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A. ABORDAGEM ANALÍTICA ÀS INSTRUÇÕES DE PERCURSO

1. Posições face às instruções de percurso e levantamento de hipóteses

Uma das tarefas a que nos devemos dispor quando pretendemos analisar a produção de instruções de percurso é obviamente à recolha das mesmas. É difícil partir para esta recolha sem expectativas. Já pedimos instruções em momentos de desorientação, já as fornecemos em momentos de prática cívica. Tenhamos ou não pensado sobre a forma como cada um destes actos se desenvolveu, o que fica como certo é que quando o tema nos surge como hipótese de trabalho nos apercebemos de que temos (mais tarde perceberemos que julgávamos ter) um mapa da estrutura destas mesmas interacções verbais.

Que as instruções são diferentes apenas em função de quem as fornece é matéria sobre a qual nos obrigaremos, ainda, a ter dúvidas. Somos mais lestos, porém, a considerar que quem as dá fica de imediato catalogado como um dador de instruções, categoria onde a nossa experiência nos deixa, quase só, admitir a existência de dois sub-grupos: os que as dão evidenciando preocupação sobre a eficácia do acto (o que frequentemente os afasta da objectividade) e os que o fazem para cumprir um dever onde crêem poder ser eficazes se objectivos. Não sei se alguma vez poderemos dizer que a eficácia ou não das instruções contribuiu para a segmentação destes dois grupos. Numa situação de desorientação, ser eficaz pode passar, primeiramente, por ser amável. Desculpamos com facilidade ser levados a uma rua sem saída se o nosso informador nos tiver fornecido certo tipo de dados que tenham tornado plausível a sua instrução e, que, como é óbvio, o apresentassem como um sujeito sensível ao nosso problema.

Pensamos poder dizer que faz parte da imagem pública (ainda que a amostra não seja comprovadamente significativa, dialoguei com vários interlocutores, produto de uma selecção arbitrária e onde incluí alguns dos sujeitos deste trabalho que me permitiram obter certas noções que se pode ter empiricamente sobre este tema), considerar-se que as

instruções de percurso que nos dão (pude constatar que existe uma tendência generalizada para quando debatemos as nossas impressões sobre este assunto nos colocarmos na posição de ouvintes e não na de informadores) estão recheadas de pequenos clichés que constituiriam, assim, uma espécie de configuração verbal deste tipo de interacções. Posso sistematizar algumas dessas impressões em três grandes tipos. O primeiro permite-nos pensar que a maioria das pessoas considera as instruções de percurso que recebe, normalmente, muito complexas. Atribui-se aos informadores o hábito de rechear as suas instruções de pormenores considerados irrelevantes. Quase todos referiram a expressão, segundo eles, muito recorrente nas instruções: "Vai encontrar (avistar, passar por, etc.) uma rua (travessa, cortada) mas não vai por aí.", ou então, o rechear de uma instrução com pormenores vivenciais só significativos para o instrutor e raramente perceptíveis a um passeante não habitual desse percurso. Para além destes foram, ainda, referidas a profusão de gestos, por parte do informador e as instruções permanentemente reformuladas.

O segundo tipo apontaria para um fornecimento habitual de instruções incompletas, i. e. que se deteriam num determinado ponto do percurso pretendido, antes de se chegar ao destino, aí (será que deveríamos dizer aqui?) o instrutor mandaria ou sugeriria que se perguntasse de novo a outra pessoa. Esta atitude não era considerada como falta de empenhamento no fornecimento de uma boa instrução mas como uma estratégia que as próprias pessoas com quem falei utilizavam frequentemente (uma das únicas situações em que a própria produção era referida).

O terceiro tipo prendia-se com uma consideração generalizada de que os informadores tinham uma reduzida sensibilidade às mudanças de direcção pelo que habitualmente definiriam a orientação como "sempre a direito" ou "sempre em frente" mesmo nos casos em que seriam necessárias várias mudanças de orientação. Esta noção que parecia contradizer a primeira revelava-se, depois, como não o fazendo já que este "sempre a direito" seria sempre só a primeira fase da verbalização. Apesar de terem já enunciado esta orientação, os sujeitos acabariam por precisá-la com uma série de voltas à esquerda e à direita, ficando o "sempre a direito" a dever-se à possibilidade de se seguir aquilo que se considerava o eixo principal do movimento. Este tipo arrastaria, ainda, consigo noções de lateralidade mal assumida, considerando-se que os informadores confundiam frequentemente a esquerda com a direita e apoiavam as suas instruções verbais com gestos que, não raro, contrariavam as direcções que as suas palavras apontavam.

Para além destas impressões comuns, pudemos, ainda constatar que a maioria das pessoas evidenciava certos preconceitos relativamente a alguns grupos profissionais e/ou sociais. Os agentes da P.S.P. eram tidos como os que piores instruções forneciam (para a maioria mas não para a totalidade dos questionados), os camponeses (os homens dos espaços rurais, na generalidade), como os que menos objectivos eram na medição das distâncias (tanto por excesso, como por defeito), as mulheres como as que pior se orientavam e menos disponibilidade tinham para fornecer informações (disseram-nos que se se encontrassem em situação de pedir uma informação recorreriam preferencialmente a homens). Foi ainda referido como factor de desagrado, a intromissão voluntária e

espontânea, neste tipo de interacção verbal de um outro sujeito, para além daquele que o sujeito desorientado seleccionara para o fornecimento da instrução.

Estes foram, pois, alguns dos dados que nos foram referidos e que pareciam integrar uma imagem comum das instruções de percurso, no seu carácter mais folclórico. Todos pareciam conseguir definir com alguma precisão como se davam instruções, em Portugal, e pareciam, também, ser capazes de fazer juízos de valor sobre elas. Poder-se-ia, no entanto, inferir (nunca tal foi dito explicitamente) que com instruções de percurso não se ia a lado nenhum; i.e. todas eram mais ou menos enganosas. Não era, porém, por isso que os sujeitos com quem falei as não pediam ou as não davam. Limitavam-se a considerá-las como uma forma de apoio na busca do ponto onde queriam chegar, cientes de que a instrução apenas os poderia ajudar num ou noutro pormenor. Todos referiram que apesar de pedirem a instrução não deixavam de se fazer guiar pela sua própria intuição. Apenas um sujeito referiu ser completamente incapaz de entender uma instrução de percurso não colocando, no entanto, a culpa no informador mas em si mesmo e na sua completa incapacidade de se orientar fosse guiado por experiências anteriores, por mapas ou por palavras.

Nenhuma das conversas que foi realizada para a recolha destas informações foi gravada ou tida com sujeitos que soubessem do tipo de trabalho que estávamos a levar a cabo. As informações foram obtidas no meio de conversas o mais informais possível para que não deixassem entrever nenhuma espécie de intencionalidade nas perguntas, recolhidas de memória e, depois, anotadas. As informações que aproveitámos de alguns dos sujeitos que funcionaram como informantes, neste trabalho, foram espontaneamente expressas após gravação da instrução e antes de lhes ter sido explicado o âmbito da pesquisa. Nesses casos, "deixámo-los", apenas, falar. Devemos confessar, aqui, que foi precisamente com o gravador desligado que surgiram as mais interessantes observações sobre a temática do espaço urbano e da sua representação.

Também nós fomos criando expectativas que ao longo do trabalho se foram transformando em hipóteses.

De todas elas esperávamos poder desenvolver pelo menos duas e, através da análise das instruções de percurso que recolhêramos, saber se elas eram ou não confirmadas.

A primeira hipótese que colocávamos era a de que a verbalização da representação mental do espaço necessária à construção de uma instrução verbal de percurso manteria algumas das características das representações mentais individuais e/ou sociais. I. e. deveria ser possível detectar nas instruções verbais de percurso algumas das características estruturantes dos mapas mentais definidos por Kevin Lynch (1960) e das representações sociais propostas por Milgram (1984) e Pailhous (1984). Para além disso, as instruções de percurso deveriam ainda permitir detectar pistas para a confirmação da teoria das representações mentais proposta por Johnson-Laird (1982) deixando entrever, para além dos mapas mentais, outras formas de representação quer relacional quer proposicional que precederiam a sua formação.

A segunda hipótese recaía, já, sobre a estruturação linguística da própria instrução. Esta deveria permitir-nos encontrar a organização de uma deixis fictiva (ou "am phantasma" como Bühler (1934) a definia), através de um esquema marcadamente projectivo da representação espacial a que não seriam alheias as formas e meios disponíveis à percepção desse mesmo espaço (Gibson (1977) e Norberg-Schulz (1975)) e que só a estratégia de linearização detalhadamente analisada por Levelt (1981) e (1982.a.) permitiria actualizar.