantas, e contam histórias de cada uma delas.

Maria Florio – e Florio já é um nome que se harmoniza com jardim:

– Antúrio, hortênsia, rosa, rosinha, lírio, brinco-de-rainha, orquídea, orquídea chuva-de-ouro, melindroso, brilhantina, vinca, begônia, palma, espada-de-são-jorge, bico-de-papagaio, margarida, arruda, hortelã, alfavaca, samambaia, bananeirinha e copo-de-leite – ela diz todos estes nomes, eles aparecem em sua narrativa2.

Imaginemos um diálogo, mas aceitemos que os nomes constituem ou remetem a algum conhecimento. Maria Adorno continua, reafirma e acrescenta:

– Mamona, margarida, girassol, beijo, beijo-inglês, orquídea, sapatinho-de-nossa- senhora, lírio-do-campo, cravo-de-defunto, crisandália, rosa, rosinha, olga ou olguinha- branca, ameixa, fruta-do-conde, amora, acerola, romã, mamão, begônia, boldo, hortelã, erva-cidreira, brilhantina e babosa.

E Nalzira:

– Primavera, coqueiro, orquídea, manga, moranga, mandioca, antúrio, chuchu, cenoura, cana, cacau, doril, boldo, cravo, cebolinha, cravo-de-defunto, cravínia, erva- doce, abacaxi, feijão-de-corda, berinjela, maracujá, maracujá-doce, hortelã-graúda, inhame, mamão-papaia, jiló, fava, couve, couve-manteiga, araruta, pimentão, crista-de- galo, carquejo, acerola, lorna-verde, quiabo, rosa, pinguinho-de-ouro, alecrim, chapeuzinho-de-couro, onze-horas, pecadinho, levante, quebra-pedra, poejo, margaridinha, hortênsia, gerânio, ameixa, milho, batata, espirradeira, alho, romã, mastruz, babosa, lírio, angico-do-mato ou da-beira do-brejo, dália, abacate, chorão, urucum, capim-cidreira, banana, jaca, maniva e pepino.

Os nomes, freqüentemente, vêm acompanhados de memórias ou falas sobre características das plantas:

[...] O lírio, eu trouxe da casa de uma menina de lá de cima..., ela foi arrancar e jogar fora, mas [...]. (Maria Florio)

[...] As hortênsias necessitam de poda, uma vez por ano, em agosto, junho..., aí dão mais flores, ficam mais bonitas. [...]. (Maria Florio)

[...] Esta, a brilhantina, é como mato, onde você enterra, ela brota; ali tem uma touceira...

Lá está a babosa, ela é boa para o cabelo, pelo menos dizem, eu apenas plantei, nunca fiz uso... (Maria Adorno)

Aliás, vários nomes trazem, em si mesmos, inúmeras referências explícitas a certos aspectos dos vegetais, como forma, tamanho, valor atribuído a elas, poder curativo ou medicinal, etc. Alguns nomes remetem à esfera religiosa. Vejamos: espada- de-são-jorge, sapatinho-de-nossa-senhora, brinco-de-rainha, crista-de-galo, rosinha, olguinha, babosa (analogia a partir da natureza suculenta da planta), quebra-pedra e doril, entre outros.

Nomes dos jardins de mistura1

Olha, aquela é rosa... mas ela é linda, igual a esta daqui, que tem um nome esquisito... Na mureta, ao lado das orquídeas, tem uma..., ela ficava lá fora, mas resolvi plantar na panela de ferro; é bonita, seca por uns

tempos, depois, na época certa, brota tudo de novo. Jardins da Babilônia. Jardim das delícias. Jardim do Éden.

Campos Elíseos.

Olha, aquela é planta boa de lavar o pé..., fazer chá..., a gente chama de doril... [tom zombeteiro, como se não fosse o modo correto de chamar], mas tem [risos]... O nome é doril, doril do mato, é muito bom. Jardim acolhedor.

Esta aqui, nem sei como é que se chama, ganhei, bem pequenininha, de uma senhora dali de cima [...].

“e assim eu faço meu jardim” – na fala de Dona Nalzira pode estar o título, você está fazendo o seu jardim.

Aquela branquinha é a olga... Aquele outro cravo, se é de defunto? Não... [risos..., em toda esta passagem a voz dela está mais bonita, mais aberta, com um colorido diferente], não é bem de defunto, é um cravo bonito, ele dá assim..., as pessoas deram o nome de cravo-de-defunto, mas não é..., é um cravo...

Nomes dos jardins de mistura

coroa imperial

Não me lembro do nome daquela. É meio azedinha e serve para problema de úlcera. O senhor [...], o senhor nem sabe o efeito que tem, de tão boa que ela é..., é uma erva boa.

Não conheço todas as plantas do jardim, há muitas que não sei o nome, vou plantando. Coisa de fazer pizza [orégano]...

Essa..., não sei como se chama não..., eu sabia o nome, mas não sei..., trouxe lá de Minas, também. Faz tempo.

Veja, esta é quebra-pedra, é boa contra pedra no rim. Qual é o nome desta? Uma florzinha linda, vermelhinha, mas não sei o nome dela, não guardo nome, não adianta, viu? Não entra na cabeça.

Esta aqui é hortênsia..., não... É orquídea.

O corredor é o lugar onde mais aprecio ficar, penso que é por causa da..., da planta..., dessa que se parece com um antúrio.

Parênteses. No universo iorubá, que no Brasil se misturou com o português e com o indígena, as plantas têm poderes curativos e mágicos. Os babalaôs iorubás transmitem oralmente seus conhecimentos sobre as plantas – conhecimento restrito aos iniciados. Eles precisam saber combinar os vegetais e prepará-los, juntando outros elementos. No entanto, as composições não agem sem palavras mágicas, ou seja, expressões, frases de encantação (“ofò”). As palavras, os nomes e as conexões estabelecidas entre as palavras são muito importantes. Por exemplo, nos “ofò”, o verbo que define a ação esperada figura, freqüentemente, como uma sílaba do nome da planta – o “ofò” precisa do nome da planta. Por sua vez, o nome da planta indica características dela, características que remetem ao(s) seu(s) uso(s).

[...] Numa receita para acabar com a tosse (oògun ikó), devem-se pilar folhas de ójà (Quassia undulata, Simaroubaceae), misturá-las com suco de òro`mbó wéwé (Citrus aurantifolia, Rutaceae, a lima-da-pérsia), tomar três colheres dessa preparação todas as manhãs e pronunciar o ofò:

Ójà já ikó kúrò l’órùn. Òrómbo bó ikó kúrò l’órùn.

Ójà, arranque [já] a tosse da garganta.

Òrómbo, descasque [bó] a tosse da garganta. 3

Nos jardins de mistura, não saber os nomes de modo algum tem o sentido necessário de desconhecimento a respeito das plantas:

Olha, você viu aquelas plantinhas, nos vasinhos? São lindas, não é? Mas não sei o nome de nenhuma, apenas o da primeira, que é begônia; agora, do resto... Em agosto, essas plantinhas morrem, em julho, agosto, já não é tempo de planta, elas ficam feias e morrem. Então, você precisa conservar as mudinhas para, quando chegar setembro, você replantar tudo [...]. (Maria Adorno)

Mas os nomes são importantes, sua ausência e seu esquecimento são notados e lamentados:

[...] falo a verdade para você, não guardo nome de planta, não sei nome de planta [...]. (Maria Adorno)

[...] A do vaso..., esqueci..., são muitos nomes. [...]. (Nalzira)

[...] como que fala o nome disso daí, meu Deus do céu? [...] (Maria Adorno) Com seus nomes sabidos ou não, lembrados ou esquecidos, com suas qualidades deveras, parcialmente, ou quase nada conhecidas, as plantas encontram lugar nos jardins

de mistura. Nesses jardins acolhedores, nem tudo é conhecido e explicado, eles aceitam retalhos de conhecimento, vazios, lacunas... – vejo um sentido de experimentação.

Nos três anos durante os quais me voltei para os jardins de mistura, ouvi, falei, li e escrevi os chamados “nomes populares” das plantas, os quais me permitiram conversar com muitas pessoas, navegar pela internet e estudar vários livros, na tentativa de identificar as plantas, na busca de imagens, de saberes, de mitos e memórias relacionados com elas, as plantas. Utilizados por amplo universo de pessoas, entre as quais as mulheres dos jardins de mistura, as benzedeiras, os paisagistas, os cientistas..., os nomes populares são poderosos. Cabem alguns pensamentos a respeito deles.

Um nome popular pode juntar o que o olhar científico separa, isto porque os olhares são diferentes, interessam-se por coisas diferentes... Várias árvores de espécies distintas, por exemplo, são conhecidas pelo nome de “corticeira”.

Por outro lado, e aqui está, neste momento, o interesse maior, também é freqüente que a um nome científico correspondam vários nomes populares. Nomes que podem reafirmar um sentido ou não. A variação do nome popular – de um tempo para outro, de uma região para outra... – é manifestação simbólica de abertura para descobertas, para criação de novos usos, de novos sentidos para uma planta. Novas relações entre plantas, e entre gentes e plantas.

Impossível deixar de notar nomes tomados de empréstimo da indústria farmacêutica, verdadeiros “nomes de mistura”: Nalzira chama certa planta de doril – provavelmente, a Alternanthera brasiliana (L.) O. Kunt. –, também conhecida como melhoral, anador, terramicina, etc.

Jardins de memórias e sentimentos

Em vez de procurar nas narrativas 4 das mulheres os porquês de um jardim, ou o que é essa necessidade de fazer e cuidar de um jardim – e compreendo que tudo isto tem relações com sentimento, afeto e memória –, experimento, de início, outro caminho, olho para as imagens dos jardins, pois ali estão as “coisas” com as quais lidam as mulheres.

Livros de mistura Ao utilizar dois livros sobre plantas e seus usos, acabei por ver semelhanças entre eles. Os livros são “Plantas ornamentais no Brasil” 1 e “Ewé: o uso de plantas na sociedade iorubá” 2.

O primeiro livro traz, em suas últimas páginas, dois índices, um de nomes científicos das plantas – e as espécies foram agrupadas por gênero –, outro de nomes populares. Através de uma dessas “entradas”, vamos até as páginas que apresentam as plantas – uma planta por página. E, a cada página: a) duas fotos, uma de enquadramento mais geral, outro de detalhe de folhas e flores – ou seja, ampliação de partes vegetais importantes para as classificações científicas; b) nomes científicos e vários nomes populares; e c) pequeno texto a respeito de características gerais da planta (tipo de folha, altura, origem, clima ao qual está adaptada, modo de reprodução, etc). Na verdade, as fotos servem tanto ao leigo, quanto ao especialista, elas podem ser observadas de modos diferentes. O texto é simples, voltado para questões de interesse prático.

O segundo livro tem dois glossários: a) nomes iorubás > nomes científicos e b) nomes científicos > nomes iorubás > nomes populares. Um dos anexos exibe ilustrações de plantas, com seus nomes científicos, iorubás e populares. As receitas medicinais e mágicas ocupam sempre duas páginas, a da esquerda, em iorubá, e a da direita, em português – esta última, com nomes científicos e populares, e as encantações (“ofò”). É necessário ressaltar que o iorubá é uma língua oral, grafada por pesquisadores britânicos no século XIX. As encantações carregam o conhecimento das ações esperadas das plantas, permitindo memorização e continuidade desse saber. Daí que, num universo oral, as encantações sejam frases curtas, marcadas por assonâncias, repetições, jogos de palavras, etc. Além disto, as palavras só têm força, poder, quando faladas. A organização das receitas na forma de um livro implica em transpor para o universo da escrita formas da oralidade, formas produzidas de acordo com características, limites, necessidades e possibilidades da oralidade. Escrever, então, implica, inescapavelmente, em mistura e transformação – no papel, uma encantação é, ao mesmo tempo, oralidade e escrita, porém, no papel, as palavras encontram-se “desativadas”.

Nos dois casos, os livros abrigam mais de uma linguagem, mais de uma forma de pensamento, ou conhecimento, enfim, abrigam elementos de contextos culturais diferentes. Ambos os livros permitem diversas entradas, a partir desses contextos. Livros de mais de um mundo.

Nas imagens, vejo muitas plantas, diferentes umas das outras. Sobreposições, colagens. Colcha de retalhos de idéias e ações que vão até que novas se iniciem: uma bordadura inconclusa, um bloco de plantas que em algum momento deve ter sido apenas de uma espécie... Os jardins são belos e cheios de detalhes.

É importante sentir o que aflora: vida, movimento, transformação, busca de interstícios vitais, diversidade, acolhimento, mistura, cuidado com a vida, beleza... e criação. Penso que as mulheres experimentam tudo isto nos jardins – e talvez, para essas mulheres, algumas experiências sejam possíveis especialmente nos jardins. As imagens trazem um sentimento de vida, de gosto pela vida...

Quem faz um jardim deita raízes, com expectativas de permanência, de futuro com momentos de paz, tranqüilidade, harmonia e felicidade (estados comumente associados aos jardins, comumente...). Assume, de outra parte, a responsabilidade de cuidar das plantas, de manter a vida e a esperança. Todas as formas de vida, com seus ciclos vitais, animam nossa imaginação a respeito da existência e do tempo. Entre as plantas, muitas prometem flores e frutos, em épocas mais ou menos determinadas, que vão e voltam. Outras, de ciclo mais lento (ou alongado?), sugerem paciência e aceitação de nossos limites, porque não poderemos acompanhá-las em todo o seu percurso. Plantar aponta para o futuro, dá início, cria possibilidades, manifesta um sentimento de fé.

Maria Florio, Maria Adorno e Nalzira, ao falarem dos jardins, lembram-se da infância, acendem memórias de pessoas, memórias de casas, lugares e jardins:

[...] Minha mãe tinha jardim com muitas flores. Era parecido com este, era assim..., olha..., era como aqui..., plantado só na beirada. Havia um terreiro grande, então, a gente plantava assim..., quase igual aqui, mas apenas na beirada, e as flores eram outras, flores que a gente quase não vê por estes lados. [...] Mas uma delas, que existe até hoje na casa de minha mãe, é chamada brinco-de-rainha e dá muitas flores pequeninas. Ainda vou trazer uma para mim. (Maria Florio)

Você vê a crisandália? Minha mãe gostava demais dessa flor... nossa!..., eu lembro, quando era criança, tinha, assim..., um corredor de tudo quanto é cor... sabe?... era muito bonita a plantação da minha mãe, ela só plantava crisandália, de toda cor... (Maria Adorno)

Minha mãe disse que comecei a plantar logo que nasci. Mais ou menos aos cinco anos de idade, eu ia nadar no rio, onde via coisas bonitas e trazia para casa. Pequenas flores. “Olha mãe...!” Ela fala que, desde pequena, tenho esta mentalidade. [...]. (Nalzira)

Jardim de Maria Florio

Margarida da casa da mãe, lá de Minas...

Um terreiro todo plantado em volta, um corredor de crisandálias de cores sortidas, um rio margeado de flores... Talvez os jardins tenham imagens que não vejo porque me faltam outras imagens – nada está escondido. Alguma imagem do terreiro vive no jardim de Maria Florio. As relações entre as imagens devem ser complexas. Imagino, por exemplo, a possibilidade de relações por meio de metonímia – parte remetendo ao todo – e, ao mesmo tempo, considero que o passado, em certo sentido, é presente, ou seja, também é criado pelo presente: um modo de olhar para o passado cria imagens do passado – “a memória é uma ilha de edição”5.

Aqui, o principal é notar que memória e sentimento, ou afeto, andam juntos. O afeto tem papel importante na “edição”. No caso das mulheres, são memórias felizes de tempos e lugares, memórias boas de suas infâncias.

As plantas dos jardins de mistura fazem lembrar de pessoas, do lugar de onde elas próprias, as plantas, vieram, do momento, ou da situação, em que foram “conseguidas”, ou encontradas, ou resgatadas, etc. A simples compra, sem deixar grandes marcas, não é freqüente, apenas Nalzira mencionou este meio de levar plantas para os jardins.

Algumas plantas apenas fazem lembrar, mobilizam memórias simples, remetem a sentimentos constituintes dos jardins:

É difícil lembrar de qual foi a última mudinha que coloquei no jardim. Como disse antes, às vezes saio, vejo uma plantinha e já trago para casa. Consegui tudo assim..., vou à minha cunhada, ela tem uma rosa... O lírio, eu trouxe da casa de uma menina de lá de cima..., ela foi arrancar e jogar fora, mas eu falei: “Não, me dá que eu vou levar”. Trouxe e plantei tudo aí. Aonde vou, se eu vejo uma mudinha, peço e planto [...]. (Maria Florio)

Estes são os pés de acerola. Dias atrás, minha menina tirou muita acerola. Este talvez frutifique ano que vem, é um pé que meu vizinho deu a muda. [...]. (Nalzira)

[...] Esta é orquídea, mas é linda demais, olha, olha, vai abrir ainda, olha... Essa aí [...] o dono da minha casa deu a touceira e enfiei no tronco da árvore [ameixeira], todo ano ela dá flores. [...]. (Maria Adorno)

Viu? Tem bastante vasinho..., olha aí..., é que, às vezes, topo com uma plantinha e falo “Ihh, jogar fora?” Fico com dó, pego e ponho num vasinho..., vou pondo tudo em vasinho, aí vai enchendo [...]. (Maria Florio)

[...] Às vezes, compro uma mudinha na cidade e já planto, ela vem pequenininha, mas, com o tempo, cresce... (Nalzira)

Um pensamento. “[...] Às vezes, compro uma mudinha na cidade e já planto, ela vem pequenininha [sem histórias comigo, sem memórias, sem afetos...?], mas, com o tempo, cresce... [acolhe memórias, sentimentos...?]”

Se algumas plantas simplesmente fazem lembrar, entendo que outras são especiais porque, conscientemente ou não, foram levadas aos jardins “’para’ fazer lembrar de...”, ou, em outras palavras, “’porque’ fazem lembrar de...”. Evocam a terra natal, a infância, parentes e pessoas queridas:

Lá na frente, tenho primavera e coqueiro. Meu tio, de lá do sul da Bahia, mandou duas mudas de coqueiro. (Nalzira, nascida em Itambé - BA)

[...] Quando vou à Bahia, sempre trago sementes e algumas mudas. Se tivesse condição, iria todo ano, porque é uma terra muito boa... Vieram da Bahia: mamão, e o mamão de lá é bem grande, chegando a pesar mais de um quilo; abóbora; inhame... O que tem aqui, muitas vezes, não dá, mas o que vem da minha terra sempre produz. [...]. (Nalzira)

[...] Quando vim..., acho que não trouxe nada. Mas sempre volto para passear, quase todo final de ano eu viajo para Minas Gerais, e, então, se vejo algo diferente, eu trago. Aquela rosinha, a pequenininha, ali no meio, trouxe de Minas, da casa da minha mãe. (Maria Florio)

As mulheres cultivam plantas que vêm de pessoas e lugares estimados. Os jardins também são “editados”.

“Trouxe de [uma pessoa querida], por isso levo comigo.” Ora, isto é diferente do consumo capitalista, de uma lógica que talvez pudesse ser apresentada nas seguintes palavras: “Comprei esta planta [mercadoria]; quando ficar feia, ou quando eu me cansar dela, jogo fora e compro outra.”

As plantas “’para’ fazer lembrar de...” participam das relações, dos laços das mulheres com lugares, tempos e pessoas.

Plantas são seres vivos em permanente transformação, seres cuja imagem, de um modo mais explícito, nunca é a mesma, em função dos ciclos vitais, das estações do ano, de fenômenos meteorológicos, de doenças, etc. Desde a infância, somos ensinados e aprendemos a ver nas plantas a “passagem do tempo” 6 e o ciclo vida- morte-vida. Quando observo imagens de plantas “’para” fazer lembrar...”, penso que as memórias também se transformam e desaparecem.

As plantas precisam de cuidados mais ou menos constantes. Não é possível esquecer-se delas por um tempo demasiado longo – penso a respeito das plantas de jardins, de vasos. Ao cuidar das plantas dos jardins de mistura, ao mantê-las vivas, as mulheres cuidam de memórias, cuidam de laços, de relações afetivas, mantêm acesos determinados sentimentos.

Flores de memória

Aqui na área, essa orquídea, essa... [chuva-de-ouro, lado direito da foto], trouxe da minha sogra, quando eu morava em Minas. Ela já faleceu. Faz um..., ... mais de um ano..., faz quase dois anos que eu trouxe. Eu gostava da minha sogra, e, cada vez que mexo no vaso, lembro-me dela. Aquela é da minha cunhada de Minas e esta [antúrio branco, perto

No documento Jardins de mistura : imagens e memorias (páginas 37-80)

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