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Jardins de mistura : imagens e memorias

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Jardins de mistura: imagens e memórias

Autor: Adriano Picarelli

Orientador: Prof. Dr. Wencesláo Machado de Oliveira Júnior

Campinas Fevereiro de 2007

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Jardins de mistura: imagens e memórias

Autor: Adriano Picarelli

Orientador: Prof. Dr. Wencesláo Machado de Oliveira Júnior

Este exemplar corresponde à redação final da Dissertação defendida por Adriano Picarelli e aprovada pela Comissão Julgadora. Data: 27 de fevereiro de 2007 Assinatura:... Orientador COMISSÃO JULGADORA: __________________________________________ __________________________________________ __________________________________________ 2007

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© by Adriano Picarelli, 2007

Ficha catalográfica elaborada pela biblioteca da Faculdade de Educação/UNICAMP

Título em inglês: Mixed gardens: images and memories Keywords: Garden; Memory; Culture; Mestization; Knowledge Área de Concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte Titulação: Mestre em Educação

Banca examinadora: Prof. Dr. Wencesláo Machado de Oliveira Júnior (orientador) Profa. Dra. Maria do Céu Diel de Oliveira

Prof. Dr. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim Prof. Dr. Milton José de Almeida

Profa. Dra. Laura Maria Coutinho Data da defesa: 2007

Programa de pós-graduação: Educação E-mail: adrianopicarelli@terra.com.br

Picarelli, Adriano

P58j Jardins de mistura: imagens e memórias / Adriano Picarelli, - Campinas, SP: [s.n.], 2007.

Orientador: Wencesláo Machado de Oliveira Junior.

Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Jardins. 2. Memória. 3. Cultura. 4. Mestiçagem. 5. Conhecimento. I. Oliveira Júnior, Wencesláo de. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

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RESUMO

Esta dissertação é um estudo a respeito de certos jardins presentes nas cidades brasileiras, muitas vezes na frente de casas modestas, mais antigas ou situadas nos limites das áreas urbanas. O autor denominou-os “jardins de mistura” porque apresentam as plantas todas misturadas nos canteiros e ainda vasos feitos a partir de objetos como latas de tinta, baterias de automóvel, etc. O trabalho foi motivado por curiosidade sobre as imagens desses jardins, sobre possíveis sentidos de suas composições. Três mulheres da cidade de Rio Claro (SP - Brasil) apresentaram e permitiram que fossem fotografados os jardins de mistura que elas mesmas fizeram e mantêm. Esses jardins talvez sejam manifestações de modos de pensar e de viver que lidam deliberadamente com a mistura, que aceitam a mistura – sem deixar de escolher.

Palavras-chave: jardins, memória, cultura, mestiçagem, conhecimento.

ABSTRACT

This dissertation is about a certain type of garden found in Brazilian cities, often fronting homes that are old and unpretentious or are situated on the outskirts of urban areas. The author calls them “mixed gardens” (“jardins de mistura”) because their flowerbeds display an interesting potpourri of plants as well as flowerpots made of objects such as paint cans, car batteries, etc. This study was motivated by curiosity about the images of these gardens, about possible meanings underlying their compositions. Three women residing in the city of Rio Claro (SP, Brazil) displayed the mixed gardens they themselves had created and take care of, and allowed them to be photographed. These gardens may represent manifestations of modes of thinking and living that deliberately accept mixing, that deal with mixes – while retaining the possibility of making choices.

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Para Helena Kohn Cordeiro (“in memorian”)

... ainda me lembro de seus comentários sobre a luz, de um amarelo calmo e agradável, filtrada pelos vitrais da mata, num fim de tarde ...

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Prof. Dr. Wencesláo Machado de Oliveira Júnior. Confiança, desafios, paciência, espera, acolhida em sua casa, boas conversas e orientação. O que mais eu poderia querer?

A Maria Florio, Maria Aparecida Silva Adorno, Nalzira Moreira Silva e Carmen Júlia Temple Troya Beig. Elas abriram seus jardins, um pouco de suas vidas.

Aos componentes de minhas bancas de qualificação e defesa: Prof. Dr. Milton José de Almeida, Prof. Dra. Maria do Céu Diel de Oliveira, Prof. Dr. Antonio Carlos Rodrigues de Amorim, Prof. Dra. Cristina Bruzzo e Prof. Dra. Laura Maria Coutinho. Milton e Maria do Céu propuseram desafios na qualificação. Aceitar os desafios foi tão ou mais importante do que os resultados alcançados. Experimentar.

Aos professores das disciplinas que cursei durante o mestrado. Falta citar o Prof. Dr. Carlos Eduardo Albuquerque Miranda. Aulas tão preparadas, tão bem cuidadas..., estudos em construção...

Aos companheiros de orientação Rodrigo Bryan e Elaine Aparecida Barreto Gomes de Lima. Agradecimentos pela recepção atenciosa e solidária, pelas leituras e sugestões. Certamente que esta dissertação está repleta de idéias surgidas em nossas discussões com o Wences. Escrita coletiva.

A todos os integrantes do grupo de pesquisa OLHO. Aprendi muito durante as reuniões.

A Gabriela Fiorin Rigotti, Giovana Scareli e Pablo Sebastian Moreira Fernandez, pessoas queridas, afetuosas e que também gostam de pensar. Sempre bons momentos.

Ao Prof. Dr. Álvaro Tenca, por tantas conversas, pelas lições sobre Hannah Arendt, sobre o ouvir e a preservação do mundo. E os trens, e os ferroviários...

À Prof. Dra. Maria Christina de Mello Amorozo. Uma boa conversa no início, empréstimo de trabalhos e possibilidade de conhecer uma visão dos ecólogos.

À Profa. Ms. Hélia Maria de Fátima Gimenez Machado, por meio de quem cheguei até Carmen e Nalzira.

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Às empenhadas e alegres companheiras do PROESF: Alexandra Molina, Juçara Pastorelli Noveli Florian, Profa. Ms. Maria Belintane Fermiano, Michelle Schlög.

A todas as pessoas da Secretaria de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Unicamp. Sempre educadas e eficientes. Agradeço, especialmente, à Nadir Aparecida Gomes Camacho, ao Dorival Inácio de Oliveira e à Rita Cristina Ferreira Preza.

Ao Charles Luís Lucena Rubin, pelo auxílio na organização gráfica do trabalho.

Aos meus pais, Hélio Picarelli e Lourdes Aparecida Prado Picarelli, pelo esforço para que os filhos pudessem estudar.

Ao Edson Roberto Apolinário. Enquanto, na Passagem, eu ia pelo caminho feito de lâmpadas, ele me ouvia.

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SUMÁRIO

Resumo/ Abstract ... iii

Dedicatória ... v

Agradecimentos ... vii

Lista de imagens ... xi

Daquilo que germinou ... 01

Jardim de Maria Florio ... 03

Jardim de Nalzira Moreira Silva ... 05

Jardim de Maria Aparecida Silva Adorno ... 06

Grotescos ... 09

Plantas de casa e palácio ... 13

Por entre jardins e suas imagens ... e deles para outros percursos ... ... 23

Jardins de nomes ... 23

Nomes dos jardins de mistura ... 25

Jardins de memórias e sentimentos ... 28

Livros de mistura Flores de memória ... 29... 35

Memórias de bordaduras ... 39

Jardins de cura, jardins mágicos ... 46

Canteiros curativos ... 49

Um preparado de ervas e histórias ... 51

Felicidade mestiça ... 66

Sonhos de felicidade ... 92

Sonhos de felicidade: Paraíso, Terra Natal, Infância, Paz Social ... 101

Narrativas ... 102

Narrativa de Maria Florio ... 102

Narrativa de Maria Aparecida Silva Adorno ... 109

Narrativa de Nalzira Moreira Silva ... 116

Das narrativas e das imagens fotográficas ... 134

Das narrativas ... 134

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Romã ... 140

Pós-escrito ... 143

Notas ... 146

Referências bibliográficas ... 153

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LISTA DE IMAGENS

Jardim de Maria Florio... 03

Jardim de Nalzira Moreira Silva... 05

Jardim de Maria Aparecida Silva Adorno ... 06

Grotescos da Domus Áurea ... 08

Casa da Flor... 12

Palais Ideal... 15

Casa da Flor (mosaicos) ... 19

Palais Ideal (inscrição) ... 22

Jardins de Maria Florio e Maria Adorno ... 31

Jardins de Maria Florio e Nalzira... 32

Jardim de Maria Florio (detalhe da varanda)... 35

Jardins de Maria Florio, Maria Adorno e Nalzira (bordaduras) ... 38

Canteiros do Palácio de Versailles... 40

“Minerva che caccia i vizi” (pintura de Andrea Mantegna)... 44

“Allegoria della corte di Isabella” (pintura de Lorenzo Costa) ... 44

“Alegoria da Bondade” (Iconologia de Cesare Ripa) ... 57

“O vendedor de Arruda” (Jean Baptiste Debret)... 61

Afrescos do Convento de São Miguel Arcanjo, Ixmiquilpan, México... 73-74 “Plantas que sobem” ... 79-80 Objetos dos jardins de mistura (“Jardins de objetos recriados”)... 84

Grotescos de fotos dos jardins de mistura (“Jardins de grotescos”)... 89-90 Jardim de Maria Florio (frente da casa, canteiro menor e varanda) ... 104

Jardim de Maria Florio (diagonal do canteiro e “fundo” do canteiro maior, varanda na florada das orquídeas)... 106

Jardim de Maria Adorno (detalhes dos canteiros próximos da rua) ... 110

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Jardim de Nalzira Moreira Silva (entrada do terreno da casa, detalhe

do canteiro cercado no interior desse terreno) ... 118

Jardim de Nalzira (detalhes do canteiro cercado)... 120

Jardim de Nalzira (jardim da frente da casa, 14/10/2004) ... 123

Jardim de Nalzira (outro lado da rua, 14/10/2004 e 6/02/2005)... 126

Jardim de Nalzira (o jardim “transborda” para terreno ao lado) ... 131

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Daquilo que germinou...

Jardins de mistura. O nome continuará no plural, durante todo o texto. Vejo nestes jardins certa comunidade, alguns aspectos assemelhados, mas reconheço particularidades, cada um deles também é único.

Encontro jardins de mistura em gravuras de viajantes europeus que por aqui se aventuraram séculos atrás: nos desenhos de paisagens, ao lado de casas de pau-a-pique, às vezes observo ilhas de vegetação, tufos formados por bananeiras, arbustos, ervas e flores. Era comum que esses artistas, no Brasil, colhessem esboços. Já na Europa, e até mesmo alguns anos depois, eles desenhavam e/ou pintavam, compondo, num mesmo espaço, numa única cena, elementos que talvez jamais tenham observado juntos1. “Uma forma de arte, de adensar, no espaço disponível, toda uma experiência”2 de contato com a exuberância de uma terra para eles desconhecida.

Encontro jardins de mistura nos livros:

[...] ganhou a menina o quintal [da casa de um sítio modesto] onde havia um pequeno jardim, se tal nome cabe a moitas de roseiras, manjericão e malmequeres

plantados de mistura e sem arte dentro de um cercado de varas, entre as quais

estavam suspensos cacos de barro com pés de craveiros.3

Vejo esses jardins em áreas rurais, provavelmente um modo de ter por perto alguns vegetais necessários ao corpo, ao espírito e ao olhar.

Nos limites das cidades e mais para dentro destas, lá estão os jardins de mistura. Pelo que observo, os jardins de mistura fazem parte de casas onde vivem pessoas de menor renda, ou de certa idade, porém, eles ainda pertencem àqueles que não vêem sentido na compra de um jardim.

Talvez esses jardins existam em diversas partes do mundo.

Paredes e muros caiados. Um mil-folhas de pinturas (antigas combinações) que as crianças gostam de destacar em pequenos pedaços de superfície instável e quebradiça. Basta enfiar unha, canivete, faquinha, ou algo bem fininho. Descobertas arqueológicas. Mofo, limbo, musgos, áreas esverdeadas acompanham trincas do reboco e tudo se reúne em cantos e quinas. Manchas, umidade e sombra: com elas, desenhamos figuras medonhas de bichos híbridos, delineamos territórios e contamos histórias.

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Umidade. Quando estamos nos jardins de mistura, sentimos a presença da água no ar, nos corpos das plantas, no interior dos vasos, no solo protegido pela sombra de folhas vivas e mortas... Refrigério. A umidade, sentida por meio da pele e da respiração, desperta memórias do Paraíso Terrestre bíblico e de jardins lendários do oriente.

[...] a água corria abundante – felicidade suprema sonhada por gentes que a aridez desértica ameaçava incessantemente. [...].4

Através de brechas no cimentado do chão surgem pequenas mudas de plantas, miniaturas de samambaias, filhotes de brilhantina, algum limoeiro... Latas de óleo, potes plásticos de margarina e até vasos de verdade – como se os primeiros não fossem! – recebem primaveras, violetas e lírios, entre outras.

No interior dos canteiros, num cipoal de galhos, folhas e talos, o solo aparece, aqui e ali, escuro de húmus, repleto de sobras, de fragmentos de vida e de morte. Cipoal porque as crianças que se abaixam nos jardins logo criam e transformam mundos: a floresta dentro da qual alguém se perdera, em seguida abrigou monstros, e agora espreita a iminência de uma batalha, porém, adiante, será o lugar de esconder um tesouro, ou a paisagem de um encontro romântico. Metamorfoses.

Nesses canteiros enterramos nossas primeiras sementes e sepultamos pássaros-heróis, heróis-pássaros. Enterrar sementes e realizar sepultamentos são atos cujos sentidos se misturam: entregamos à terra, ou seja, ao que escapa à visibilidade da superfície iluminada, aquilo que, acreditamos, vai se transformar, renascer.

As sementes levam nossa imaginação, propõem enigmas... A flor fica sempre na semente.5

[...] E essa árvore, que deu madeira para fazer cinqüenta casas, e essa árvore tem uma semente..., o senhor sabe qual o tamanho da semente? Do tamanho da cabeça de um alfinete. [...].6

Memórias, agora, do jardim da casa de minha bisavó, Frida: casa muito simples, sem forro, conversas que sussurram de cômodo para cômodo pelo espaço vazio acima das paredes. Tudo de retalhos, cortinas – não existem portas internas –, almofadas... Na sala, no canto de uma poltrona está a escarradeira de lata de goiabada. Fogão de lenha, pão feito em casa, paiol. Banheiro de buraco no chão do quintal. Muitos devaneios de infância. Um jardim de mistura, tudo plantado junto, apinhado.

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Jardim de Maria Florio

Imagem exuberante de um entrelaçamento de diversidade e mistura – plantas também se arranjam por si mesmas. Verdes, vermelhos, rosas, laranja e branco. Folhas achatadas, suculentas, largas, pontiagudas, corações, barbatanas, rendas delicadíssimas, etc. Galhos e folhas apontando para todas as direções, para o céu e para a terra. Um jardim de sol.

Logo nos primeiros instantes de deslumbramento, meu olhar movimenta-se rapidamente desta para aquela planta, ora aos saltos, ora seguindo a linha de um galho, haste ou folha alongada – vontade de reconhecer cada uma. Acontecem surpresas: de um grupo de lírios sai uma palma laranja; um sapatinho-de-judeu (centro da imagem) busca o sol, dá uma bela rosa e ainda se transforma em galhos de alamanda; uma torre de mistura, onde se confundem e se distinguem, inseparáveis, sapatinho..., melindre e orquídeas que florescem em rosas.

Dentro do canteiro, a composição das plantas não segue a geometria da perspectiva renascentista. Na imagem fotográfica, as plantas não desenham alinhamentos para pontos de fuga, o que hierarquizaria os elementos da imagem e conduziria fortemente o olhar. Manchas de plantas chamam a atenção, e é difícil imaginar o espaço entre elas – em termos de profundidade.

A perspectiva aparece nas linhas retas da varanda e do muro – e ainda no desenho do perímetro dos canteiros, quando estes são enquadrados numa fotografia.

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Memórias. Imagens e experiências associadas a jardins de mistura. Cacos. Retalhos. Detalhes. Importantes nesta primeira apresentação dos jardins.

Durante o ano de 2003, ao mesmo tempo em que prestava os exames para o mestrado, cursava uma escola de marcenaria. E nessa escola vivi uma experiência relacionada com o olhar. Na marcenaria, minha educação visual era toda baseada em geometrias, proporções e composições já clássicas. Superfícies perfeitamente lixadas, sem marcas, verniz-francês. Aos poucos notei que algo se passara com meu olhar, ele estava diferente, notava todas as imperfeições, as quais, antes, simplesmente não existiam – o olhar criava as imperfeições?! Os objetos, então, me pareciam feios, errados. Não gostava daquele olhar e pensava bastante a respeito do que acontecia – eu já havia relacionado educação e olhar.

Uma crise. Que ficou ainda melhor quando memórias da casa de minha bisavó e de seu jardim de mistura apareceram, sem mais nem menos, ou talvez para provocar e trincar a educação visual da marcenaria.

Eu via beleza naquelas memórias, naquelas imagens. Procurei jardins de mistura pelas cidades, encontrei inúmeros deles. Para escrever sobre suas imagens gerais7, seria pertinente começar com alguma onomatopéia de explosão, porque nessas imagens sempre admiro explosão de plantas, profusão de vida, vitalidade, viço. De pequenas áreas de chão irrompem formas e movimentos de vida, em mistura – não em desordem, como pensava naquela época 8.

As imagens gerais dos jardins eram provocativas porque não combinavam com a educação visual do curso de marcenaria e, mesmo assim, eu as considerava belas.

A partir daí revi minha proposta para o mestrado. Abandonei um jardim de Burle Marx. Decidi aproximar-me dos jardins de mistura, olhar para eles com mais cuidado e tempo, procurando..., bem..., não era algo que eu já esperava encontrar, e nem exatamente uma explicação... O que era bonito nesses jardins, ou como eu via beleza nesses jardins? O que eu poderia ver nas imagens desses jardins? Esta última, a indagação mais aberta e estimulante. Mas outras indagações apareceram – sobre a composição dos jardins, por exemplo –, desapareceram, ou se transformaram junto com o olhar.

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Jardim de Nalzira Moreira Silva

14 out. 2004

06 fev. 2005

Cerca de madeira, com tábua a indicar endereço. O portão marrom transforma-se em portão-que-já-foi-porta azul. Telhas em nova função: dar certa permanência a dois gestos iniciais, aqueles de juntar a terra e de juntar as plantas. E as telhas ainda se transformam em tijolos e pedras – num mesmo conteiro, de um canteiro para outro.

Jardim-canteiros ou canteiros-jardim. Os retângulos verticais não se repetem na calçada-não-calçada que vira jardim: os canteiros – sem compor simetria – têm formas circulares, curvas. Na bordadura de cravinas, um cuidado com detalhes, um capricho, também presente em outros jardins, de épocas e estilos diferentes. A uniformidade da linha de cravinas é um elemento da mistura – a uniformidade indica, aqui, mais um modo de compor.

Helicônias, dracenas, biris, primaveras, roseiras, crótons..., misturados, grande bicho vegetal que se avoluma, coloniza a cerca e simplesmente vai apagando, engolindo linhas horizontais de perspectiva. Bicho que migrará por debaixo da terra e reaparecerá noutros terrenos.

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Jardim de Maria Aparecida Silva Adorno

Abertura, buraco. Entrada para algum interior, portal para outros mundos, metáfora, em plena cidade. Matas... Cavernas... de Platão... de Altamira... Num jardim, histórias de entranhas, de forças interiores, de conhecimento, de origens.

Este não é um jardim do sol – o jardim também está por cima, ele envolve... por todos os lados. Luz filtrada, o que resulta em pequenas manchas indecisas de claridade e áreas de sombras. Ver e não ver, saber e não saber, expor e esconder, expor e proteger, absorver e refletir, segurar e devolver, segurança e insegurança, medo e calma, início e fim ... Tensões.

A razão sobe (ambição, esforço) e adentra... Retalhos luminosos, aqui e ali, somente. As plantas – outras forças – invadem... Linhas que não se mantêm retilíneas, faltam pedaços, há brilho de umidade – tudo está impregnado de umidade.

Um jardim encena sabe-se lá quantas histórias...

[...] o jovem antiquário Richard Payne Knight dizia que a verdadeira sublimidade vinha envolta num manto de lembranças e associações. A seu ver, o sublime não era apenas uma aparição que se imprimia nos sentidos inocentes. Ao contrário, a força de seu efeito emocional dependia da maneira como o observador reagia através de uma série de recordações [...]. 1

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Escrevo sobre jardins que denomino jardins de mistura. Escrever é um modo de criar memória, de dizer o que existe ou existiu para alguém, segundo alguém. Imagino o escrever sobre os jardins de mistura um “notar os jardins”, e não um “explicá-los”. Uma narrativa acerca dos jardins, alguns sentidos que vejo nos jardins.

Narrativa, em larga medida, a partir de e sobre imagens – inclusive com o uso de imagens para pensar a respeito de e para dizer de outras imagens.

Posso dizer, também, ou melhor, talvez seja necessário dizer logo aqui, no começo, que esta dissertação parte e circula em torno de uma só imagem, a imagem da mistura, da qual os jardins são manifestações particulares.

Experiências com o olhar e as imagens despertaram e ainda estimulam continuamente uma vontade de conhecer, de narrar, de seguir adiante.

Narrativa, também, a respeito de memória e conhecimento.

Um friso de pintura, desenhos misteriosos em amarelada ilustração de livro, ou num corpo de uma xícara, talvez em todo um aparelho de jantar. São galhos e folhas, que serpenteiam e logo se mostram criatura metade uma, metade outra... Certa gavinha, de repente, é cobra. Faunos saem de emaranhado de folhas e flores. Seres diferentes se misturam, a natureza combina e recombina.

Nos jardins de mistura, manchas, trincas, bolores, plantas embaraçadas ..., no tempo e no espaço. Sombras nas quais vemos existências efêmeras: uma cabeça, ou pés ..., mas de bicho ou de gente? Orquídeas florescem em rosas e hortênsias; em algum ponto, indistinto, talvez termine esta e comece aquela planta; telhas se enfiam na terra ...

Muitas imagens dos jardins de mistura, e, em especial, detalhes dessas imagens, fazem lembrar dos grotescos: pinturas romanas redescobertas no final do século XV e muito valorizadas pelo Maneirismo. Os grotescos são ricos em vegetação cheia de movimentos e cambiante, eles abrigam uma infinidade de seres híbridos, nascidos de certas aproximações de aspectos similares entre reinos e espécies. A mitologia greco-romana freqüentemente está presente – mitologia feita de mistura, de interpretações, de re-interpretações, de um mundo de versões, mitologia feita de continuidade de narrar criador.

Os grotescos, como os jardins de mistura, não se reduzem a decoração, são linguagem a dizer de algo, de um modo de pensar, por exemplo.

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Grotescos da Domus Áurea (séc. I)

Pinturicchio, Anunciação (detalhes), afresco 1501 Rafael, Loggia, Vaticano, afresco, 1516-7

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Grotescos Em 1480, foram descobertas, em Roma, soterradas pelas termas de Trajano (53-117 d. C.) e construções de vários imperadores, as ruínas da Domus Aurea de Nero (37-68 d. C.), palácio imperial edificado entre 64 e 68 d. C..

Os grotescos (do it. grotta: gruta, caverna) são imagens decorativas de afrescos das paredes da Domus Aurea. Movimento, volutas que ligam elementos das imagens e ainda se desdobram em seres fantásticos, quimeras. Máscaras, faces ... soltas no espaço ... Noto que, as imagens, apesar da liberdade de imaginação, não deixam de lado a simetria.

Rafael (1483-1520) e Pinturicchio (c. 1454-1513) visitaram as “grotte”. Os frescos de Rafael nas “loggie” do Vaticano trazem grotescos cuja leveza logo remete àqueles da Domus Áurea – nas “loggie”, eles ficam no centro e não em posição marginal. Na “Anunciação”, de 1501, fresco da Capela Baglioni, Collegiata di Santa Maria Maggiore, Spello, Pinturicchio apresenta pilares com grotescos, emoldurando cenas bíblicas – portanto, juntas, imagens cristãs e pagãs.1

Durante o século XVI, num contexto chamado de Maneirismo, diversos artistas procuraram caminhos diferentes da reprodução do real – da perspectiva linear, da composição, da harmonia e das cores da Renascença florentina. Os maneiristas utilizaram: contrastes de luz e sombra, contrastes de distâncias; figuras alongadas; variações inesperadas de escala; cores não-naturais e não-harmônicas ... Movimento, transformação e metamorfose, em lugar da forma estável.

Grotescos são importantes no ornamento maneirista, o que tem a ver com suas características: fundo plano de uma só cor, ausência da perspectiva; ausência da gravidade; presença constante de seres que misturam reinos; nenhuma preocupação de reproduzir o real ...

Serge Gruzinski2 destaca nos grotescos uma concepção de natureza: a matéria não acaba, as formas

estão em constante mudança; há mistura de espécies, com aparecimento de híbridos (noção de média natureza) ... Os grotescos manifestariam uma forma de pensamento da Renascença, pensamento analógico, interessado em semelhanças internas ou externas, em relações ocultas, sem grandes preocupações com fronteiras. Pensamento que aproxima – também em ensaios literários e gabinetes de colecionadores, por exemplo – o que parece inconciliável e distante, sem temor de paradoxos e contradições. O híbrido não é combinação sem sentido, mas resultado de “relações subjacentes”.

Os grotescos, mais do que simples ornamentação, constituem linguagem, alegórica, metafórica – retomada em diversos contextos, bem além do Maneirismo.

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Em cadernos, folhas de anotações e versões anteriores deste trabalho, encontro pensamentos em torno do nome dos jardins:

Continuar a pensar sobre como vou chamar tais jardins, não é questão pequena. Dar um nome ..., o nome que escolher será minha visão desses jardins [...].

Entendo meus jardins como mistura e ordem, ao mesmo tempo?

Nome dos jardins: talvez, da Introdução até o fim, permaneça “Jardins de mistura”. [A anotação parece uma “virada”, antes eu pensava que o nome não permaneceria o mesmo, talvez ele mudasse mais de uma vez, o que apareceria no texto.]

“Jardins de vida”. “Jardins de memória”. “Jardins acolhedores”. [Nomes imaginados por mim ou sugeridos por outras pessoas.]

Nomear algo é dirigir-lhe nossa atenção e dar-lhe certa importância. Implica em localizar, delimitar e atribuir qualidades para identificação do ser nomeado. “Jardins de mistura” foi o primeiro nome, e permaneceu. Hoje, talvez, tenha mais e, até mesmo, outros significados – procuro apresentá-los ao longo desta dissertação. Nomear é atribuir sentidos 9.

Ao nomear certos jardins “jardins de mistura”, comecei, por meio de escolhas, a atribuir sentidos para os jardins, para suas imagens, sentidos que, provavelmente, construíram caminhos para aproximar esses jardins dos grotescos, ou melhor, de uma visão a respeito dos grotescos, aquela de Serge Gruzinski10. A partir daí, experimentei um outro percurso do olhar, da imaginação, sobre as imagens dos jardins de mistura.

Jardins: espaços e imagens, manifestações de modos de pensar, de modos de olhar, manifestações de mitos, manifestações de pessoas, etc.

Ao aproximar-me dos jardins de mistura, de suas imagens, e tentar compreendê-los, decidi que também ouviria pessoas que criaram e mantêm esses jardins.

Maria Florio, Maria Aparecida Silva Adorno e Nalzira Moreira Silva, três mulheres que vivem em Rio Claro (SP), apresentaram-me seus jardins e memórias associadas a eles. Delas são os três jardins de mistura que, neste trabalho, aparecem em imagens fotográficas e palavras escritas. Destaco que são jardins localizados na frente das casas, diante das ruas, visíveis das calçadas. Transformei as conversas gravadas com essas mulheres em narrativas. Numa primeira versão, as narrativas abriam o trabalho,

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agora, podemos encontrá-las mais adiante, como se as mulheres dos jardins estivessem a observar meu jeito de cuidar daquilo tudo que elas me deram.

Mais do que “o que são esses jardins” esta escrita é um “como florescem em mim esses jardins”. Aqui, os jardins são suas imagens fotográficas, o que deles falam as mulheres e como os componho na escrita. Esta mistura, este modo de compreensão, foi uma escolha.

Organizei a dissertação em capítulos, com ou sem subdivisões, e textos que denominei “de entremeio”, estes últimos compostos com fonte diferente daquela dos capítulos e introduzidos por títulos no canto superior direito das páginas.

A partir de determinado momento do processo de escrita, busquei, ao arranjar os textos entre si (capítulos e entremeios), uma aproximação com meu próprio entendimento dos jardins: lugares complexos, de certa abertura para relações, de organização não-linear.

A questão não é simples, a escrita e o arranjo entre os textos têm a ver não apenas com os jardins, mas também, e entre outras coisas, com o que considerei a respeito de pensamento, conhecimento e escrita durante o mestrado.

Não proponho uma ordem pré-determinada para a leitura dos capítulos e textos de entremeio. A ordem da encadernação, embora pensada, construída, e à qual atribuo sentidos importantes, não é necessariamente a de leitura.

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Casa da Flor (São Pedro da Aldeia – RJ)

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Plantas de casa e palácio No início da realização deste estudo, em uma das disciplinas da própria Faculdade de Educação da Unicamp, assisti ao filme “O fio da memória”, de Eduardo Coutinho. Naquela ocasião, encontrei, pela primeira vez, referências à “Casa da Flor”, construída em São Pedro da Aldeia (RJ), por Gabriel Joaquim dos Santos (1892-1985), um trabalhador de salinas - São Pedro da Aldeia é município vizinho de Cabo Frio. Vi semelhanças entre a “Casa da Flor” e os jardins de mistura – penso que, exatamente, a mistura, numa consideração rápida e superficial –, anotei algo para voltar ... Mas rumei por outros caminhos ...

Durante as discussões do exame de qualificação, ouvi novas referências à “Casa da Flor”, acrescidas de associações com o “Palais Ideal”, do carteiro francês Ferdinand Cheval (1836-1924). Decidi olhar mais atentamente para essas obras de sonho e imaginação, arquiteturas extremamente elaboradas e na contramão de estilos dominantes, assim como os jardins de mistura. Li a respeito da “Casa ...” e do “Palais ...” e, por um bom tempo, observei imagens de ambos na internet1. A escrita de outras partes da dissertação levou-me a abandonar

temporariamente a “Casa da Flor” e o “Palais Ideal”. Na retomada, uma surpresa.

Ao rever imagens e textos, sentia que havia um grande silêncio interno, em outras palavras, como se houvesse uma grande porta de castelo medieval fechada, inexpugnável. Eu não encontrava relações dignas de nota entre os jardins de mistura e aquelas construções. E talvez porque tenha forçado um olhar por demais racional e analítico para a casa de Gabriel Joaquim dos Santos – o que, penso agora, impediu-me de “entrar” numa “obra de sonho e imaginação” -, enxerguei uma “Casa da Flor” muito diferente ... Os cacos de objetos inanimados, os cacos de objetos ... fixados, cimentados, imobilizados ..., causaram-me forte impressão – esqueci-me até mesmo de James Hillman e da “anima mundi”, “mundo almado” 2. Também

fiquei imóvel, não conseguia continuar ..., pensei que talvez fosse melhor deixar de lado a aproximação entre os jardins, a casa e o palácio.

Mas ainda havia outra questão: um certo receio de “perder” os jardins de mistura, ao aproximá-los, ou compará-los, com outros espaços – eu já fizera uma aproximação com os estúdios de nobres do Renascimento italiano.

Vários pequenos movimentos permitiram mudanças na situação, entre eles: reparar em meu próprio olhar e me perguntar sobre a possibilidade de olhares diferentes; e compreender que as aproximações realmente constituem um risco, que podem levar a desvios inúteis, mas ainda facultar novos pontos de vista, em todo caso, sempre fazemos aproximações, até as palavras que escrevo para pensar a respeito dos jardins vêm, muitíssimas vezes, de contextos culturais mais ou menos distantes. Em meio a esses movimentos, alguém – um olhar diferente – lembrou-me de que imobilidade não tem um sentido necessário de morte.

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Plantas de casa e palácio Gabriel Joaquim dos Santos, filho de uma índia e de um ex-escravo, começou a construir sua casa em 1912, portanto, quando contava aproximadamente vinte anos de idade. A “Casa da Flor” tem estrutura de pau-a-pique, com algumas pedras no chão e mesmo nas paredes. São três cômodos: sala, quarto e depósito. Gabriel saiu a embelezá-la toda apenas em 1923, a partir de um sonho, o qual lhe apresentou a imagem de um enfeite. Daquele ano até morrer, em 1985, não parou de recolher ou ganhar cacos e restos de objetos (ladrilhos, pisos cerâmicos, telhas, bibelôs, molduras, quadros, ossos, lustres, talhas, jarros, moringas, garrafas, faróis de automóveis, canos de pvc, manilhas, conchas marinhas, etc, etc, etc ...) e compô-los sobre as superfícies de paredes e do muro, ou na criação de nichos e adornos. Existem coisas escritas sobre as paredes. Gabriel manteve cadernos de apontamentos, nos quais anotava: a morte do cachorro muito estimado, a aposentadoria, as catástrofes naturais, os aumentos dos preços ... Os cadernos não estão organizados de modo cronológico e nem por assuntos: numa página podemos encontrar registros (sempre datados) de décadas e assuntos muito diferentes3.

Ferdinand Cheval nasceu em Charmes-sur-Rhône, pequena aldeia do sudeste da França. A família era pobre. Filho do segundo casamento de um pai já viúvo, Cheval perdeu a mãe aos onze e o pai perto dos vinte anos de idade. Na década de 1850, mudou-se para Hauterives, lugarejo perto de onde nasceu. Trabalhou como padeiro, até em regiões vizinhas, mas firmou-se, mesmo, como carteiro, trabalho que conseguiu aproximadamente aos trinta anos de idade e manteve até a aposentadoria, aos sessenta, em 1896. Depois de ficar viúvo e deixar o filho sob os cuidados de sua cunhada, Cheval, aos quarenta e dois anos de idade, casou-se com uma mulher também modesta e mãe de dois filhos, mas cujo dote permitiu adquirir os terrenos necessários para o “Palais ...”. Enquanto percorria diariamente cerca de trinta quilômetros para entregar cartas, Ferdinand Cheval imaginava um palácio, compósito de arquiteturas antigas, castelos, torres, grutas, casas, jardins, estátuas e uma infinidade de ornamentos. A construção do “Palais Ideal”, começou um ano depois do segundo casamento, em 1879, e prolongou-se por trinta e três anos, até 1912. Antes de se aposentar, Cheval trabalhava dobrado: durante o dia, juntava pequenas pedras, seixos, voltava à noite para apanhá-los com um carrinho de mão e levá-los para continuar sua obra ... O Palácio tem aproximadamente 25 metros de comprimento por 13 de largura, sendo a altura variável, entre 6 e 12 metros. Formas, nomes e escritos presentes em suas infinitas partes fazem referência a mitos, personagens históricos, tempos antigos ...: “Fonte da Sabedoria”, “Os Três Gigantes” (César, Vercigétorix - “defensor da Gaulia” -, e Arquimedes) de uma das fachadas, “Túmulo Egípcio”, “Torre da Barbárie” ... 4

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Palais Ideal de Ferdinand Cheval (Hauterives – França)

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Plantas de casa e palácio Flores de pedra.

Flores que viraram pedra? Gabriel e Ferdinand transformaram flores em pedra? Ou o sentido seria o de tirar flores da pedra, criar a partir da pedra?

“[...] Tudo caquinho transformado em beleza!” 5 – responde Gabriel.

Essas duas possibilidades de sentido de “flores de pedra” me aparecem como imagem figurada das experiências de Gabriel Joaquim dos Santos e Ferdinand Cheval, experiências de limites, de fronteiras, de dilemas: pedra dura, inerte, ou flor, vida, criação. E eles juntaram tudo em seres de mistura, híbridos, flores de pedra. Romperam fronteiras.

Prestaram atenção nos sonhos, cuidaram da memória das imagens reveladas. Eles experimentaram, deixaram-se animar por uma grande energia criativa. Num certo sentido, foram “tomados” pela criação:

“[...] eu sou governado pra fazer essas coisas por pensamento e sonho.” (Gabriel J. dos Santos 6)

[...] eu construía, em sonho, um palácio feérico ultrapassando a imaginação, tudo aquilo que o gênio de um humilde pode conceber, com grutas, torres e jardins, castelos, museus e esculturas, buscando fazer renascer todas as antigas arquiteturas dos tempos primitivos.

Meu sonho era tão bonito que sua imagem ficou gravada, durante dez anos, pelo menos, em minha memória. (Ferdinand Cheval7)

Nas imagens da “Casa da Flor” e do “Palais Ideal”, a energia criativa está na explosão, na profusão de materiais, de cores – estas últimas, na “Casa...”, de formas, de misturas, de combinações, de figuras, detalhes, temas, pequenas invenções, criação de novos sentidos...

Nas duas obras, ou melhor, na realização delas, também reconheço um sentido de missão. Décadas e décadas de trabalho ..., a “Casa da Flor” e o “Palais Ideal” assumiram dimensões bastante destacadas na vida de seus criadores – e aqui há uma diferença, ao menos de grau, com relação aos jardins de mistura. Porém, não pretendo reduzir tudo a um único sentido, e missão soa, demasiadamente, como esforço, sacrifício.

Gabriel e Ferdinand sentiam gosto pelo que faziam, experimentavam prazer no ato de criar, na fruição e na contemplação de suas obras. Não é despropositado repetir: eles criavam, quer dizer, exercitavam uma das mais elevadas faculdades humanas. Criaram a própria casa, o próprio palácio.

Às vezes saio para ver essas coisinhas que eu mesmo faço e eu mesmo fico satisfeito, me conforta. (Gabriel Joaquim dos Santos8)

De noite, acendo o lampião, me sento nessa cadeira, ó que vista, ó que alegria para mim. Quando eu acendo a luz, e vejo tudo prateado de noite, fico tão satisfeito! Me conforta (...) Tudo caquinho transformado em beleza! (Gabriel Joaquim dos Santos9)

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Plantas de casa e palácio Maria Florio, Maria Adorno e Nalzira fazem seus jardins e cuidam deles. Ora, provavelmente sentem o mesmo prazer de criar e contemplar ...

Olha o canteiro [...] tudo o que o senhor pensar tem aí: onze-horas, hortelã, poejo, mamão, margaridinha, quebra-pedra, hortênsia, gerânio ... Aquele é um pé de cacau [...]. Ameixa [...]. Isto tudo ..., para o senhor ver ..., é bom demais plantar, tudo o que o senhor planta dá. (Nalzira)

[...] Ah, se alguém chegasse e dissesse “Dona Nalzira, pode plantar mandioca por tudo aí, limpar e encher de flor ...” Seria um prazer trabalhar naqueles tempinhos da tarde. E se as pessoas passam e querem comprar, o senhor acha que eu vou vender? [...] Isso para nós é uma grandeza. Um ajudar o outro [...]. (Nalzira)

Cuidar das plantas, para mim, é uma coisa muito especial ... [...]. (Nalzira)

[...] A área [varanda] também estava sem nada, sem graça. “Não, eu vou colocar um negócio verde para melhorar, para refrescar.” Gosto do modo como as plantas ficaram ...

Gosto de estar na área ... porque é mais fresco ... e tem muito verde. Olhe, este antúrio [...] veio da minha cunhada, lá de Minas. No vaso, uma folhagem ... Aquela orquídea [...], quando abre ... [...]. [...] Naquele vaso, ao lado da porta, [...] olhe ..., ela sobe ao lado da porta, vai crescendo em volta, passa pelo alto e atravessa toda a parede. [...]. (Maria Florio)

Olha, hoje prestei atenção nas minhas orquídeas ..., que vão abrir, olha ..., quer ver que linda? [...] (Maria Adorno)

Compreendo a “Casa da Flor” e o “Palais Ideal” como realizações, em certo sentido, sem antecedentes. Nas duas obras vejo formas, figuras e linguagens conhecidas: flores, molduras, nichos, colunas, castelos, casas, mosaico, fotografia, escultura, escrita, etc. Porém, as imagens gerais da “Casa ...” e do “Palais ...” são inusitadas, originais, constituindo ruptura, irrupção de algo singular. A “Casa da Flor” e o “Palais Ideal” têm, em certo sentido, caráter de exceção.

Os jardins de mistura, embora sejam, em muitos aspectos, diferentes uns dos outros, têm muito mais de continuidade do que de ruptura. As mulheres cresceram observando e ajudando a cuidar de jardins semelhantes, jardins de suas mães, de seus pais, de parentes, de vizinhos ... Penso que os jardins de mistura nos acompanham há muito tempo, talvez venham do mundo rural. Existem inúmeros desses jardins espalhados pelas cidades, fazem parte do dia-a-dia, e eles são notados, mas a repercussão não é a mesma daquelas arquiteturas de caráter excepcional – as criações de Gabriel Joaquim dos Santos e de Ferdinand Cheval gozam de proteção estatal, conseguida depois de muito esforço de grupos que chamaram a atenção da população e das autoridades para essas obras.

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Plantas de casa e palácio A “Casa da Flor”, o “Palais Ideal” e os jardins destoam da arquitetura moderna, funcional, uma vez que estão mais relacionados ao sonho, ao afeto, à memória, à intuição, ao que é instintivo..., e menos à racionalidade industrial10.

A casa depende do espírito, é uma casa espiritual. (Gabriel Joaquim dos Santos11)

[...] Meu sonho era tão bonito que sua imagem ficou gravada, durante dez anos, pelo menos, em minha memória. (Ferdinand Cheval12)

Essas criações de pessoas comuns, e não de especialistas (divisão do trabalho), estão repletas de ornamentos, linhas imprevisíveis, colagens e misturas. É interessante notar que mesmo objetos feitos pela indústria entram na composição dos jardins de mistura e, especialmente, da “Casa da Flor”, mas depois de percorrerem caminhos mais ou menos longos e/ou atribulados, ao final dos quais, muitas vezes, chegam em pedaços, ou cacos – nos jardins, entram objetos mais inteiros, na “Casa ...”, tanto objetos inteiros, quanto cacos, o que tem a ver, entre outras coisas, com os novos sentidos, com os novos usos que lhes são atribuídos.

Não sei o que tenho eu com os cacos. Quebra um prato, eu fico contente que me dê um caco, depois eu transformo o prato numa flor. Fico tão satisfeito. (Gabriel Joaquim dos Santos13)

Eu quero os cacos porque dos cacos eu vou fazer as coisas para as pessoas se admirar, pra quê quero comprar uma jarra nova? Jarra comprada eu não preciso. Isso não tem graça. (Gabriel Joaquim dos Santos14)

Os jardins de mistura, a “Casa da Flor” e o “Palais Ideal” são lugares e imagens de sonhos, de desejos, de gostos, de pequenos prazeres, de necessidades, de conhecimentos, de relações sociais, etc ..., lugares e imagens de vidas únicas, combinações impossíveis de serem reproduzidas.

Esta não é uma casa, eu não quero que esta casa seja uma casa, isto é história, é uma história porque isto foi feito por pensamento e sonho. (Gabriel Joaquim dos Santos15)

Gabriel Joaquim dos Santos criou sua casa numa linguagem: o mosaico. Linguagem porque, ao observar as imagens da “Casa da Flor”, sinto forte impressão de que não houve desenho prévio, o mosaico não foi um meio para o desenho. O mosaico teve autonomia. Nas paredes, plantas com folhas e flores apareceram do mosaico e não do desenho. Do lado de fora da casa, as flores de cacos de pratos, de lâmpadas, de pedaços de cerâmica ..., em vasos ou não, são mosaico, fizeram-se – destaco, com este “fizeram-se”, o processo de feitura e não o resultado – em mosaico – assim, posso até chamar um objeto pronto de escultura, mas ele não se fez em escultura – ao menos não nos sentidos mais tradicionais de escultura –, porém, em mosaico.

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Plantas de casa e palácio A “Casa da Flor” pode ser vista como um grande mosaico composto de mosaicos menores. E pouco importa saber onde ele começou, mais interessante é sentir que não se conteve de não-se-sabe-o-quê e pulou, saltou..., talvez do plano para o espaço, das paredes para as esculturas e lustres, para o chão... Em movimento, acabou por incorporar mais linguagens, como a fotografia e a escrita.

Associei o mosaico aos grotescos, estes últimos, linguagem européia, mas também utilizada por ameríndios durante a Conquista espanhola (México, século XVI). Os grotescos permitiram misturar crenças, mitos e conhecimentos dos ameríndios com elementos culturais da Europa16. Tanto os grotescos

quanto o mosaico admitem mistura.

Na “Casa da Flor” aconteceu uma mistura entre alguém animado por uma energia, por uma capacidade criativa, por uma necessidade de lidar com algo, de manifestar algo..., em outras palavras, aconteceu uma mistura, um encontro entre Gabriel Joaquim dos Santos e os materiais disponíveis na região de São Pedro da Aldeia. A própria mistura de materiais deve ser destacada, uma vez que nos mosaicos da “Casa da Flor” existem conchas marinhas, pedaços de objetos feitos em olarias artesanais, cacos de peças produzidas por indústrias “de ponta”, como, por exemplo, a automobilística, etc. Imagino não mais os pedaços de objetos, porém, tudo aquilo para o que eles podem remeter. Lembro-me dos estúdios dos nobres do Renascimento, de suas coleções de objetos ...

Um mosaico apresenta, ao mesmo tempo, dois tipos de imagens. Ele traz os pedaços, os cacos, as pequenas partes, e as imagens gerais, abstratas ou figurativas – Gabriel criou imagens abstratas e figurativas, e muitas delas organizadas pela idéia de simetria.

Um mosaico mantém a unidade, o conjunto, a forma geral, ou as formas gerais, e as trincas, ou junções, e o esfacelamento, a fragmentação.

Aquele que faz um mosaico pode começar de um plano pré-concebido, de uma imagem geral, que irá perseguir, ou pode trabalhar a partir do que tem à mão, ou com os cacos e objetos que aparecerem... Ele também pode mudar os planos, mesmo com o mosaico já iniciado.

O “Palais Ideal”. Um mosaico, porém, não a partir da consideração dos milhares e milhares de pedras recolhidas e utilizadas por Fernidand Cheval para dar forma aos castelos, torres, grutas... Vejo mosaico na reunião, na colagem dessas imagens de sonho, de imaginação.

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Plantas de casa e palácio Criando, cuidando e fruindo de mosaicos-jardins, mosaicos-casas ou mosaicos-palácios, Maria Florio, Maria Adorno, Nalzira, Gabriel e Ferdinand talvez componham, ou tenham composto, pedaços, cacos, momentos da vida, sonhos, revelações, memórias, afetos, vontades, energias, esperanças, relações, horas do dia, trabalhos do dia, da semana... Quem sabe... uma alquimia espiritual... transformação de cacos de memórias, de afetos ... – cheguei a idéia semelhante ao pensar a respeito dos estúdios renascentistas.

E talvez eu realize algo muito parecido ao escrever.

(Venho para estes parênteses em meados de janeiro de 2007, dissertação em processo de diagramação. Ao reler este texto de entremeio, lembrei-me de que eu considerava que havia escolhido um caminho que realmente me interessou, ou seja, abordar a “Casa da Flor” pela discussão do mosaico. Lembrei-me também de que avaliei que a escolha foi boa, mas que eu avançara apenas até certo ponto, talvez tivesse apenas iniciado uma discussão. Bem, ao reler, dei mais um pequeno passo, que gostaria de anotar. Se entendo o mosaico e o jardim como linguagens, então, não deixo de concluir que, ao lidarmos com eles, colocamo-nos num universo de relações e produção de sentidos.)

As mulheres fazem os jardins principalmente com plantas. Gabriel e Ferdinand construíram a “Casa...” e o “Palais...” com pedaços de objetos, conchas, pedras, etc.

De um lado, seres vivos, animados, e, de outro, coisas, inanimadas? Estaria aí uma grande diferença, um grande afastamento entre os jardins de mistura e as duas construções?

Provavelmente há diferenças. Escolher as plantas ou escolher as pedras, os cacos, não são escolhas iguais, imagino. Mas notemos que a separação que apresentei no parágrafo anterior é apenas uma visão de mundo. Gabriel via as coisas de outra maneira:

Tudo o que está morto palpita. Não apenas o que pertence à poesia, às estrelas, à lua, aos bosques e às flores, mas também um simples botão branco de calça a cintilar na lama da rua... Tudo possui uma alma secreta, que se cala mais do que fala.

É caco, é caco, mas é coisa de muita importância.

(Gabriel J. dos Santos17)

Uma diferença entre plantas e pedras pode ser estabelecida a partir de considerações a respeito de tempo e memória, a respeito de durabilidade, permanência...

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Plantas de casa e palácio En cherchant, j’ai trouvé.

Quarante ans j’ái pioché, Pour faire jaillir de tere Ce palais de fées.

Pour mon idée, mon corps a tout brave, Le temps, la critique, les années. La vie est um rapide coursier, Ma pensée vivra avec ce rocher.18

Inscrição no interior do Palais Ideal

Procurando, encontrei. Quarenta anos eu cavei, Para fazer saltar da terra Este palácio encantado.

Por minha idéia, meu corpo enfrentou muitas coisas. O tempo, a crítica, os anos.

A vida é uma breve corrida,

Meu pensamento viverá com este rochedo.

De pedra ser. Da pedra ter

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Por entre jardins e suas imagens... e deles para outros percursos...

Jardins de nomes

[...] Em São Paulo, no quintal da casa de minha mãe, tem alguns pés de maniva, que aqui é mandioca, mas lá nós chamamos a maniva de maniva, e a mandioca de mandioca..., as pessoas também falam pedacinho de pau, mas na minha terra chamávamos de maniva. [...] “Dá pro senhor me vender umas manivinha?” “O que é isso?” “É da mandioca, aqueles pau que sai da mandioca [...].” (Nalzira)

Depois de uma ou duas conversas com as mulheres dos jardins de mistura – peço licença para chamá-las assim – e ao transcrever nossos diálogos, senti determinado incômodo: em certos momentos, as falas convertiam-se em sucessão de nomes. Lembrava-me, ainda, e vivamente, de caminhar atrás de Nalzira, enquanto ela indicava, uns após outros, nomes e propriedades das plantas. Nomes. Pareciam pedras, num sentido inerte. Aos poucos, de tanto mantê-los presentes em mim, ganharam pele.

Nos primeiros tempos, apenas relacionei os nomes à quase ausência de indagações a respeito de afetos e sentimentos despertados pelo olhar para o jardim, pelo estar no jardim. “O que você sente...?” não foi pergunta fácil de apresentar durante encontros tão episódicos.

Porém, os nomes revelaram-se pedras de pisar, caminhos de alguma segurança. Nomes, caminhos para dentro e para fora de nós mesmos, caminhos entre seres humanos... O humano é palavra, existe enquanto palavra1. E os nomes são palavras.

Nos jardins de mistura, onde as imagens se entrelaçam, os nomes das plantas e as memórias pessoais a elas associadas têm o poder de destacá-las, distingui-las individualmente. Nesses jardins, as plantas não ficam “invisíveis”, não perdem suas singularidades, as mulheres reconhecem todas as plantas, e contam histórias de cada uma delas.

Maria Florio – e Florio já é um nome que se harmoniza com jardim:

– Antúrio, hortênsia, rosa, rosinha, lírio, brinco-de-rainha, orquídea, orquídea chuva-de-ouro, melindroso, brilhantina, vinca, begônia, palma, espada-de-são-jorge, bico-de-papagaio, margarida, arruda, hortelã, alfavaca, samambaia, bananeirinha e copo-de-leite – ela diz todos estes nomes, eles aparecem em sua narrativa2.

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Imaginemos um diálogo, mas aceitemos que os nomes constituem ou remetem a algum conhecimento. Maria Adorno continua, reafirma e acrescenta:

– Mamona, margarida, girassol, beijo, beijo-inglês, orquídea, sapatinho-de-nossa-senhora, lírio-do-campo, cravo-de-defunto, crisandália, rosa, rosinha, olga ou olguinha-branca, ameixa, fruta-do-conde, amora, acerola, romã, mamão, begônia, boldo, hortelã, erva-cidreira, brilhantina e babosa.

E Nalzira:

– Primavera, coqueiro, orquídea, manga, moranga, mandioca, antúrio, chuchu, cenoura, cana, cacau, doril, boldo, cravo, cebolinha, cravo-de-defunto, cravínia, erva-doce, abacaxi, feijão-de-corda, berinjela, maracujá, maracujá-erva-doce, hortelã-graúda, inhame, mamão-papaia, jiló, fava, couve, couve-manteiga, araruta, pimentão, crista-de-galo, carquejo, acerola, lorna-verde, quiabo, rosa, pinguinho-de-ouro, alecrim, chapeuzinho-de-couro, onze-horas, pecadinho, levante, quebra-pedra, poejo, margaridinha, hortênsia, gerânio, ameixa, milho, batata, espirradeira, alho, romã, mastruz, babosa, lírio, angico-do-mato ou da-beira do-brejo, dália, abacate, chorão, urucum, capim-cidreira, banana, jaca, maniva e pepino.

Os nomes, freqüentemente, vêm acompanhados de memórias ou falas sobre características das plantas:

[...] O lírio, eu trouxe da casa de uma menina de lá de cima..., ela foi arrancar e jogar fora, mas [...]. (Maria Florio)

[...] As hortênsias necessitam de poda, uma vez por ano, em agosto, junho..., aí dão mais flores, ficam mais bonitas. [...]. (Maria Florio)

[...] Esta, a brilhantina, é como mato, onde você enterra, ela brota; ali tem uma touceira...

Lá está a babosa, ela é boa para o cabelo, pelo menos dizem, eu apenas plantei, nunca fiz uso... (Maria Adorno)

Aliás, vários nomes trazem, em si mesmos, inúmeras referências explícitas a certos aspectos dos vegetais, como forma, tamanho, valor atribuído a elas, poder curativo ou medicinal, etc. Alguns nomes remetem à esfera religiosa. Vejamos: espada-de-são-jorge, sapatinho-de-nossa-senhora, brinco-de-rainha, crista-de-galo, rosinha, olguinha, babosa (analogia a partir da natureza suculenta da planta), quebra-pedra e doril, entre outros.

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Nomes dos jardins de mistura1

Olha, aquela é rosa... mas ela é linda, igual a esta daqui, que tem um nome esquisito... Na mureta, ao lado das orquídeas, tem uma..., ela ficava lá fora, mas resolvi plantar na panela de ferro; é bonita, seca por uns

tempos, depois, na época certa, brota tudo de novo. Jardins da Babilônia. Jardim das delícias. Jardim do Éden.

Campos Elíseos.

Olha, aquela é planta boa de lavar o pé..., fazer chá..., a gente chama de doril... [tom zombeteiro, como se não fosse o modo correto de chamar], mas tem [risos]... O nome é doril, doril do mato, é muito bom. Jardim acolhedor.

Esta aqui, nem sei como é que se chama, ganhei, bem pequenininha, de uma senhora dali de cima [...].

“e assim eu faço meu jardim” – na fala de Dona Nalzira pode estar o título, você está fazendo o seu jardim.

Aquela branquinha é a olga... Aquele outro cravo, se é de defunto? Não... [risos..., em toda esta passagem a voz dela está mais bonita, mais aberta, com um colorido diferente], não é bem de defunto, é um cravo bonito, ele dá assim..., as pessoas deram o nome de cravo-de-defunto, mas não é..., é um cravo...

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Nomes dos jardins de mistura

coroa imperial

Não me lembro do nome daquela. É meio azedinha e serve para problema de úlcera. O senhor [...], o senhor nem sabe o efeito que tem, de tão boa que ela é..., é uma erva boa.

Não conheço todas as plantas do jardim, há muitas que não sei o nome, vou plantando. Coisa de fazer pizza [orégano]...

Essa..., não sei como se chama não..., eu sabia o nome, mas não sei..., trouxe lá de Minas, também. Faz tempo.

Veja, esta é quebra-pedra, é boa contra pedra no rim. Qual é o nome desta? Uma florzinha linda, vermelhinha, mas não sei o nome dela, não guardo nome, não adianta, viu? Não entra na cabeça.

Esta aqui é hortênsia..., não... É orquídea.

O corredor é o lugar onde mais aprecio ficar, penso que é por causa da..., da planta..., dessa que se parece com um antúrio.

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Parênteses. No universo iorubá, que no Brasil se misturou com o português e com o indígena, as plantas têm poderes curativos e mágicos. Os babalaôs iorubás transmitem oralmente seus conhecimentos sobre as plantas – conhecimento restrito aos iniciados. Eles precisam saber combinar os vegetais e prepará-los, juntando outros elementos. No entanto, as composições não agem sem palavras mágicas, ou seja, expressões, frases de encantação (“ofò”). As palavras, os nomes e as conexões estabelecidas entre as palavras são muito importantes. Por exemplo, nos “ofò”, o verbo que define a ação esperada figura, freqüentemente, como uma sílaba do nome da planta – o “ofò” precisa do nome da planta. Por sua vez, o nome da planta indica características dela, características que remetem ao(s) seu(s) uso(s).

[...] Numa receita para acabar com a tosse (oògun ikó), devem-se pilar folhas de ójà (Quassia undulata, Simaroubaceae), misturá-las com suco de òro`mbó wéwé (Citrus aurantifolia, Rutaceae, a lima-da-pérsia), tomar três colheres dessa preparação todas as manhãs e pronunciar o ofò:

Ójà já ikó kúrò l’órùn. Òrómbo bó ikó kúrò l’órùn.

Ójà, arranque [já] a tosse da garganta.

Òrómbo, descasque [bó] a tosse da garganta. 3

Nos jardins de mistura, não saber os nomes de modo algum tem o sentido necessário de desconhecimento a respeito das plantas:

Olha, você viu aquelas plantinhas, nos vasinhos? São lindas, não é? Mas não sei o nome de nenhuma, apenas o da primeira, que é begônia; agora, do resto... Em agosto, essas plantinhas morrem, em julho, agosto, já não é tempo de planta, elas ficam feias e morrem. Então, você precisa conservar as mudinhas para, quando chegar setembro, você replantar tudo [...]. (Maria Adorno)

Mas os nomes são importantes, sua ausência e seu esquecimento são notados e lamentados:

[...] falo a verdade para você, não guardo nome de planta, não sei nome de planta [...]. (Maria Adorno)

[...] A do vaso..., esqueci..., são muitos nomes. [...]. (Nalzira)

[...] como que fala o nome disso daí, meu Deus do céu? [...] (Maria Adorno) Com seus nomes sabidos ou não, lembrados ou esquecidos, com suas qualidades deveras, parcialmente, ou quase nada conhecidas, as plantas encontram lugar nos jardins

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de mistura. Nesses jardins acolhedores, nem tudo é conhecido e explicado, eles aceitam retalhos de conhecimento, vazios, lacunas... – vejo um sentido de experimentação.

Nos três anos durante os quais me voltei para os jardins de mistura, ouvi, falei, li e escrevi os chamados “nomes populares” das plantas, os quais me permitiram conversar com muitas pessoas, navegar pela internet e estudar vários livros, na tentativa de identificar as plantas, na busca de imagens, de saberes, de mitos e memórias relacionados com elas, as plantas. Utilizados por amplo universo de pessoas, entre as quais as mulheres dos jardins de mistura, as benzedeiras, os paisagistas, os cientistas..., os nomes populares são poderosos. Cabem alguns pensamentos a respeito deles.

Um nome popular pode juntar o que o olhar científico separa, isto porque os olhares são diferentes, interessam-se por coisas diferentes... Várias árvores de espécies distintas, por exemplo, são conhecidas pelo nome de “corticeira”.

Por outro lado, e aqui está, neste momento, o interesse maior, também é freqüente que a um nome científico correspondam vários nomes populares. Nomes que podem reafirmar um sentido ou não. A variação do nome popular – de um tempo para outro, de uma região para outra... – é manifestação simbólica de abertura para descobertas, para criação de novos usos, de novos sentidos para uma planta. Novas relações entre plantas, e entre gentes e plantas.

Impossível deixar de notar nomes tomados de empréstimo da indústria farmacêutica, verdadeiros “nomes de mistura”: Nalzira chama certa planta de doril – provavelmente, a Alternanthera brasiliana (L.) O. Kunt. –, também conhecida como melhoral, anador, terramicina, etc.

Jardins de memórias e sentimentos

Em vez de procurar nas narrativas 4 das mulheres os porquês de um jardim, ou o que é essa necessidade de fazer e cuidar de um jardim – e compreendo que tudo isto tem relações com sentimento, afeto e memória –, experimento, de início, outro caminho, olho para as imagens dos jardins, pois ali estão as “coisas” com as quais lidam as mulheres.

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Livros de mistura Ao utilizar dois livros sobre plantas e seus usos, acabei por ver semelhanças entre eles. Os livros são “Plantas ornamentais no Brasil” 1 e “Ewé: o uso de plantas na sociedade iorubá” 2.

O primeiro livro traz, em suas últimas páginas, dois índices, um de nomes científicos das plantas – e as espécies foram agrupadas por gênero –, outro de nomes populares. Através de uma dessas “entradas”, vamos até as páginas que apresentam as plantas – uma planta por página. E, a cada página: a) duas fotos, uma de enquadramento mais geral, outro de detalhe de folhas e flores – ou seja, ampliação de partes vegetais importantes para as classificações científicas; b) nomes científicos e vários nomes populares; e c) pequeno texto a respeito de características gerais da planta (tipo de folha, altura, origem, clima ao qual está adaptada, modo de reprodução, etc). Na verdade, as fotos servem tanto ao leigo, quanto ao especialista, elas podem ser observadas de modos diferentes. O texto é simples, voltado para questões de interesse prático.

O segundo livro tem dois glossários: a) nomes iorubás > nomes científicos e b) nomes científicos > nomes iorubás > nomes populares. Um dos anexos exibe ilustrações de plantas, com seus nomes científicos, iorubás e populares. As receitas medicinais e mágicas ocupam sempre duas páginas, a da esquerda, em iorubá, e a da direita, em português – esta última, com nomes científicos e populares, e as encantações (“ofò”). É necessário ressaltar que o iorubá é uma língua oral, grafada por pesquisadores britânicos no século XIX. As encantações carregam o conhecimento das ações esperadas das plantas, permitindo memorização e continuidade desse saber. Daí que, num universo oral, as encantações sejam frases curtas, marcadas por assonâncias, repetições, jogos de palavras, etc. Além disto, as palavras só têm força, poder, quando faladas. A organização das receitas na forma de um livro implica em transpor para o universo da escrita formas da oralidade, formas produzidas de acordo com características, limites, necessidades e possibilidades da oralidade. Escrever, então, implica, inescapavelmente, em mistura e transformação – no papel, uma encantação é, ao mesmo tempo, oralidade e escrita, porém, no papel, as palavras encontram-se “desativadas”.

Nos dois casos, os livros abrigam mais de uma linguagem, mais de uma forma de pensamento, ou conhecimento, enfim, abrigam elementos de contextos culturais diferentes. Ambos os livros permitem diversas entradas, a partir desses contextos. Livros de mais de um mundo.

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Nas imagens, vejo muitas plantas, diferentes umas das outras. Sobreposições, colagens. Colcha de retalhos de idéias e ações que vão até que novas se iniciem: uma bordadura inconclusa, um bloco de plantas que em algum momento deve ter sido apenas de uma espécie... Os jardins são belos e cheios de detalhes.

É importante sentir o que aflora: vida, movimento, transformação, busca de interstícios vitais, diversidade, acolhimento, mistura, cuidado com a vida, beleza... e criação. Penso que as mulheres experimentam tudo isto nos jardins – e talvez, para essas mulheres, algumas experiências sejam possíveis especialmente nos jardins. As imagens trazem um sentimento de vida, de gosto pela vida...

Quem faz um jardim deita raízes, com expectativas de permanência, de futuro com momentos de paz, tranqüilidade, harmonia e felicidade (estados comumente associados aos jardins, comumente...). Assume, de outra parte, a responsabilidade de cuidar das plantas, de manter a vida e a esperança. Todas as formas de vida, com seus ciclos vitais, animam nossa imaginação a respeito da existência e do tempo. Entre as plantas, muitas prometem flores e frutos, em épocas mais ou menos determinadas, que vão e voltam. Outras, de ciclo mais lento (ou alongado?), sugerem paciência e aceitação de nossos limites, porque não poderemos acompanhá-las em todo o seu percurso. Plantar aponta para o futuro, dá início, cria possibilidades, manifesta um sentimento de fé.

Maria Florio, Maria Adorno e Nalzira, ao falarem dos jardins, lembram-se da infância, acendem memórias de pessoas, memórias de casas, lugares e jardins:

[...] Minha mãe tinha jardim com muitas flores. Era parecido com este, era assim..., olha..., era como aqui..., plantado só na beirada. Havia um terreiro grande, então, a gente plantava assim..., quase igual aqui, mas apenas na beirada, e as flores eram outras, flores que a gente quase não vê por estes lados. [...] Mas uma delas, que existe até hoje na casa de minha mãe, é chamada brinco-de-rainha e dá muitas flores pequeninas. Ainda vou trazer uma para mim. (Maria Florio)

Você vê a crisandália? Minha mãe gostava demais dessa flor... nossa!..., eu lembro, quando era criança, tinha, assim..., um corredor de tudo quanto é cor... sabe?... era muito bonita a plantação da minha mãe, ela só plantava crisandália, de toda cor... (Maria Adorno)

Minha mãe disse que comecei a plantar logo que nasci. Mais ou menos aos cinco anos de idade, eu ia nadar no rio, onde via coisas bonitas e trazia para casa. Pequenas flores. “Olha mãe...!” Ela fala que, desde pequena, tenho esta mentalidade. [...]. (Nalzira)

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Jardim de Maria Florio

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Margarida da casa da mãe, lá de Minas...

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Um terreiro todo plantado em volta, um corredor de crisandálias de cores sortidas, um rio margeado de flores... Talvez os jardins tenham imagens que não vejo porque me faltam outras imagens – nada está escondido. Alguma imagem do terreiro vive no jardim de Maria Florio. As relações entre as imagens devem ser complexas. Imagino, por exemplo, a possibilidade de relações por meio de metonímia – parte remetendo ao todo – e, ao mesmo tempo, considero que o passado, em certo sentido, é presente, ou seja, também é criado pelo presente: um modo de olhar para o passado cria imagens do passado – “a memória é uma ilha de edição”5.

Aqui, o principal é notar que memória e sentimento, ou afeto, andam juntos. O afeto tem papel importante na “edição”. No caso das mulheres, são memórias felizes de tempos e lugares, memórias boas de suas infâncias.

As plantas dos jardins de mistura fazem lembrar de pessoas, do lugar de onde elas próprias, as plantas, vieram, do momento, ou da situação, em que foram “conseguidas”, ou encontradas, ou resgatadas, etc. A simples compra, sem deixar grandes marcas, não é freqüente, apenas Nalzira mencionou este meio de levar plantas para os jardins.

Algumas plantas apenas fazem lembrar, mobilizam memórias simples, remetem a sentimentos constituintes dos jardins:

É difícil lembrar de qual foi a última mudinha que coloquei no jardim. Como disse antes, às vezes saio, vejo uma plantinha e já trago para casa. Consegui tudo assim..., vou à minha cunhada, ela tem uma rosa... O lírio, eu trouxe da casa de uma menina de lá de cima..., ela foi arrancar e jogar fora, mas eu falei: “Não, me dá que eu vou levar”. Trouxe e plantei tudo aí. Aonde vou, se eu vejo uma mudinha, peço e planto [...]. (Maria Florio)

Estes são os pés de acerola. Dias atrás, minha menina tirou muita acerola. Este talvez frutifique ano que vem, é um pé que meu vizinho deu a muda. [...]. (Nalzira)

[...] Esta é orquídea, mas é linda demais, olha, olha, vai abrir ainda, olha... Essa aí [...] o dono da minha casa deu a touceira e enfiei no tronco da árvore [ameixeira], todo ano ela dá flores. [...]. (Maria Adorno)

Viu? Tem bastante vasinho..., olha aí..., é que, às vezes, topo com uma plantinha e falo “Ihh, jogar fora?” Fico com dó, pego e ponho num vasinho..., vou pondo tudo em vasinho, aí vai enchendo [...]. (Maria Florio)

[...] Às vezes, compro uma mudinha na cidade e já planto, ela vem pequenininha, mas, com o tempo, cresce... (Nalzira)

Referências

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