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Capítulo 1: A SUPERAÇÃO DA METAFÍSICA

1.4. Por que superar a metafísica?

O intento de superar a metafísica no qual Vattimo, após Nietzsche e Heidegger, tem se dedicado, não tem como finalidade a superação de um erro ou a substituição de um esquema filosófico por outro. Também não é uma reflexão vazia cuja única finalidade é mostrar que nada tem finalidade, como muitas vezes é acusado o pensamento pós-moderno. Tem, na verdade, um caráter ético. A superação da metafísica justifica-se por ser esta violenta. Então, o que Vattimo busca em Nietzsche e Heidegger é uma reflexão que supere o esquema forte e violento da metafísica.

Que Vattimo quer dizer quando afirma ser a metafísica violenta? Para ele, ela é violenta porque tem o ser como presença, como algo que pode ser manipulado, decifrado e possuído. É a imagem forte do ser, impositiva, determinante, contra a qual ele busca um pensamento fraco, que não se concebe como o mais verdadeiro, muito menos o único, mas que segue o aviso de Nietzsche de que não existem fatos, apenas interpretações, e isso já é uma interpretação. A questão gira em torno do seguinte: se é possível apreender o ser é possível também chegar a sua verdade, verdade contra a qual não se pode afirmar nada, que faz calar todo discurso, todo diálogo, cujo único sentimento que se pode ter é o de admiração (PAI, p. 52). Que teria alguém a oferecer àquele que possui a verdade? Quem está mais próximo do ser, ou que chega à sua verdade está em grau de superioridade diante do outro. Pode impor sua vontade porque é a única correta, pode até mesmo emitir sentenças sem justificativas. Gusdorf (1960, p. 51) concorda quando diz que os metafísicos têm uma ilusão de soberania por se compreenderem como conhecedores dos princípios. Para ele

O filósofo crê poder formular, de uma vez para sempre, as regras do legítimo uso do pensamento e da ação. Como homem da eternidade que é, ou deve ser, deixa-se fascinar até certo ponto por sua própria argumentação e com relativa freqüência consegue impor ao senso comum a lisonjeira imagem da personagem que ele próprio criou.

Ele ainda afirma que

O metafísico clássico não pode escapar à tentação política. Possui o monopólio da verdade. De sua existência particular transfere-se para a essência universal e, em vista disso, possui o segredo que deve servir de lei para a humanidade inteira. Em acordo com o preceito do sábio, e por autoridade da razão, a prática deve estar sujeita à teoria. A vontade de

poder do pensador que, no termo de sua experiência mental, pretende impor a toda a humanidade a solução por ele encontrada, prolonga-se muito naturalmente num despotismo da razão. (...) Negar-se a ceder à exigências deles equivale a desobedecer à própria verdade (1960, p. 53)16. Frederico Pieper (2007, p. 39) diz que a metafísica tem esse caráter violento porque “ignora sua posição no espaço e no tempo, ou seja, dentro de determinada tradição. O ponto de onde constrói seu discurso acaba se configurando como não-lugar, fora da temporalidade”. Para o metafísico a verdade é universal, nunca uma verdade histórica, que pode se dar como não-verdade em outra cultura ou época.

É importante entendermos também que Ocidente e metafísica se confundem, não dá para pensar em um sem o outro17. Portanto, quando Vattimo denuncia a violência da metafísica não quer dizer que seja algo próprio dos filósofos, mas do pensamento ocidental. Sendo assim, é a idéia de que existem verdades absolutas e que é possível se chegar a elas que geram governos totalitaristas, grupos terroristas, guerras, doutrinas religiosas excludentes, etc. Tanto o ataque terrorista às Torres Gêmeas em 2001, como a invasão do Afeganistão e do Iraque pelas tropas americanas são exemplos dessa violência: ambos os lados entendem ser os portadores e defensores da verdade. Vattimo também lembra da violência da moral cristã que se apóia em verdades absolutas e princípios eternos: “É violência metafísica, de forma geral, toda a identificação que predominou nos ensinamentos tradicionais da igreja, entre lei e natureza” (DC, p. 142). Para ele o cristianismo conservará um caráter violento enquanto ainda estiver preso à tradição metafísica (DC, p. 144), por isso ele fala de uma secularização da mensagem cristã como a possibilidade de uma religião não- metafísica, como veremos no último capítulo. Em sua reflexão sobre política e pós- metafísica, Vattimo é categórico em afirmar que a esquerda política, se quiser ser realmente influente e eficaz deve assumir uma atitude niilista, o que quer dizer, segundo Rossano Pecoraro (2006, p. 195), que não poderá apoiar suas reivindicações nem ao menos na tese de igualdade entre as pessoas, que sempre a caracterizou. “O princípio da dissolução (ou redução) da violência é, ainda, o único capaz de doar novamente a palavra à esquerda sobre fenômenos essenciais das sociedades

16 Um bom exemplo dessa “ilusão de sabedoria” encontramos em A república de Platão, onde na

sociedade ideal por ele vislumbrada a educação dos cidadãos e o governo deveriam ser confiados aos filósofos, os portadores de uma sabedoria superior, aqueles que conhecem a verdade do ser.

17 Afirmando a associação entre metafísica e Ocidente Vattimo não quer dizer que não haja uma

metafísica oriental, mas que o Ocidente foi construído sobre o pensamento de matriz grega e cristã. Isso tem sua importância sobretudo quando se compreende que o Ocidente é a terra do fim da metafísica por conter em si os elementos propícios ao seu esvaziamento, expresso na narrativa cristã da kénosis, que será melhor discutida à frente.

industriais avançadas, ou seja, a cultura do supermercado e dos fundamentalismos reativos”.

Como exposto acima, a superação da metafísica é, diante de sua violência, uma questão ética. Não somente uma querela teórica, mas um esforço de razão prática. É por isso que Vattimo diz que o projeto heideggeriano tem como conseqüências a redução da violência em todas as suas formas, seja no âmbito subjetivo ou social. Por isso, “A redução da violência implica também, evidentemente, em uma redução da ordem, da soberania, seja na teoria, seja na prática” (DM, p. 163). Mas lembramos que a superação da metafísica não é rompimento, é Verwindung, o que quer dizer que tentar sair da metafísica sem levá-la a sua radicalidade, ao desvelamento de sua essência, buscando distorcê-la através da Andenken, da rememoração de sua história, é dar continuidade ao ciclo de violência. Afirmar a superação da metafísica como rompimento é por si só uma afirmação violenta, pois imprime uma sentença diante da qual as outras vozes devem se calar. Nesse sentido Sützl (2001, p. 58) diz: “No pensamento fraco qualquer ‘solução’ do problema da violência da metafísica supõe uma maior violência. Por isso, uma aproximação ‘não-violenta’ à metafísica é possível somente quando esta se reconhece como herança de mais de dois mil anos de filosofia ocidental e logo se ‘torce’ em um sentido alheio a ela”.