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Por um teatro à serviço da pernambucanidade: o teatro missionário e

1 Cultivando um teatro com palavras: a formação de uma memória coletiva para o

1.2 Por um teatro à serviço da pernambucanidade: o teatro missionário e

Como foi dito no tópico anterior, nos anos de 1940 surgiram dois grandes modelos para o fazer teatral em Pernambuco. E com eles, estabeleceu-se em Pernambuco, uma rivalidade que colocou em lados opostos o TAP e o TEP. No entanto, esses grupos, apesar de terem constituído dois pensamentos teatrais diferentes, que foram responsáveis pela modernização cênica e dramatúrgica do teatro pernambucano até o final dos anos cinquenta; na prática foram mais semelhantes do que se divulga historicamente e acabaram juntos conferindo a este teatro um caráter bacharelesco e missionário, que se tornou hegemônico até os primeiros anos da década de sessenta.

Esse teatro missionário e bacharelesco constituiu em Pernambuco aquilo que Bourdieu define como “campo artístico e intelectual” na medida em que o sistema de relações de produção, circulação e consumo de bens simbólicos relativos ao teatro foi ganhando autonomia em relação a outros campos, pois como diz o estudioso francês:

De fato, à medida que se constitui um campo intelectual e artístico [...] definindo-se em oposição ao campo econômico, ao campo político e ao campo religioso, vale dizer, em relação a todas as instâncias com pretensões a legislar na esfera cultural em nome de um poder ou de uma autoridade que não seja propriamente cultural, as funções que cabem aos diferentes grupos de intelectuais ou de artistas, em função da posição que ocupam no sistema relativamente autônomo das relações de produção intelectual ou artística, tendem cada vez mais a se tornar o princípio unificador e gerador (e portanto, explicativo) dos diferentes sistemas de tomadas de posição culturais e, também, o princípio de sua transformação no curso do tempo (BOURDIEU, 2007, p.99).

Para Bourdieu, esse processo de automização de produção intelectual e artística depende do surgimento de artistas e intelectuais inclinados a seguir exclusivamente a tradição artística e intelectual dos que lhes antecederam, liberando assim sua produção de qualquer dependência social de outros espaços institucionais, sejam eles a Igreja, a Academia ou o poder político (BOURDIEU, 2007, p.101). O campo intelectual e artístico, portanto, deve criar regras próprias. E em Pernambuco, a existência de uma tradição artística e intelectual é

facilmente percebida, haja vista a trajetória e o significado para a cultura pernambucana de instituições importantes e tradicionais como a Faculdade de Direito e o Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, além, é claro da geração de intelectuais e artistas que se destacaram nos anos vinte, defendendo o regionalismo e o modernismo no estado.

Por fim, acrescenta-se ainda que apesar dessa autonomia, um campo intelectual e artístico não vive à margem do horizonte social. Seus artistas, por mais geniais que sejam, são detentores de um ponto de vista advindo de sua condição de classe, que embora seja fragmentada em frações, apresenta certas características reconhecíveis. Isso porque como nos ensina Pierre Bourdieu, o campo intelectual e artístico deve ser encarado como um

[...] sistema de posições predeterminadas abrangendo, assim, como os postos de um mercado de trabalho, classes de agentes providos de propriedades (socialmente constituídas) de um tipo determinado. Tal passo é necessário para que se possa indagar não como tal escritor chegou a ser o que é, mas o que as diferentes categorias de artistas e escritores de uma determinada época e sociedade deviam ser do ponto de vista do habitus socialmente constituído, para que lhes tivesse sido possível ocupar as posições que lhes eram oferecidas por um determinado estado do campo intelectual e, ao mesmo tempo, adotar as tomadas de posição estéticas ou ideológicas objetivamente vinculadas a estas posições (BOURDIEU, 2007, p.190).

O teatro bacharelesco foi um teatro praticado por grupos coordenados por uma liderança centralizadora e que possuíam um elenco erudito, constituído, normalmente, por bacharéis ou estudantes ligados às camadas economicamente mais elevadas da sociedade pernambucana. A arte era praticada por diletantismo ou como dever cívico e não como instrumento para a contestação da ordem social. As classes sociais menos favorecidas, de forma geral, eram tradadas de forma paternalista ou como ornamento.

Quando o TAP surgiu, por exemplo, ele atendeu a uma função simbólica importante na medida em que, numa sociedade diferenciada, não basta às classes mais abastadas se diferenciarem apenas do ponto de vista econômico, elas querem também ser diferentes por um estilo de vida particular, um refinamento não acessível para todas as classes. “A autonomização do aspecto econômico das ações nunca se realiza de maneira tão perfeita a ponto de fazer com que as ações mais diretamente orientadas para fins econômicos sejam totalmente desprovidas de funções simbólicas” (BOURDIEU, 2007, p.23).

E nesta “simbólica da posição de classe”, o TAP estabeleceu a partir do seu campo de atuação regras de refinamento para garantir a distinção desejada para a elite da qual fazia parte.Sobre os membros do TAP, o estudioso Décio de Almeida Prado se reporta assim: “São

amadores à maneira inglesa, pessoas que já não são mais crianças, médicos, advogados, professores, comerciantes, que não buscam no teatro outro fim, outra satisfação, além de representar” (Apud CADENGUE, 2011a, p.321).

Já Valdemar de Oliveira, se reportando ao TEP, defende a concepção que tinha de teatro e que certamente foi disseminada em seu próprio grupo: “Para o povo ou para a elite, exibindo-se nos teatros ou em palcos improvisados, o teatro feito por estudantes deve ter um cunho de aristocracia intelectual” (OLIVEIRA, 1956, p.6). Seu discurso não era diferente daquilo que diz Aloísio Magalhães, ex-integrante do TEP: “Eu acho que o grupo nosso era um grupo que tinha uma postura, inclusive, um pouco snob, sem querer, sem saber, mas era inevitável. E esse esnobismo, curiosamente, era voltado para ser um teatro para o povo” (apud CARVALHEIRA, 2011, p.283).

O TEP, apesar de seu esforço em representar o popular, também pode ser considerado bacharelesco. Vejamos o que escreveu Hermilo Borba Filho sobre o Teatro do Estudante do Brasil (TEB) que, segundo ele, deveria ser um exemplo a seguir no Recife, pela contribuição que estava dando à renovação do teatro brasileiro. Um posicionamento de 1940 que deve ser levando em conta para se pensar os objetivos dos estudantes do TEP:

Por tudo isto nós, estudantes das escolas superiores de Pernambuco, deveríamos imitar os nossos colegas do sul, fazendo alguma coisa útil, de proveitoso, pelo teatro nacional. Eu bem sei que as canseiras serão muitas, que o meio, talvez, nos seja hostil, que encontraremos, com certeza, grandes dificuldades. Mas o fim compensa. Faremos uma campanha séria, realizaremos um bocado de coisas honestas, enquanto não recebermos o canudo que nos tornará “homens sérios” para a vida (Apud REIS, 2008, p.51).

Naquela época, nos anos de 1940, os estudantes das escolas superiores no Brasil não eram revolucionários no sentido que será utilizado para designar os estudantes dos anos sessenta, por exemplo, e os seus vínculos com as classes dominantes eram evidentes. Até a política educacional integradora dos governos populistas dos anos de 1950, praticamente só os filhos das elites econômicas chegavam aos cursos superiores. “Os estudantes eram encarados como “futuros dirigentes do país” e isso estava perto da verdade [...] Era um pedaço das classes dominantes, cujo inconformismo era facilmente apontado como “coisa de moços” (BRANDT, [197-?], p. 12).

Podemos, a partir do discurso de Hermilo, que pretendia estimular atributos normalmente associados à condição de ser estudante ou de um vir a ser “homens sérios para a vida”, como o idealismo e a capacidade de se sacrificar por um ideal; supor que ele contava

com um tipo de identidade que fosse comum entre “os estudantes das escolas superiores de Pernambuco”, especialmente os da Faculdade de Direito do Recife, tradicional espaço de efervescência intelectual brasileiro. Criada em 1828, inicialmente em Olinda, e depois transferida para o Recife em 1854; no início do século XX, a Faculdade já inspirava em seus alunos a crença de que eram uma espécie de “arauto de um novo tempo, como uma elite escolhida. „O Brasil depende exclusivamente de nós e está em nossas mãos. O futuro nos pertence‟, dizia o paraninfo de 1900, como a afirmar uma legitimidade que não lhes fora concedida, mas antes assumida” (SCHWARCZ, 1993, p. 197).

Assim, os membros do TEP não poderiam ser compreendidos fora desta tradição, pois embora nos anos de 1930 a Faculdade de Direito do Recife tenha perdido o brilhantismo de antes, quando seus alunos se sentiam responsáveis diretos pela formação de uma nação brasileira ilustrada, para ingressar em um tempo que não lhe pertencia mais, em que a “modernidade” significaria “senso pratico e o direito deixava de ser uma missão para se tornar profissão” (SCHWARCZ, 1993, p.224); anos depois, muitos ainda cultivariam uma ideia de continuidade, como se os ideais e as práticas naquela instituição fossem os mesmos desde tempos “imemoriais”, como nos mostra Luiz Carvalheira: “A Faculdade de Direito do Recife sempre manteve a tradição – que é muito antiga – de centro cultural promotor de ideias renovadoras, fomentando o debate, propiciando a circulação de informações em seu meio, acolhendo ideias avançadas e cultivando ideais libertários” (CARVALHEIRA, 2011, p.134). Os estudantes do TEP seriam, portanto, sujeitos unidos por sua condição social e inspirados por uma tradição que lhes impulsionaria para a ação, pelo menos até que se tornassem “homens sérios” para a vida.

Além disso, o movimento dos estudantes do TEP ganhou a simpatia da intelectualidade do Recife, o que reforça a ideia de que longe de representarem uma contestação à ordem social vigente, eles estavam vinculados às classes dominantes e, como tal, propensos a constituírem um teatro bacharelesco. Sobre isso, diz José Césio Regueira Costa, na época diretor da Diretoria de Documentação e Cultura (DDC) da prefeitura do Recife: “um movimento honesto de cultura, que todos os intelectuais do Recife olham com a mais justificada simpatia” (Apud CARVALHEIRA, 2011, p.199). O diretor procurava, assim, justificar o patrocínio da DDC aos debates sobre cultura popular que o TEP organizava.

Assim, apropriando-se de Bourdieu, poderíamos afirmar que o TEP estava suscetível “a manter uma relação ambivalente tanto com as frações dominantes da classe dominante como com as classes dominadas”, por conta da ambiguidade estrutural de sua posição (BOURDIEU, 2007, p.276).

Por sua vez, o teatro missionário foi fundamentalmente aquele praticado com uma função civilizatória, ou seja, com a função de favorecer moralmente e culturalmente uma região e de dignificar o fazer teatral; o que, a rigor, significou uma tentativa de fortalecer e exaltar a própria cultura pernambucana. Neste caso, algumas diferenças separam o TAP do TEP, pois enquanto o primeiro buscava a dignificação da arte dramática vista como uma expressão das elites e almejava a satisfação estética deste segmento social; o TEP procurava representar a arte das camadas menos favorecidas, dialogando diretamente com seus produtores culturais e tinha a intenção de fortalecer o teatro nacional por meio da criação de uma dramaturgia regional.

Antonio Cadengue, apropriando-se das ideias de Mariângela Alves de Lima sobre o Teatro Brasileiro de Comédia26(TBC), afirma o seguinte sobre o TAP: “Trata-se de um teatro civilizador, pioneiro, que se encara como destinado a constituir um patrimônio cultural de uma sociedade que só ele está preparado para representar e satisfazer, uma vez que está apresentando a esta sociedade instrumentos inéditos para revelar-lhe sua imagem [...]” (Apud CADENGUE, 2011a, p.196). De fato, o TAP acabou sendo tratado como um espelho a partir do qual a sociedade pernambucana gostava de se identificar, sobretudo quando este protagonizava exitosas campanhas pelos grandes centros nacionais, especialmente o Rio de Janeiro e São Paulo. O colunista Isnar de Moura, por exemplo, afirmou a respeito da feliz excursão do grupo ao Rio de Janeiro, em 1953: “Certo que nenhum pernambucano deixou de acompanhar e se fazer feliz com a glória conquistada lá no Rio pelo nosso conjunto teatral” (Apud CADENGUE, 2011a, p.293).

Era a própria pernambucanidade que se beneficiava com o êxito do TAP, pois a associação era muitas vezes imediata, como demonstram os seguintes depoimentos recolhidos a partir do livro de memórias de Reinaldo de Oliveira, que se tornou o líder do grupo após a morte de seu pai, Valdemar de Oliveira. O autor reuniu essas citações de fontes diferentes, sobretudo de jornais que circulavam em três grandes cidades (Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre), evidentemente buscando se apropriar do capital simbólico tanto das fontes quanto dos sujeitos que enunciam para valorizar ainda mais o seu grupo: “Honra Pernambuco e honra o Brasil”, de Paschoal Carlos Magno; “Os rapazes e moças do Recife, estão habilitados a dar lições de Teatro ao Brasil”, de Oswald de Andrade; “Assume o nítido sentido de uma embaixada artística que percorre o Brasil, com o intuito de enobrecer, ainda mais, a culta, a lírica, a sempre louvada cidade do Recife”, do Diário de São Paulo; “Ainda

26 Grupo paulista criado por Franco Zampari, em 1948. O Teatro Brasileiro de Comédia é considerado um dos principais modernizadores do teatro brasileiro.

desta vez o famoso verso de Manoel Bandeira não perde a sua significação. „São os do Norte que descem para conquistar o Sul‟”, de Marcos Figueiredo (Revista do Globo); “Orgulho do Norte e do Brasil”, de Maria Della Costa e “A afirmação do quanto pode e vale a gente do Nordeste”, do médico e professor Monteiro de Moraes (OLIVEIRA, 2013, p.66-72).

Já o interventor do Rio Grande do Norte, em 1942, se referiu ao TAP destacando outra missão assumida pelo grupo, a filantropia: “O Rio Grande do Norte, ao lhes ter conferido aplausos conscientes e justos, fruiu benefícios de matizes multifários, creditados à filantropia e grandeza espiritual e moral do culto povo pernambucano” (JORNAL DO COMMERCIO, 1942, 4 jan., p.5). O próprio interventor de Pernambuco, Agamenon Magalhães, tratou logo de identificar o TAP com o Estado Novo, que representava localmente. “O Teatro de Amadores traduz, também, o espírito social que vivemos com o Estado Novo, em Pernambuco” (Apud CADENGUE, 2011a, p.116).

Sobre a filantropia, comentou Valdemar de Oliveira em seu livro de memórias: “Fica- lhe, além da vaidade do que tem feito sobre os palcos, a alegria de haver levado lenitivo a muitas dores, esperanças a muitos corações – de cegos, indigentes, mães pobres, lázaros [...] através de instituições de beneficência social do Recife e de todas as outras cidades visitadas” (OLIVEIRA, 1985 [1974], p.143).

Outro compromisso do TAP era com a elevação moral da sociedade e com a dignificação da arte dramática. Escreve Valdemar de Oliveira sobre elevação moral: “[O TAP] persiste em não dar ao público o que seu paladar, por vezes estragado pela televisão ou pelo desbragamento dos costumes, reclama, porém, o de que ele precisa para sua nutrição intelectual e para sua elevação moral” (OLIVEIRA, 1985 [1974], p.143). E sobre a dignificação do teatro: “[O TAP] criou, no Recife, um público culto e discernente que já não suporta as más companhias teatrais que nos têm visitado, e, muito menos, os seus elencos sem consistência artística e seus repertórios sem dignidade” (OLIVEIRA, 1945, p.10).

Os esforços do grupo de Valdemar foram bem avaliados pela imprensa pernambucana, que normalmente tecia elogios ao TAP, a exemplo do que diz este texto:

Outrora, pisar, uma senhora, no palco, era motivo para quebra de preconceito. Ir homem casado a um camarim, constituía causa justa para um amuo conjugal e até separação de casais. E o que vemos agora, no Recife, é a dignificação do teatro. Um conjunto de amadores da mais elevada representação social a interpretar peças de responsabilidade e a empolgar a plateia, acostumada a aplaudir profissionais de alto coturno (MELO, 1941, p.2).

Por fim, o TAP recebeu uma distinção do governo de Pernambuco por meio de uma placa fixada no Teatro de Santa Isabel, com os seguintes dizeres: “O Teatro de Amadores de Pernambuco nasceu nesta casa e daqui partiu para irradiar por todo o Brasil, a cultura pernambucana. Homenagem do Governo e do Povo” (OLIVEIRA, 1985 [1974], p.144). Além disso, o grupo ainda foi reconhecido de utilidade pública pelo Estado (OLIVEIRA, 1985 [1974], p.144).

Já Hermilo, tal como Valdemar, também acreditava na função civilizatória do teatro e na sua dignificação. Em texto publicado no Diário da Manhã do dia 6 de abril de 1940, Hermilo afirmava que o teatro seria uma escola de valores, deixando de fora, evidentemente, aquilo que classificava como “conjuntos inqualificáveis”, de peças mal ensaiadas e autores medíocres. “Quando falo em teatro quero crer em alguma coisa mais alta, em alguma coisa de mais positiva, coordenada a uma orientação segura. Teatro por amor à arte, teatro educativo” (Apud REIS, 2008, p.51).

Além disso, acreditava na importância de um teatro que estivesse em sintonia com um projeto de nação. Para ele, um artista “não pode ficar indiferente às aspirações da humanidade, às lutas, ao sofrimento. Não pode ficar apático, fechado em sua arte, burilando palavras e publicando coisas apenas eruditas, sem finalidade. A função do artista, na hora que passa, é despertar nacionalidades [...]” (BORBA FILHO, 1947, p.7-8).

Hermilo, assim, inscrevia-se nos embates pela construção de uma possível identidade nacional por um viés regionalista. Ele tinha interesse pela criação de uma arte nordestina, logo brasileira, baseada no universo popular. Uma arte, enfim, que representasse o povo brasileiro, o homem brasileiro. Nesse sentido, o teatro enquanto “arte popular” deveria ser realizado em meio ao povo, como era em suas origens, o que remonta a uma longa trajetória que, no extremo, chegaria à Grécia Antiga.

Tal postura era oportuna por conta da necessidade de se pensar uma nova representação para a nação brasileira, diferente daquela estabelecida a partir do final do século XIX, quando sob a influência do positivismo, evolucionismo e darwinismo, utilizados como modelos raciais de análise, nossos primeiros cientistas sociais nos museus etnográficos, nos Institutos Históricos e Geográficos, nas faculdades de Direito e de Medicina concluíram que a mestiçagem existente no Brasil constituía “uma pista para explicar o atraso ou uma possível inviabilidade da nação” (SCHWARCZ, 1993, p.18).

Relevantes até a década de 1930, as doutrinas raciais começaram a ficar obsoletas a partir da constatação de que o Brasil passava por mudanças profundas, especialmente nos grandes centros urbanos, mais afetados pelos processos de industrialização e urbanização que

ocorriam, pelo desenvolvimento de uma classe média e pela formação de um proletariado urbano. “Com a Revolução de 30 as mudanças que vinham ocorrendo são orientadas politicamente, o Estado procurando consolidar o próprio desenvolvimento social. Dentro deste quadro, as teorias raciológicas tornam-se obsoletas, era necessário superá-las [...]” (ORTIZ, 2003, p.40).

É nesse momento que Gilberto Freyre contribui de forma decisiva para o deslocamento da forma como os estudiosos concebiam a mestiçagem no Brasil. O que antes era negativo passa a ser percebido com positividade, o que permitiria, em termos práticos, pensar que a sociedade brasileira seria viável, mesmo sendo basicamente mestiça. Esse deslocamento tornou-se possível porque Freyre27, mesmo mantendo a temática racial como chave para a compreensão do país, como se fazia no passado, fundamentou suas teses em termos culturais e não mais raciais, como faziam os nossos sociólogos do final do século XIX e isso “elimina uma série de dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço [...] e permite ainda um maior distanciamento entre o biológico e o social, o que possibilita uma análise mais rica da sociedade” (ORTIZ, 2003, p.41). Ele, afinal, ofereceu um novo encaminhamento para o estudo da identidade nacional e da cultura no Brasil, que permitiu “completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada” (ORTIZ, 2003, p.41).

Desta forma, se antes a nação brasileira era considerada um projeto a ser realizado no futuro, a partir da importação da cultura branca europeia,essa nova perspectiva permitiu que a defesa da nação brasileira implicasse, fundamentalmente, um olhar para si mesmo, numa busca e valorização de suas origens. Assim, tornou-se necessário descobrir a identidade nacional pela cultura popular, como, por exemplo, o regionalismo nordestino buscou fazer.

Nesse sentido, em nosso estudo sobre o Teatro do Estudante de Pernambuco é valioso analisar a afirmação épica das identidades populares, conceito que Roberta Marques toma emprestado de Nestor Canclini para analisar o projeto cultural do Movimento Armorial28. Essa afirmação reforça “uma visão de identidade nacional que tende a fixá-la e a relacioná-la

27 Para Renato Ortiz, Gilberto Freyre representa continuidade, permanência de uma tradição marcada pela atuação de cientistas sociais, tais como Sílvio Romero, que pensava a sociedade brasileira em termos raciológicos, apesar dos avanços que ele operou na sociologia brasileira.

28 “O Movimento Armorial tem como fim criar uma arte brasileira erudita com base na cultura popular nordestina de raízes africana, indígena, ibérica e moura e, com isso, fortalecer a ideia de uma identidade cultural