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Trajetos percorridos

No documento LETRAMENTOS ESCOLARES NO ENSINO MÉDIO (páginas 100-104)

OS LETRAMENTOS ESCOLARES

3.4 Trajetos percorridos

Alguns trabalhos na perspectiva dos letramentos como prática social têm dedicado especial atenção aos letramentos não institucionalizados a fim de entender a heterogeneidade das práticas letradas não valorizadas (HEATH, 1982; STREET, 1993; 1995; 2003; BARTON, 1994; 2001; BARTON & HAMILTON, 1998; BARTON; HAMILTON & IVANIČ, 2000; HAMILTON, 2002).

No entanto, há trabalhos como os de Miriam Camitta (1993) e de Amy Shuman (1993), sobre a escrita de adolescentes norte-americanos dentro e fora da escola e a relação entre a escrita e a oralidade desses jovens, que enfatizam a necessidade de a escola rever o tratamento dado aos letramentos não escolares e às produções orais e escritas dos jovens.

Em seu estudo de três anos na Community High School, na Filadélfia, Camitta (1993) constatou que as crenças e suposições que ela, como professora, tinha sobre a escrita dos estudantes precisavam ser revistas e que, infelizmente, essas crenças são dominantes nas escolas norte-americanas [talvez nas de todo o mundo]. A pesquisadora, ao longo do estudo, tomou ciência dos textos e contextos não escolares dos jovens colaboradores, identificou a organização da cultura da juventude e constatou que a escrita é uma atividade importante e variada entre aqueles jovens. Os materiais produzidos por eles fora da escola vão de rap, paródias, poemas, versos, diários até cartas.

Segundo a autora, em geral, os jovens têm interesse pela escrita livre das restrições da escola e isso pôde ser observado por ela no compartilhamento oral de textos lidos e na leitura em voz alta que eles fazem entre si, além dos comentários que fazem uns para os outros acerca do que leem.

escrever, pensar, falar e sentir são atividades interconectadas, múltiplos canais e níveis de discurso sobre um tópico. [...] Adolescentes expressam seu interior através da escrita, acreditando que, no ato de escrever, eles estão contando a verdade sobre si mesmos. [...] Para os adolescentes, escrever é pessoal e social, um ato de invenção no qual ações cotidianas são formadas e influenciadas pelo contexto e pelo valor simbólico dos textos escritos. [...] Os adolescentes sabem que a escrita é transformadora e que suas práticas sociais e artísticas de escrita são influenciadas pelo conhecimento. Este conhecimento é um quadro de referência mutuamente compartilhado, que informa as tradições que cercam a produção e a prática da escrita. (p. 243- 244)

Dessa forma, a escrita e a oralidade mostram-se imbricadas e a escrita figura como parte intregrante do cotidiano adolescente, funciona como forma de autorrevelação e/ou de autoafirmação desses adolescentes, além de ser um instrumento colaborativo entre eles.

Outra pesquisadora, Shuman (1993), passou três anos convivendo com os jovens de uma escola de Ensino Fundamental da periferia da Filadélfia (junior high school) para investigar as narrativas orais e escritas deles com foco na escrita colaborativa. Assim como Camitta (1993), Shuman (1993) teve de rever a crença de que a escrita e a oralidade estão dicotomicamente separadas e que a escrita é usada apenas formalmente [para marcar uma distância autoritária, geralmente como forma de exclusão dos que não dominam a norma padrão] e a fala, informalmente [como meio intrínseco da interação face a face, não monitorada, com língua vernacular].

A pesquisa mostrou que apenas um tipo de escrita é privilegiado institucionalmente, geralmente o que utiliza norma padrão, e que o ponto crucial dos estudos sobre letramentos deve ser quem, como e por que tem sido atribuído status, e consequentemente poder, a formas particulares de escrita, isto é, apenas a determinadas formas de escrita e não a outras. A pesquisadora também constatou como os adolescentes negociam, contestam, manipulam, reproduzem e brincam com o discurso autoritário dos adultos, no caso, os professores.

O estudo de Shuman (1993) evidencia que

Em certos casos, a apropriação [de algumas formas de escrita] serve para reafirmar o status dos participantes e, em outros, ela realoca a autoridade. Onde as pessoas competem por autoridade [como na escola], em um domínio de uma posição sobre a outra, a apropriação ameaça romper o status social dos participantes. A

apropriação de formas [de escrita] dos adultos para os propósitos dos adolescentes não necessariamente empodera os adolescentes. [...] A escrita colaborativa não necessariamente cria diferentes tipos de textos ou diferentes alinhamentos entre os participantes na interação. Múltiplas autorias não necessariamente minam autoridade. A escrita vernacular não necessariamente empodera. A escrita é um campo de batalhas contemporâneo para todo tipo de questões e a própria escrita, colaborativa ou não, é um dos mais apropriados terrenos para revelar ou esconder outras agendas. (p. 267-268)

Assim como nos estudos de Labov (1972) sobre o inglês vernacular falado pelos jovens negros nas periferias das grandes cidades dos Estados Unidos, os estudos de Camitta (1993) e de Shuman (1993) demonstram que a riqueza das práticas de linguagem das comunidades urbanas que vivem nas periferias das grandes cidades e que, muitas vezes, utilizam linguagens não padronizadas ainda precisa ser legitimada e melhor entendida. Nesse rol de usos linguísticos, destacam- se os repertórios linguísticos e culturais de crianças e jovens, geralmente excluídos socialmente e/ou não reconhecidos pela escola.

No Brasil, segundo Kleiman (2008, p. 15), os estudos sobre os letramentos ainda são “ao mesmo tempo incipientes e extremamente vigorosos”, mas configuram:

uma das vertentes de pequisa que melhor concretiza a união do interesse teórico, a busca de descrições e explicações sobre um fenômeno, com o interesse social, ou aplicado, a formulação de perguntas cuja resposta possa promover a transformação de uma realidade tão preocupante, como a crescente marginalização de grupos sociais que não conhecem a escrita. [grifos meus]

Muitos desses trabalhos brasileiros sobre os letramentos partem do ponto de vista de resultados do funcionamento (ou não) das teorias sobre aquisição da leitura e da escrita e o uso que delas se faz até os primeiros oito anos de escolarização (KLEIMAN, 2008; KLEIMAN & SIGNORINI et. al., 2001; CAXANGÁ, 2007; MOLLICA, 2007; CASTANHEIRA et. al., 2008; SOARES, 2009; MOLLICA & LEAL, 2009; ROJO, 2009; VÓVIO, SITO & GRANDE, 2010). Também há estudos dos letramentos sociais, que partem da visão dos letramentos como prática social de resistência (LOPES, 2004; SOUZA, 2011; CARVALHO, 2011), mas ainda há poucos trabalhos sobre os letramentos escolares no Ensino Médio.

No Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, Letouzé (2009) realizou um estudo intitulado Letramento crítico e a relação desenvolvimento- aprendizado da leitura no Ensino Médio. É um trabalho multidisciplinar, embasado na Psicologia do Desenvolvimento, que se propõe estudar o letramento crítico, considerado pela autora como o reconhecimento de si como participante e produtor de múltiplos discursos de gêneros diferentes que repercutem socioculturalmente.

A pesquisa de Letouzé (2009) se deu em uma escola pública de Ensino Médio do Distrito Federal, com a colaboração de um professor e sua turma, com registro de diários de campo, vídeo e áudio. A autora afirma que o objetivo do trabalho é analisar, nas interações e nas práticas de leitura da turma, o “desenvolvimento da leitura autônoma, da reflexão crítica e do sentido de agência dos alunos” (p. 19) e considera que a leitura autônoma e crítica é “condição essencial para a construção do sentido de agência dos alunos, a prática da cidadania e a inserção e agência em práticas sociais diversas” (p. 19).

O trabalho parte do pressuposto de que a leitura é uma “ferramenta para a inserção e agência social dos alunos em diferentes esferas da sociedade, um instrumento para a inserção social consciente do papel social que representa, da sua função como agente social” (p.14) e, também, busca “considerar o caráter ativo dos alunos no próprio processo de construção do conhecimento dentro do contexto escolar, na tentativa de evidenciar as formas pelas quais o letramento crítico é favorecido” (p. 15).

No entanto, os dados demonstram o caráter teleológico das atividades de leitura desenvolvidas na classe, saltando aos olhos a finalidade única de cumprir o previsto no currículo, ou seja, o ensino de leitura na turma é esvaziado de significado, os textos, geralmente literários, não visam à mobilização, muito menos promovem a consciência crítica, como previsto pela pesquisadora. Ao professor, fica restrito o papel de mediador, que ele cumpre bem.

O Ensino Médio, por sua recente história como Educação Básica (23 anos a contar da Constituição de 1988), portanto obrigatória, ainda é uma etapa escolar sem identidade constituída, com uma política curricular em constante transformação e com professores e livros didáticos sem espaço próprio e devida valorização.

A carência de estudos sobre e de políticas para essa etapa final da Educação Básica precisa ser suprida a fim de, especialmente, fornecer subsídios para

formação inicial, continuada e aperfeiçoamento de professores de áreas específicas com vistas ao desenvolvimento de aprendizagens, tanto para a vida escolar, quanto para uma futura vida profissional, em que o domínio da língua, em suas modalidades falada e escrita, nas diversas circunstâncias socioculturais, se dá sobremaneira com a apropriação desse bem social via escola.

Além disso, em contextos institucionalizados como a escola, é preciso que se busque a confluência de práticas sociais letradas valorizadas e de práticas sociais letradas não valorizadas, materializadas em gêneros discursivos, pois, para o sujeito sobreviver numa sociedade como a do século XXI, é necessário que ele tenha oportunidades de se apropriar de bens sociais como a leitura e a escrita, no sentido lato, não apenas via escola, mas principalmente nela, pois, nas palavras de Mortatti (2004, p. 33), “saber ler e escrever, utilizar a leitura e a escrita nas diferentes situações do cotidiano continuam sendo necessidades inquestionáveis tanto para o exercício pleno da cidadania quanto para a medida do nível de desenvolvimento de uma nação”.

Isso não quer dizer que o sujeito que não domina a escrita não é virtuoso ou inteligente, ou que não consegue sobreviver, mas que, lhe sendo negado o direito básico de trafegar competentemente numa sociedade grafocêntrica, que cultua a escrita e que nela baseia a maioria de suas práticas, ele não atinge ou exerce plenamente sua cidadania. Ao contrário, lhe sendo dado esse direito, é por meio dele que o sujeito pode vir a mudar a realidade, tornando-se um sujeito agente, pois, como enfatiza Buzato (2007, p. 141): “se uma visão de linguagem é uma visão de inclusão, também a toda visão ou modelo de letramento está necessariamente atrelada uma concepção de linguagem e uma concepção de sociedade”.

No documento LETRAMENTOS ESCOLARES NO ENSINO MÉDIO (páginas 100-104)