• Nenhum resultado encontrado

Por que uma pesquisa no ensino médio?

No documento LETRAMENTOS ESCOLARES NO ENSINO MÉDIO (páginas 30-35)

Conforme o artigo 21 da LDB, a educação escolar brasileira divide-se em Educação Básica e Educação Superior. Segundo o artigo 22 da LDB, a Educação Básica “tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”.

O nível básico de educação escolar no Brasil é de 12 anos e compõe-se de três etapas sucessivas – Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio – e, diferentemente do nível superior, é compulsório e tem constitucionalmente assegurado o caráter público e gratuito.

No caso do Ensino Médio como etapa conclusiva da Educação Básica, a carga horária anual prevista atualmente não pode ser menor do que 2400 horas em três anos letivos de, no mínimo, 200 dias. A obrigatoriedade e a gratuidade ocorreram em caráter progressivo a partir dos anos 70. Com a LDB, em 1996, essa etapa adquiriu definitivamente o status compulsório e, a partir de então, muitas questões acerca da expansão, da qualidade, do financiamento e gerenciamento de recursos, além da necessidade de uma caracterização dessa etapa da Educação Básica surgiram/surgem.

A necessidade de se estabelecer uma identidade para essa etapa final da Educação Básica deve-se ao fato de que, por conta do tardio processo de democratização do Ensino Médio não profissionalizante no Brasil e do processo de globalização e modernização tecnológica acelerada no mundo, ainda permanece a dicotômica necessidade de (i) atender às demandas do desenvolvimento tecnológico e econômico e (ii) formar os que desempenharão funções intelectuais, ou seja, os que comandarão.

A obrigatoriedade do Ensino Médio positivamente expandiu os anos de escolaridade média dos brasileiros, mas trouxe à tona problemas como escassez de recursos financeiros, materiais e humanos, já que até então havia investimento apenas nas outras etapas da Educação Básica que eram obrigatórias e na Educação Profissional com vistas à formação técnica de trabalhadores.

Outro problema advindo desse processo de democratização do Ensino Médio e do progressivo aumento da permanência dos jovens brasileiros na escola é o questionamento da qualidade do ensino ofertado. Ao contrário do que muitos defendem, o baixo rendimento, o analfabetismo funcional e a evasão diagnosticados atualmente não são frutos da deterioração de uma realidade escolar anterior, mas problemas inerentes a nossa atual realidade, pois

não seria mesmo possível esperar que a nova clientela desta nova escola apresentasse um rendimento semelhante ao apresentado pela clientela da escola seletiva das décadas anteriores. A escola hoje, em todos os níveis, abriga contingentes extraídos das mais diversas camadas da sociedade e passa a reproduzir, na esfera limitada da educação escolar, todas as dificuldades inerentes à preparação de uma imensa e heterogênea coletividade para a convivência nesse mundo novo que começa a constituir-se no país. (BEISIEGEL, 2002, p. 39-40)

Toda essa transformação na vida escolar brasileira não é isolada das práticas sociais, culturais, políticas, econômicas e linguísticas. Por isso, documentos oficiais como a LDB e os PCN já previam que essa heterogeneidade coletiva presente na escola devido ao processo de democratização, como apontou Beisiegel (2002), também traria consigo a necessidade de legitimação de identidades, de culturas, de variedades linguísticas e de letramentos.

À medida que todas as camadas da população passam a ter acesso a bens culturais de elite e a escola passa a reconhecer como legítimas práticas socioculturais e linguísticas dessas camadas, a democratização tende a se consolidar, pois é a partir da confluência entre os letramentos locais e escolares, e não da sua dissociação, que se alcançará uma escola realmente democrática e a formação de um cidadão realmente crítico.

Isso pode ser observado em processos cada vez mais crescentes de busca por direitos e legitimação de grupos até então excluídos. Um grande passo é o reconhecimento institucionalizado das variedades linguísticas10, de grupos como as crianças e os adolescentes11, os indígenas e os afrodescendentes12, e de temáticas como gênero e sexualidade13, presente em documentos orientadores para a comunidade escolar lidar com questões antes nunca levantadas.

Esse novo perfil heterogêneo de alunos e professores presentes na escola pública de Ensino Médio também aponta para a heterogeneidade de práticas sociais de uso da língua e consequentemente faz surgir a necessidade de estudos sobre como essa questão tem sido vivenciada, tanto pelos professores quanto pelos alunos.

Este estudo defende, então, que professores e alunos são agentes dos letramentos escolares, pois, se por um lado, assumem papéis que contribuem para enfatizar as relações de poder e de assimetria na escola, por outro lado, as interações entre eles apresentam conflitos em direção ao questionamento dessas relações pautadas na perpetuação do poder simbólico, baseado no domínio de uma suposta norma padrão da língua, de um tipo exclusivista de leitura e escrita, e do conhecimento acadêmico e elitista.

Entender as angústias dos jovens que estudam nas escolas públicas brasileiras de Ensino Médio, especialmente nas de periferia, é essencial para conduzirmos nossas práticas em sala de aula. E essas angústias são o tempo todo evidenciadas pela forma como se constrói a dinâmica interacional nas salas de aula. Não são questões retóricas as levantadas pelos nossos alunos, nem são por acaso os altos índices de evasão e retenção, mas uma forma de esses jovens expressarem a insatisfação com as diferenças sociais, com a falta de oportunidade para o futuro e

10 Cf. Parâmetros Curriculares Nacionais.

11 Cf. Lei n° 8.069/1990, conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente.

12 Cf. Lei n° 10.639/2003, que inclui no currículo oficial nacional a obrigatoriedade do ensino de

História e Cultura Afro-brasileira, e Lei n° 11.645/2008, que inclui no currículo oficial nacional a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena.

13 Cf. Ações do Ministério da Educação (MEC), da Secretaria Especial de Políticas para as mulheres

(SPM), da Secretaria Especial de Políticas Públicas de Igualdade Racial (SEPPIR), da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) e do Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) como o curso de formação para professores da rede pública do Distrito Federal – Gênero e Diversidade na Escola –, em convênio com a Universidade Aberta do Brasil e a Universidade de Brasília.

com o modelo de ensino pautado na legitimação de saberes da elite e da limitação interacional a eles imposta pelo próprio sistema educacional.

Como aponta Kuenzer (2009, p. 28):

o acesso ao nível superior (a continuidade dos estudos, portanto) se dá pelo domínio de conteúdos gerais, das ciências, das letras e das humanidades, saberes de classe, os únicos socialmente reconhecidos como válidos para a formação daqueles que desenvolverão as funções dirigentes. É o que Gramsci (1978) denominou de princípio educativo tradicional na vertente humanista clássica.

Assim, para os jovens concluintes do Ensino Médio, faz-se necessária uma escola realmente democrática e mais humanizada em que se articulem a formação científica e a tecnológica, entre o pensar e o saber fazer, entre a ciência, o trabalho e a cultura, como recomenda a LDB, e entre o ser e o pensar.

Entendo que uma das formas de se conseguir essa articulação é a escola estar cada vez mais voltada para o desenvolvimento de ações cooperativas e interações mais simétricas [ou menos assimétricas!] e mais humanizadas no ambiente escolar, com todos os agentes escolares despertos para as relações de poder, explícitas e implícitas, presentes nessas interações, e para o desenvolvimento da competência linguístico-comunicativa em práticas sociais letradas institucionalizadas e valorizadas, pois

saber utilizar a leitura e a escrita nas diferentes situações do cotidiano são, hoje, necessidades tidas como inquestionáveis tanto para o exercício da cidadania, no plano individual, quanto para a medida do nível de desenvolvimento de uma nação, no nível sociocultural e político (MORTATTI, 2004, p. 15).

O estudo de Ana Lúcia Silva Souza (2011) sobre o movimento hip-hop da periferia de São Paulo demonstrou que os jovens geralmente têm sua cultura negada pela escola, especialmente quando ela é diferente da cultura branca ocidental. O que marca a vida escolar para esses jovens rappers, em sua maioria negros e da periferia, “é o que frequentemente deixamos de lado quando pensamos em currículo: a sociabilidade, a interação entre pares e suas identidades sociais” (SOUZA, A. L. S, 2001, p. 95).

Geminada à formação dicotômica de professores no Brasil – atender a necessidade de mão de obra do mercado e formar os pensadores – está a origem socioeconômica pobre da maioria desses professores, que carregam consigo um acervo cultural e linguístico desprivilegiado em relação ao acervo que a sociedade julga ser melhor. Por questões identitárias, ao assumir o papel social de professor, veem-se obrigados a imbuírem-se do poder de oprimir e deslegitimar a cultura que não corresponde ao socialmente aceito.

A escola precisa reconhecer o acervo linguístico-cultural de professores e alunos; prezar pelas relações entre as várias áreas do conhecimento (interdisciplinaridade) e entre o sujeito, o conhecimento e o mundo que o cerca (contextualização de conteúdos), como acertadamente preconizam os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM).

As concepções que vigoram nesses documentos são políticas e fundamentadas numa proposta de desenvolvimento de práticas sociais letradas e multissemióticas na escola, considerando-se que, para fazer progredir os letramentos escolares no Ensino Médio, os agentes envolvidos precisam se comprometer com um projeto de educação voltado para a cidadania e de educação linguística pautado na língua em uso, não um uso artificializado, mas efetivo.

Não se pode negar que, além de todas as expectativas elitistas relacionadas à escola, existem políticas públicas mais amplas, permeadas de ideologias muitas vezes não acessíveis aos agentes diretamente nela envolvidos, como pais, alunos, gestores e professores. Por isso, toda e qualquer ação no sentido de descrever, entender e discutir o universo sociolinguístico e interacional da escola, com vistas à revisão das práticas nela implementadas, é bem-vinda.

Uma das formas mais contundentes de se questionar e até modificar a realidade institucional da escola, e de fora dela, é por meio da ação linguística. É poder saber “o que é que é ideologizado na linguagem” (FIORIN, 1997, p. 7), materializada por meio dos gêneros discursivos nas práticas sociais diárias, para poder “tentar se adaptar às práticas interacionais já existentes” (MOITA LOPES, 2001, p. 175).

Assim, o foco desta pesquisa são as ações que nós, professores, agentes dos letramentos escolares, implementamos na escola para intervir no processo de

formação das práticas sociais letradas institucionalizadas, especialmente as escolares, dos indivíduos que frequentam o Ensino Médio.

No documento LETRAMENTOS ESCOLARES NO ENSINO MÉDIO (páginas 30-35)