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CAPÍTULO 3: MUDANÇAS SOCIAIS COM MUDANÇAS JURÍDICAS NO

2. Os casamentos entre pessoas do mesmo sexo

2.2. Posição defendida

A posição que defendo é a de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é uma exigência constitucional, porquanto a sua concretização converge com indeclináveis preceitos constitucionais, a saber: o direito de contrair casamento; o princípio da igualdade de tratamento; o direito ao desenvolvimento da personalidade e ainda o direito da reserva da vida privada. Daí que considere o reconhecimento e concretização do ius nubendi para casais homossexuais154 como emblemáticos da abertura do Direito às mudanças sociais e, além

disso, um corolário do direito moderno assente na vontade livre e consciente dos sujeitos, a qual não poderá ser tolhida pelo género. Trata-se ainda de um caso paradigmático da imbricação do direito com uma “sociedade aberta”155, pautada pelo respeito pela diferença, pelo pluralismo, pela vontade individual e pela vida privada; uma sociedade pontilhada de dinâmicas onde radica a sua constante evolução, da qual o direito, como fenómeno eminentemente social, deve participar. Daí que concorde com a seguinte análise de Daniel Borrillo:

                                                                                                               

154 Justificando a mudança jurídica nesta matéria, a Assembleia da República aprovou, com 126 votos a favor 97

contra e 7 abstenções, no dia 8 de janeiro de 2010, o acesso ao casamento civil entre pessoas do mesmo sexo em Portugal (com exclusão da adoção), e que foi aprovada na especialidade a 11 de fevereiro de 2010 e analisada pelo Tribunal Constitucional que se pronunciou pela constitucionalidade em 8 de abril de 2010 e que o Presidente da República promulgou a 17 de maio.

155 Uso o célebre título de POPPER, Karl - Sociedade aberta e seus inimigos. Vol. I e II. Lisboa: Edições 70,

2013. Com efeito, a “sociedade aberta” caracteriza-se pela fragmentaridade e por ter na sua base a individualidade, o diálogo e a mudança, contra o imobilismo das sociedades fechadas”, cristalizadas nos tabus e na “ordem natural das coisas”. Partindo das teses basilares deste filósofo austríaco , vide igualmente HABERLE, Peter - Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre. Fabris Sergio Antônio, 2002.

“O matrimónio novo rende homenagem à modernidade pela abolição das hierarquias e dos privilégios das sexualidades (heterossexual/ homossexual) que o matrimónio heterossexual traz consigo. Da mesma forma que a raça, as opiniões políticas não podem constituir barreiras para o exercício dos direitos, a orientação sexual dos indivíduos não deveria impedir o acesso a uma liberdade fundamental como é o caso do casamento. Finalmente, a união entre pessoas do mesmo sexo radicaliza a laicidade da instituição civil do matrimónio ao ser dissociada completamente da instituição do velho sacramento canónico. Assim, a produção do efeito civil do sacramento matrimonial, vestígio do Estado confessional, é hoje mais que nunca anacrónico.”156. A posição que defendo, abstraindo de preconceitos homofóbicos- que lentamente se vão esbatendo na sociedade portuguesa e também dos argumentos doutrinais toldados por excessos de tradicionalismo e de conservadorismo- decorre, por um lado, como referido supra, da sua conformidade com o texto constitucional e, por outro, da conceção que advogo neste estudo acerca do casamento em cuja génese se encontra a oficialização voluntária de uma vida em comum. Por esse motivo, a negação do acesso a pessoas do mesmo sexo ao casamento civil constituiria uma inaceitável negação da cidadania e do direito à dignidade e à felicidade de muitas pessoas, uma vez que me parece indiscutível que no projeto do casamento, seja hetero ou homossexual, está ínsita a vontade de comunhão de vida. Aliás, julgo que o direito a ser feliz, como acontece noutros textos constitucionais, deveria estar consagrado da Constituição portuguesa. Contra os argumentos que consideram que o casamento entre pessoas do mesmo sexo traduz uma ameaça que faz perigar a vida social, defendo que uma tal cautela, de pendor conservador, acabaria por redundar numa paralisia do direito face à dinâmica da vida social.

Em face do exposto, considero lapidar a seguinte síntese de Pedro Múrias, a qual subscrevo, extravasando-a do caso espanhol que é referenciado para, mutatis mutandis,                                                                                                                

156 BORRILLO, Daniel “Matrimônio entre pessoas do mesmo sexo e homoparentalidade: uma nova etapa da

modernidade política e jurídica”. Conferência realizada no fórum do casamento entre pessoas do mesmo sexo- Centro de Estudos de Antropologia Social/ Associação ILGA Portugal. Disponível em: http://pwp.netcabo.pt/0170871001/DanielBorrillo.pdf, 8-9 (consultado em: 15.10.2013). Conclui Daniel Borrillo essa sua comunicação, afirmando que: “Os argumentos usados contra a igualdade dos casais homossexuais não são novos, eles foram já usados contra os matrimônios interraciais, contra a livre disposição para as mulheres, contra o voto universal, contra o Estado de providência... Todas estas evoluções também foram consideradas pelos conservadores como situações apocalípticas. Mas só os conservadores têm um medo irracional da modernidade. Habermas define a modernidade como um projeto inacabado, uma questão ainda pendente, com um potencial utópico.”. Ibidem. Vendo a pós-modernidade como portadora de um saber que aponta para as tarefas da cidadania, no sentido da afirmação de uma era da cidadania, como repto e gérmen de esperança para o século XXI dou nota do seguinte ponto de vista de Viriato Soromenho-Marques: “Por tudo isto uma das poucas certezas que firmemente nos restam consiste em reconhecer que o compromisso, individual e colectivo, como uma cidadania alargada [sublinhado meu], aprofundada e reinventada é uma aposta necessária e vital.”, SOROMENHO-MARQUES, Viriato - A Era da Cidadania- de Maquiavel a Jefferson. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1996. 204. Igualmente Lyotard refina a nossa sensibilidade para as diferenças e ainda nos convoca para uma genuína civilização da dignidade, LYOTARD, Jean-François - A condição pós- moderna. Lisboa: Gradiva, 9.

acomodá-lo ao panorama da sociedade portuguesa, em relação à qual o direito não poderá deixar de contribuir para o repensar da sua essência:

“O casamento entre espanhóis do mesmo sexo não alterou o casamento dos Reis de Espanha. A igualdade no casamento significa apenas que as famílias compostas por um casal homossexual têm de ter o mesmo reconhecimento oficial e a mesma dignidade de cidadania que as restantes. Isto não é atacar a “família”, é defender todas as famílias mesmo aquelas que certa “tradição” sempre perseguiu.”157.

Assim sendo, esta é a posição que melhor converge para os alicerces indispensáveis de uma sociedade democrática, pautada pela abertura e pelo respeito, pela matriz axiológica da liberdade, da igualdade e da não discriminação, protegendo a titularidade da personalidade adulta e consciente, a sua indefetável autonomia perante as opções de vida. Daí que esta mudança social acompanhada de mudança jurídica- embora não possa deixar de questionar o próprio instituto do casamento tal como foi, durante tanto tempo, plasmado na ordem jurídica portuguesa158- se inscreva numa lógica mais ampla e em cujo lastro histórico é possível apontar a igualdade de direitos entre cônjuges, o direito ao divórcio, o reconhecimento legal das uniões de facto e até a descriminalização da homossexualidade (pois não podemos esquecer que, até 1982, a homossexualidade era crime previsto e punido no Código Penal). Desta forma, do meu ponto de vista, a Lei que consagra a possibilidade de celebração do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo vem, no fundo, reparar uma injustiça, sem que, por essa via, seja cometida qualquer injustiça sobre as outras pessoas, uma vez que impede a negação de direitos a cidadãos sem que tal diminua nenhum direito aos demais cidadãos.159

                                                                                                               

157 MÚRIAS, Pedro - Casamento, argumentos e tretas. In: Jornal Público, (28.09.2008).

158 Neste âmbito é de destacar a seguinte reflexão de Miguel Nogueira de Brito: “ [...] nenhum defensor do

direito a casar dos homossexuais pode por seriamente em causa que a reivindicação desse direito é acompanhada, de forma mais ou menos assumida pela pretensão de repensar radicalmente o casamento [...]. Tais pretensões devem ser trazidas para a primeira linha da discussão. Só desse modo se honrarão os encargos da razão pública, entendida nos moldes de Rawls ou em boa verdade, em quaisquer moldes.” BRITO, Miguel Nogueira de - Casamento civil e dignidade dos homossexuais. Casamento entre pessoas do mesmo sexo- sim ou não? Lisboa: Entrelinhas, 2008. 51.

159Destaco nesta sede a pertinente reflexão da filósofa Hannah Arendt, para quem: “O direito de casar com

quem se quiser é um direito humano elementar [...] mesmo os direitos políticos, como o direito de voto, e quase todos os outros direitos enumerados na Constituição, são secundários em relação aos direitos humanos invioláveis à vida, liberdade e busca da felicidade proclamados na Declaração da Independência, a esta categoria pertence inquestionavelmente o direito ao lar e ao casamento.” ARENDT, Hannah - Reflections on Little Rock, 1959. Apud BRITO, Miguel Nogueira de - Casamento civil e dignidade dos homossexuais. Casamento entre pessoas do mesmo sexo- sim ou não? Lisboa: Entrelinhas, 2008. 52.

Por isso mesmo, esse passo histórico não se projetou apenas sobre uma minoria, na medida em que se dirigiu a toda sociedade que ficou mais robustecida em termos de dignidade.160

Por conseguinte, defendo não existir fundamento racional e sólido (havendo que enfatizar o princípio do Estado de Direito- artigo 2.º CRP- impondo que haja um fundamento racional mínimo para a supressão de qualquer bem jurídico constitucionalmente relevante) para que se distingam as relações homossexuais das heterossexuais, pelo que as alterações da lei ordinária que reservavam o casamento para casais heterossexuais apenas vieram conformar-se com os artigos 13.º, n.º 1 e n.º 2 CRP e 36.º, n.º 1 CRP, que se encontravam violados, feridos de inconstitucionalidade material.