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Por uma perspectiva de educação para a cidadania no espaço escolar

1 EDUCAÇÃO E CIDADANIA NO ESPAÇO UNIVERSITÁRIO

1.3 Por uma perspectiva de educação para a cidadania no espaço escolar

Analisando o campo educacional como espaço de disputa estratégica, dos significados que organizam a vida social e as recentes demandas de diretrizes e orientações curriculares para inserção, na educação escolar, de temas emergentes relacionados à formação de valores, percebemos que temas como classe, raça/etnia, gênero, democracia e justiça social, que fundamentam a educação para a cidadania e a educação em direitos humanos, tornam-se pulsantes no debate em torno dos conteúdos que devem estar presentes nos processos educativos.

Isso demonstra que a efetivação da educação para a cidadania significa mais do que uma proposição da atual LDB nº 9394/96: representa desafios que não envolvem apenas uma reflexão teórico-metodológica e operacional para a

adequação das proposituras legais, mas, sobretudo, uma decisão amadurecida e

comprometida com os novos rumos que são necessários para concretizar minimamente tal demanda e o delineamento de quais compromissos teóricos e práticos assume a educação para a cidadania no Brasil.

Neste cenário, somam-se também as disputas políticas e culturais de grupos sociais com histórico de desvantagens cumulativas, preconceitos e estereótipos de raça/etnia, classe, gênero, região, exclusão educacional e baixa inclusão social, dentre outros, que conquistaram políticas de reconhecimento, reparação, inclusão e de promoção da diversidade e pluralidade cultural.

Os resultados destas conquistas, no campo educacional, são identificados num conjunto de propostas organizadas pelo MEC, em especial pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), denominadas como de enfrentamento das desigualdades educacionais que, conforme o

relatório dos resultados alcançados em decorrência das políticas públicas desenvolvidas no período 2003-201013, foi viabilizado por meio de duas

estratégias:

A primeira abrangeu o atendimento de públicos específicos – jovens e adultos; povos indígenas; populações do campo; quilombolas; e pessoas com deficiência – contemplados em suas particularidades na formulação e implantação dos programas. A segunda buscou garantir a inserção dos temas da diversidade (direitos humanos, relações étnico-raciais, sustentabilidade, diversidade de gênero e orientação sexual) (BRASIL, 2010, p. 139).

Cada área apresenta diretrizes curriculares e conteúdos programáticos para inserção dessas conquistas na educação básica e nos cursos de licenciatura. Além das diretrizes apresentadas pela SECAD, encontram-se ainda diversos programas aprovados a partir de demandas da Secretaria de Educação Superior (SESu) e da Secretaria Geral da Presidência da República, por meio de mais duas secretarias especiais: a Secretaria de Promoção de Políticas de Integração Racial (SEPPIR) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH). Da primeira, destaca-se o programa de ações afirmativas para a promoção e integração racial, com o impacto na educação básica da Lei 10.639/96, que estabelece as diretrizes curriculares para a educação étnica e racial e para o ensino da história da África e da Cultura Afro-brasileira; e da segunda secretaria, o PNEDH, cuja primeira versão foi disponibilizada em 2003 e instituída em 2006, como um compromisso do Brasil em efetivar a Educação em Direitos Humanos enquanto política pública implementada por meio de cinco áreas temáticas: .Educação Básica, Educação Superior, Educação Não-Formal, Educação dos profissionais da Justiça e Segurança, Educação e Mídia.

O PNEDH é construído a partir dos dados sobre a organização da cidadania no Brasil, que revelam que, embora o país tenha avanços importantes na conquista e ampliação da democracia, na promoção de políticas públicas com fins sociais, há, também, a constatação de que muitas práticas sociais, culturais e educacionais são, ainda, permeadas por atitudes discriminatórias e violações dos direitos humanos, produzidas e reproduzidas por culturas institucionais e

13 O relatório síntese do balanço das políticas públicas implementadas no período 2003 – 2010, assim como todo o material do balanço, estão disponíveis em: wwwbalancodegoverno. presidencia.gov.br e https//i3gov.planejamento.gov.br/coi

mentalidades autoritárias e conservadoras dos seus agentes (BRASIL – PNEDH, 2006).

Ocorre que no debate político/acadêmico sobre os Direitos Humanos perpassa ainda a universalidade abstrata dos direitos de cidadania e, em se tratando, de modo mais específico, das políticas de reconhecimento e reparação das desvantagens cumulativas para grupos sociais com histórico de escassez econômica, preconceitos e estereótipos culturais, o discurso hegemônico é ainda mais perceptível, tornando-se comum uma generalização com relação às desigualdades existentes no Brasil e os diversos grupos que sofrem discriminação.

Tal atitude justifica posturas conformistas e despolitizadas e fortalece o discurso hegemônico, conservador e imobilista, mantendo as estruturas políticas, econômicas e sociais de reprodução das desigualdades sociais e culturais historicamente presentes na sociedade brasileira, que, no dizer de B. S. Santos (2006b), naturalizou um sistema de poder até hoje em vigor que, sem contradição aparente, afirma a liberdade e a igualdade e pratica a opressão e a desigualdade. Em artigo publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 21/08/2006, o sociólogo português B. S. Santos revela otimismo com os rumos que o Brasil toma na questão racial e advoga que, no caso brasileiro, “Só quem pertence à raça dominante tem o direito (e a arrogância) de dizer que a raça não existe ou que a identidade étnica é uma invenção”. Questiona o discurso que procura diluir a discriminação racial na discriminação social, admitindo que os negros e os indígenas são discriminados porque são pobres, para não ter de admitir que eles são pobres porque são negros e indígenas. Para ele, essa democracia de baixa intensidade vive o começo de uma crise final, com a organização das vítimas da discriminação contra a ideologia que os declara ausentes e as práticas que os oprime enquanto presenças desvalorizadas.

O Brasil parece finalmente estar a passar do período da pós- independência para o período pós-colonial. A entrada neste último período dá-se pela constatação de que o colonialismo, longe de ter terminado com a independência, continuou sob outras formas, mas sempre em coerência com o seu princípio matricial: o racismo como uma forma de hierarquia social não intencional porque assente na desigualdade natural das raças. Esta constatação pública é o primeiro passo para se iniciar a viragem descolonial, mas esta só ocorrerá se o racismo for confrontado por uma vontade política desracializante firme e

sustentável. A construção dessa vontade política é um processo complexo, mas tem a seu favor convenções internacionais e, sobretudo, a força política dos movimentos sociais protagonizados pelas vítimas inconformadas da discriminação racial. Para ser irreversível, a viragem descolonial tem de ocorrer no Estado e na sociedade, no espaço público e no espaço privado, no trabalho e no lazer, na educação e na saúde (B. S. SANTOS – Folha de São Paulo, 21/08/2006).

A desigualdade social como componente estrutural e fenômeno histórico aparece no discurso acadêmico em cada período com forma específica: no final da primeira década do Século XXI, apresenta-se como um problema conjuntural que resulta da forma desigual do desenvolvimento das capacidades e potencialidades humanas individuais e da dificuldade de convivência com as diferenças e diversidades nos espaços de vivência e construção de sociabilidades.

Essa lógica alimenta-se no discurso da globalização hegemônica neoliberal, presente, sobretudo, nos espaços educativos e de formação de opinião, mascarando um fenômeno histórico estrutural e formando valores ideológicos que se refletem nas concepções de sociedade, de homem e de educação que dominam a atitude cidadã e a leitura política da sociedade. Cunha Júnior (2002) chama atenção, por exemplo, para os discursos que buscam situar a desigualdade social e racial no conjunto amplo de diversos estratos sociais, também desiguais e discriminados:

Não podemos confundir discriminações históricas e estruturais com as esporádicas. Existem maiorias étnicas, maiorias de gênero e de região, que estão submetidas a processos de dominação estruturais, distintos das discriminações sofridas pelos gordos, portadores de deficiências, e pelos que expressam diferentes opções sexuais, tratarmos todos como apenas discriminados pode implicar generalizações que dificultem a compreensão dos diferentes problemas e dos caminhos para a solução das injustiças históricas (2002, p. 28).

É neste sentido que compreendemos que a educação para a cidadania poderá ser fundamentada numa noção de cidadania coletiva, apoiada nos princípios de democracia e justiça social e desenvolvida como uma ação sócio- educativa; como processo social, perpassado por uma visão de mundo, de sociedade e de uma época, constituindo-se como prática educativa no âmbito do projeto de globalização contra-hegemônico e alternativo. “Organizada

inversamente da base para o topo. Tal globalização é constituída por redes e alianças transfronteiriças de movimentos sociais que lutam contra os efeitos da globalização neoliberal e em defesa da emancipação social” (GERMANO, 2007, p. 45).

Percebemos que o cenário apresentado pela primeira década do Século XXI possibilita diversos espaços formais para a vivência e construção de uma noção de cidadania coletiva, apoiada nos princípios de democracia e justiça social, que oriente iniciativas políticas e pedagógicas presentes nas dimensões da vida social, política e cultural. A presença de um discurso pedagógico14, enunciado nas diretrizes de organismos e acordos/cartas/tratados internacionais e na atual LDB nº 9.394/96, favorece o pensar/fazer a educação para a cidadania em todos os níveis de ensino e na formação do professor e da professora como aspecto fundamental na formação integral da pessoa humana.

Para Demo (2000), pensar a formação do profissional formador dos profissionais representa uma complexa tarefa para a Universidade, a de incorporar nos programas e práticas curriculares a formação científica, formação humanísitica e formação cidadã, numa interdependente convergência política e pedagógica de uma educação global e critica. Formação essa capaz de proporcionar uma educação para a vida que, dentre outras competências e atitudes, significa perceber-se como sujeito de suas ações, como ser ativo, critico e criativo, apto a intervir na realidade com qualidade técnica e política. Em sua análise, este autor destaca que essa formação é construída pela qualidade de ensino, que é intimamente relacionada com a qualidade da formação do professor e da professora. A ênfase dada à formação como condição democrática e exercício de cidadania valorizada como indicadores da mudança para um ensino de qualidade “propicia o seu resgate enquanto profissional, colocado como o profissional mais estratégico dos tempos modernos. O profissional dos profissionais” (DEMO, 2000, p. 49).

Assentimos que o desafio posto para as Universidades significa muito mais do que criar condições materiais e pedagógicas para a efetivação da

14“Discurso especializado cuyos principios internos regulam a produccción de objetos específicos (transmissor es e adquirientes) y la producción de praticas especificas, lo que a su vez regula el proceso de reproducción cultural; conjuno de reglas para la incerción de un discurso instiucional em un discuso regulatico, com dominancia de este último (BERNSTEIN, 1990, p. 151).

formação dos profissionais do ensino e da educação básica. Significa redefinir o papel da Universidade na formação dos docentes e sua relação com a sociedade. Essa discussão no interior das instituições universitárias aprofunda o seu papel como instituição social, proporcionando uma vivência de construção de um projeto de formação legitimado pelo princípio da autonomia do saber, perpassado pelo compromisso com a justiça social, a democracia e o desenvolvimento humano, constituindo-se, desse modo, numa educação para e pela cidadania.

Este desafio assume proporções enormes quando pensado no contexto da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Uma Universidade cravada no semi-árido nordestino, mantida com recursos orçamentários do Estado do Rio Grande do Norte, que vive envolta em diversas tensões que resultam de uma dupla pressão. Por um lado, os governantes políticos do Estado pressionam para a criação de novos cursos em regiões onde não há ainda a presença do Ensino Superior público, com campus universitário ou núcleo acadêmico, seja da UERN, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) ou da Universidade Federal Rural do Semi-árido (UFERSA); por outro, a vida acadêmica e institucional exige uma política de planejamento institucional e a consolidação do preceito constitucional da autonomia universitária materializado na gestão colegiada e deliberativa pelos Conselhos Superiores e no exercício da sua autonomia didática, pedagógica e administrativa.

Essas tensões conduzem-nos a refletir sobre a história da UERN e do curso de Ciências Sociais, nela desenvolvido, como espaços nos quais incidem diretamente os resultados das tensões e onde, ideamos, poderá se desenvolver uma formação para a cidadania com o sentido e significado que vimos discutindo.